30 anos depois do desaparecimento de Mané Garrincha, Deixa
Falar: o megafone do esporte* saiu em edição extraordinária para lembrar o craque e uma de suas criações: o Olé, através de um texto
clássico de João Saldanha à época (1958), técnico do lendário time do Botafogo.
O texto, inédito, foi extraído do livro Os Subterrâneos do Futebol
de João Saldanha, lançado em 1963 pela editora Tempo Brasileiro.
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‘Olé’ nasceu no México, terra de
touradas
por João Saldanha
O Estádio Universitário ficou à cunha. Cem mil pessoas
comprimidas para assistir ao jogo. É muito alegre um jogo no México. É o país
em que a torcida mais se parece com a do Rio de Janeiro. Barulhenta, participa
de todos os lances da partida. Vários grupos de "mariaches"
comparecem. Estes grupos, que formam o que há de mais típico da música
mexicana, são constituídos de um ou dois "pistões" e clarins, dois ou
três violões, harpa (parecida com a das guaranias), violinos e marimbas. As
marimbas são completamente de madeira, mas não vão ao campo de futebol, sendo
substituídas por instrumentos pequenos. O ponto alto dos "mariaches"
é a turma do pistão, do clarim e o coro, naturalmente. No campo de futebol, os
grupos amadores de "mariaches" que comparecem ficam mais ativos em
dois momentos distintos: ou quando o jogo está muito bom e eles se entusiasmam,
ou, inversamente, quando o jogo está chato e eles "atacam" músicas em
tom gozador. No jogo em que vencemos ao Toluca, que estava no segundo caso, os
"mariaches" salvaram o espetáculo.
O time do River era, realmente, uma máquina. Futebol
bonito e um entendimento que só um time que joga junto há três anos pode ter.
Modestamente, jogamos trancados. A prudência mandava que isto fosse feito. De
fato, se "abríssemos", tomaríamos um baile.
Foi um jogo de rara beleza. E não foi por acaso. De um
lado estavam Rossi, Labruña, Vairo, Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro,
estavam Didi, Nilton Santos, Garrincha etc. Jogo duro e jogo limpo. Não se
tratava de camaradagem adquirida em quase um mês no mesmo hotel, mas sim da
presença de grandes craques no gramado. A torcida exultava e os
"mariaches" atacavam entusiasmados.
Estava muito difícil fazer gol. Poucas vezes vi um
jogo disputado com tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à
parte. Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores.
Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que surgiu a
gíria do "Olé", tão comumente utilizada posteriormente em nossos
campos. Não porque o Botafogo tivesse dado "Olé" no River. Não. Foi
um "Olé" pessoal. De Garrincha em Vairo.
Nunca assisti a coisa igual. Só a torcida mexicana com
seu traquejo de touradas poderia, de forma tão sincronizada e perfeita, dar um
"Olé" daquele tamanho. Toda vez que Mané parava na frente de Vairo,
os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele
seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas
exclamava: "Ôôôôô"! O som do "olé" mexicano é diferente do
nosso. O deles é o típico das touradas. Começa com um ô prolongado, em tom bem
grave, parecendo um vento forte, em crescendo, e termina com a sílaba
"lé" dita de forma rápida. Aqui é ao contrário: acentua-se mais o
final "lé": "Olééé!" – sem separar, com nitidez, as sílabas
em tom aberto.
Verdadeira festa. Num dos momentos em que Vairo estava
parado em frente a Garrincha, um dos clarins dos "mariaches" atacou
aquele trecho da Carmem que é tocado na abertura das touradas. Quase veio
abaixo o Estádio Universitário.
Numa jogada de Garrincha, Quarentinha completou com o
gol vazio e fez nosso gol. O River reagiu e também fez o dele. Didi ainda fez
outro, de fora da área, numa jogada que viera de um córner, mas o
juiz anulou porque Paulo Valentim estava junto à baliza. Embora a bola tivesse
entrado do outro lado, o árbitro considerou a posição de Paulinho ilegal. De
fato, Paulinho estava off-side. Havia um bolo de jogadores na área,
mas o árbitro estava bem ali. E Paulinho poderia estar distraindo a atenção de
Carrizo.
O jogo terminou empatado. Vairo não foi até o fim.
Minella tirou-o do campo, bem perto de nós no banco vizinho. Vairo saiu rindo e
exclamando: "No hay nada que hacer. Imposible" – e dirigindo-se ao
suplente que entrava, gozou:
– Buena suerte muchacho. Pero antes, te aconsejo que escribas algo a tu
mamá.
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O jogo terminou empatado e uma multidão invadiu o
campo. O "Jarrito de Oro", que só seria entregue ao "melhor do
campo" no dia seguinte, depois de uma votação no café Tupinambá, foi
entregue ali mesmo a Garrincha. Os torcedores agarraram-no e deram uma volta
olímpica carregando Mané nos ombros. Sob ensurdecedora ovação da torcida. No
dia seguinte, os jornais acharam que tínhamos vencido o jogo, considerando o
tal gol como válido. Mas só dedicaram a isto poucas linhas. O resto das
reportagens e crônicas foi sobre Garrincha.
As agências telegráficas enviaram longas mensagens
sobre o acontecimento e deram grande destaque ao "Olé". As notícias
repercutiram bastante no Rio e a torcida carioca consagrou o "Olé".
Foi assim que surgiu este tipo de gozação popular, tão discutido, mas que
representa um sentimento da multidão.
Já tentaram acabar com o "Olé". Os árbitros
de futebol, com sua inequívoca vocação para levar vaias, discutiram o assunto
em congresso e resolveram adotar sanções. Mas como aplicá-las? Expulsando a
torcida do estádio? Verificando o ridículo a que estavam expostos, deixam cada dia
mais o assunto de lado. É melhor assim. É mais fácil derrubar um governo do que
acabar com o "Olé".
Não poderia ter havido maior justiça a um jogador que
a que foi feita pelos mexicanos a Mané Garrincha. Garrincha é o próprio
"Olé".
Dentro e fora de campo, jamais vi alguém tão
desconcertante, tão driblador. É impossível adivinhar-se o lado por onde Mané
vai "sair" da enrascada. Foi a coisa mais justa do mundo que
Garrincha tivesse sido o inspirador do "Olé".
Arte: Gonza