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por Roberto Porto
"O que tem a ver a lendária e sensual Salomé com o Botafogo? A rigor, nada, supostamente nada. Mas recentes e aprofundados estudos perpetrados por alvinegros apaixonados, reviraram Livros Sagrados e de História Geral e descobriram que sinais, obviamente premonitórios, da chegada do Glorioso Alvinegro da Estrela Solitária à face da Terra já foram sentidos em tempos bíblicos.
Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia, viajou a Roma, por volta de 27 DC e lá, de maneira sórdida e insidiosa, surrupiou Herodíades, mulher de seu irmão Herodes Felipe. Diga-se de passagem que Herodes Felipe também não era lá flor que se cheirasse, porque a bela Herodíades vinha a ser sua sobrinha. O fato é, porém, que quando Herodes Antipas retornou à Galiléia, levando a nova mulher e a enteada Salomé a tiracolo, rolou o maior barraco na província, com o povo escandalizado com o gesto do tetrarca. João Batista, o homem que batizou Jesus Cristo nas águas do Rio Jordão, foi o primeiro a botar a boca no trombone.
O resultado foi péssimo para Herodes Antipas. O tetrarca mal podia se locomover pelas ruas, em companhia de Herodíades e Salomé, sem que o povo o vaiasse estrepitosamente. João Batista, mais tarde elevado à categoria de santo, era o chefe da oposição e não lhe dava trégua, alegando, não sem razão, que Herodes aviltara e rasgara as rígidas leis de Moisés.
Resultado: sem alternativa, disposto a terminar com o bafafá, Herodes Antipas apelou para a velha solução e encarcerou João Batista. Mas a situação ainda iria piorar. No aniversário de Herodes Antipas, Salomé deu um show sensual de dança, deixando os convivas com água na boa. E Herodes Antipas - que já deveria estar de olho na enteada - disse à jovem que, tão espetacular havia sido a sua exibição que ela poderia pedir o que quisesse como prêmio. A loura Salomé, pouquíssimo intelectualizada, decidiu perguntar à mãe o que deveria ganhar. Cheia de ódio, Herodíades foi vingativa: "Peça a cabeça de João Batista numa bandeja de prata".
Quinze séculos depois, ainda chocados com a decapitação e macabra vingança da trinca Herodes, Herodíades e Salomé, os portugueses lançaram ao mar um poderosíssimo barco de guerra denominado São João Batista. Na linguagem do gentio do cais lisboeta, o galeão ficou conhecido como "O Botafogo". Originalmente, botafogo era o apelido que se dava ao artilheiro, que, de acordo com a história e a definição de Aurélio Buarque de Hollanda, ateava fogo às peças dos canhões das fortalezas terrestres e dos barcos de combate das marinhas de guerra.
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Maqueta do São João Baptista
Portugal, uma das mais famosas nações desbravadoras dos mares nunca dantes navegados, no célebre poema de Luiz de Camões, passou a contar, então, no reinado de Dom João III, com o já referido e impressionante São João Batista, dotado de nada menos do que 200 peças de artilharia. Tão poderoso e destruidor era o São João Batista, pois parecia deitar fogo pelas ventas, que os próprios nobres lusitanos também passaram a chamá-lo de Botafogo. Portugal chegou a cedê-lo à Espanha, a pedido de Carlos V, a fim de reforçar a esquadra espanhola que combateu o pirata otomano Barbaroxa, em 1535. Barbaroxa, era mau e tinha nascido na ilha grega de Lesbos, onde o homossexualismo feminino comia solto.
De nome de barco de guerra, Botafogo virou sobrenome de família. E, ainda no século do descobrimento, João Pereira de Souza Botafogo veio dar com os costados no Brasil, como lugar-tenente do governador-geral Antônio Salema, encarregado da defesa do Rio de Janeiro. Tão bem se houve no cargo, numa cidade sempre cobiçada pelos franceses, João Pereira de Souza Botafogo ganhou de presente do rei uma extensa sesmaria na Enseada de Francisco Velho - mais tarde conhecida como Praia de Botafogo. O local, porém, permaneceria selvagem e inabitado por mais de 250 anos. A rigor, a conquista da sesmaria só teria início com a chegada da família real ao Brasil, fugindo da fúria das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiram Portugal. Carlota Joaquina, mulher de Dom João VI, foi com certeza uma das primeiras moradoras do bairro carioca que surgia.
Antes dela, porém, ainda no tempo das sérias ameaças dos franceses e tamoios, como escreve o historiador Brasil Gérson, os desbravadores da sesmaria foram Antônio Francisco Velho - que dava o nome à bela enseada ao pé do Pão de Açúcar - o próprio João Botafogo, português de Elvas, e a curiosa figura do padre Clemente Martins de Matos. Sobre este último corre a lenda de que havia abraçado a religião católica e fugido para o Brasil tantos foram os escândalos amorosos de que fora protagonista em Lisboa. O tempo passou, a controvertida espanhola Carlota Joaquina, à revelia de Dom João VI, ergueu um palacete no final da hoje Marquês de Abrantes e Botafogo foi gradativamente ocupado por casas elegantes - algumas delas ainda ornamentando o bairro - até o início do passado século 20.
Foi no início do passado século 20, no Largo dos Leões, que leva este nome em homenagem a Joaquim Marques Batista de Leão, que o Botafogo Football Club surgiu há exatos 99 anos. Na tarde de 12 de agosto de 1904, uma sexta-feira, Flávio da Silva Ramos e Emanoel de Almeida Sodré, livres das aulas no Colégio Alfredo Gomes, reuniram amigos e adeptos do novo esporte da bola e decidiram fundar o a princípio chamado Eletro Club. Francisca Teixeira de Oliveira, conhecida como dona Chiquitota, avó de Flávio Ramos, detestou o nome escolhido meio a esmo, em razão de um talão de recibos de um extinto grêmio de pedestrianismo, e mudou o nome para Botafogo, a 18 de setembro. Os garotos aprovaram e o novo clube entrou para a história.
Naquele tão distante 12 de agosto de 1904, uma coincidência do destino teria lugar. O matutino Correio da Manhã, numa pequena nota de pé de página, publicaria a seguinte notícia: "Ontem foi dado um aviso à Estação de Bombeiros da Rua Humaitá de que lavrava pavoroso incêndio na Rua General Severiano. Comparecendo ao local, os briosos soldados do fogo verificaram tratar-se de um rebate falso. Teve conhecimento do fato a polícia da 18ª Circunscrição". Hoje, quase 100 anos depois, percebe-se que a notícia não era tão falsa assim. Certamente, como nos tempos bíblicos de São João Batista, tratava-se de uma premonição do que aconteceria anos depois. O clube que tornaria a rua tão famosa era realmente um incendiário Botafogo. E o general Severiano da Fonseca - irmão mais velho do marechal Deodoro, o proclamador da República - também inscreveria seu nome na história do futebol brasileiro e mundial."
Fonte
Jornal dos Sports, 12/08/2003