sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Love is black and white

[Paulo Marcelo Sampaio é o autor destas crônicas, interpretando os protagonistas pelos quais assina; as crônicas publicadas no Mundo Botafogo são uma gentileza do autor.]

por Ivan Lessa*

Não me parecia inglesa. Britânica talvez, como a enciclopédia, mas inglesa não. Com quase 35 anos de Reino Unido, me especializei em ligar nacionalidades a rostos. Um tom de vermelho fechado dos cabelos e a moça poderia ser do País de Gales. Bochechas mais rosadas e o rosto provavelmente teria vindo da Escócia. Fiquei a fitá-la e ouvi seu sotaque. Como ela estava de costas, era a única maneira de descobrir o enigma que só interessava a mim mesmo. Mas não foi pela voz que matei a charada. Ela usava um escapulário de São Patrício, o padroeiro da Irlanda do Norte. A imagem do barbudo se movera para as costas brancas da jovem.

Como os times não tinham entrado em campo, resolvi ir ao banheiro. Meus frágeis pulmões pediam ar. E eu não queria incomodar ninguém com minha tosse. Ainda bem que o Maracanã estava vazio. Pra sair do seu assento em dia de casa cheia deve ser uma parada. É uma tal de licença pra cá, um por favor pra lá, desculpe se incomodo mais adiante. Quando voltei, pulmões já um pouco tranquilizados, finalmente vi o rosto da moça, lá pelos 21 anos. Tinhas muitas sardas, uma boca carnuda e um nariz fino. Seria facilmente musa de Sig, o ratinho que Jaguar e eu inventamos. Aquele não podia ver um rabo de saia, mas talvez não se interessasse por esse rosto anônimo. Porque gostava mesmo das musas da mídia.

Seu vestuário estava bem adequado para aquela tarde quente. Uma blusa de malha leve, com listras horizontais em preto e branco. Será que um dia o Botafogo vai usar uma camisa desse tipo? Tenho sabido que as camisas novas geram muita polêmica. Os tradicionalistas insistem que o clube deve usar só a camisa alvinegra. Outros criticam a camisa branca, porque embaixo dos suvacos há detalhes em dourado. Há ainda os que vociferam contra o dourado que cobre todo o peito na camisa preta. Quando saí do Brasil, em 1978, meu time usava, na maioria das vezes, o preto e branco. Acho muito pior aquelas propagandas horrorosas. Mas essa é outra história.

Voltemos à mocinha. Ela começou a estranhar a intensidade com que eu olhava pra ela. Barbudo como São Patrício, poderia ser seu avô, pensou a gringa. Tantos olhares tinham um motivo. A frase estampada na camisa: ‘Love is not black and white’. Em que planeta ela estava? Não tinha idéia de que estava na torcida de um time em preto e branco? Ah, as pessoas com menos de 25 anos não têm a menor ideia do que sejam os bons tempos. E nos meus tempos de Maracanã, ainda com arquibancadas de cimento, não só o Botafogo, mas a vida era em preto e branco, sem technicolor. E isso me trouxe uma certa melancolia. Melancolia e uma certa saudade. Saudade de não ter conhecido meu bisavó. Escritor e gramático, Júlio César Vaugham criou a bandeira do estado de São Paulo, Muito parecido com a nossa. E parecida com a sua camisa, gringuinha sardenta.

Desde que saí do Brasil, em 1978, só voltei uma vez, em 2006. Em casa de Maria Lucia Rangel reencontrei amigos que não via há muito tempo. É de Lucio, pai de Maria Lucia, uma grande frase. ‘Não gosto de futebol. Gosto é do Botafogo’. Eu também, mesmo morando no berço do futebol, não gosto muito do esporte. Gosto é do Botafogo, do Botafogo dos tempos remotos. Sou colecionador de reminiscências. Parei no início dos anos sessenta. Ali tinha Garrincha, tinha a nossa Enciclopédia Britannica, o grande Nilton Santos, o Didi. Também havia a batida do João Gilberto, a harmonia do Tom Jobim. O otimismo do Juscelino. Quando estava por aqui, um conhecido meu me mandava fotos – todas em P&B – da vida no Rio de Janeiro naquela época. Bondes, lotações, letreiros da Ducal, propagandas da Crush. Decavês, Gordinis e caminhões Fenemê circulando por ruas e estradas. Eram tempos bons. Ali três entre quatro políticos não sabiam que país era o Brasil. O outro pensava que era a Suécia. Por isso cansei. E fiquei em Londres até morrer.

O vizinho do lado, nervoso, me avisa. É o time reserva, é o time reserva, olhos esbugalhados. Do outro lado, não fosse o placar eletrônico, eu pensaria tratar-se da seleção da Comlurb. Se torcedores do Botafogo reclamam do uniforme, o que dizer dos rivais? Eles parecem não se importar. Há muitas camisas laranjas nas arquibancadas do lado de lá. Fico sabendo também que o elenco do Botafogo se divide em dois. Os titulares disputam a Libertadores. É um torneio importante, que o clube não disputa há 17 anos. Os reservas jogam o Estadual, explica. Há algo incompreensível nessa lógica, diz. No último jogo, continua o didático torcedor, os titulares apresentaram um futebol de reservas no empate contra o volta redonda.

Dizia lá em cima que sou das reminiscências. Dia desses, lá no céu, relembrava com minha mãe o dia em que ela conheceu o Heleno. Foi Di Cavalcanti que o apresentou à Elsie no Bar Bonfim. Eu, que nunca fui de paparicar celebridades, fiquei eufórico. Minha mãe, o Heleno falou com você? Segurou na sua mão? Ainda hoje tenho uma relação de fá com ídolo. Sempre que Heleno passa por mim fico quase sem fala. Voltemos ao jogo. Era mesmo o time de reservas? E esse Henrique? Meu vizinho explicava que ele era sempre um dos mais criticados do elenco. Até bem pouco tempo não conseguira fazer um mísero gol em um ano de clube. E hoje se tornara um carrasco. Nada como o amanhã. Meu tempo é curto. E o jogo acaba. Com direito a pênalti defendido. Tenho que subir. Passo pela irlandesa ruivinha, a la Sarah Ferguson, a duquesa de York. ‘I beg your pardon, my lady. Love is black and white’. E aponto para sua blusa. A gringa me dirige um sorriso de Monalisa. Posso subir feliz.

*Ivan Lessa é jornalista

Notas do editor:
1. O texto acima mistura realidade e ficção.
1. Obrigado, Maria Lucia, por ceder a foto que ilustra o post.
3. Graças a Alexandre Roldão, consegui colocar a marca d’água na foto.

Paulo Marcelo Sampaio

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