[Paulo
Marcelo Sampaio é o autor destas crônicas, interpretando os protagonistas pelos
quais assina; as crônicas publicadas no Mundo Botafogo são uma gentileza do
autor.]
por Oldemário Touguinhó*
Quem me
avisou que o Botafogo ia estrear de fato na Taça Libertadores foi João Ignácio
Mûller, o Jim. Desde que chegou aqui, em agosto do ano passado, temos
conversado muito. Médico de muito prestígio, sempre procurava ajudar o clube.
Não queria saber como. Assim nasceu nossa afinidade. Na década de 1970, ele se
aproximou de Xisto Toniato, um torcedor fanático, comerciante que fornecia
carne para os melhores restaurantes do Rio de Janeiro. As famílias tradicionais
do clube estavam acostumadas a saborear suas picanhas e mignons, mas torciam o
nariz para Toniato. E ele nem aí. Como eu, quando falavam mal do Emil Pinheiro.
Eu, que ralei com minha Lambretinha comprada a prazo – ela me ajudava a tornar
mais curto o caminho entre a quitanda em que trabalhava , na Lapa, e a redação
do Jornal do Brasil – ficava fulo da vida com esses preconceitos. E daí que o
cara era bicheiro? Tanto bacana que poderia ter ajudado o Botafogo e não
ajudou, ora bolas. Quando chegou ao clube até bola Emil teve que comprar.
É
considerado veterano quem está por aqui há dez anos. Como subi em 2002, cabe a
mim dar as boas vindas a quem chega. Engana-se quem pensa que o céu é uma
calmaria só. Todos os dias procuro uma história. Já que Jim me anunciou que
enfrentaríamos o time do Papa, há clima para confissão. Não estava muito
preocupado com a estréia do Botafogo. Não que não estivesse preocupado. Não
tinha tempo pra me preocupar. Futebol, pra mim é, antes de prazer, trabalho. E
tinha uma pauta boa aqui em cima. Dava os últimos retoques na matéria que
sairia mais tarde no ‘Diário de São Pedro’, uma reportagem sobre os 89 anos de
Heleno de Freitas. “Então, Oldemário, você pode repercutir com o Heleno como é
enfrentar um time argentino, a virulência deles”, sugeriu João Ignácio. Achei
uma boa idéia. Coincidentemente veio chegando Heleno, numa beca de
impressionar: terno de casimira, camisa de puro algodão, gravata de cetim.
Estava num bom humor incomum. Mas, ao ouvir minha pergunta, logo se encrespou.
“Não fala merda. Nas areias de Copacabana é que o bicho pega”, resmungou, apontando
para o velho amigo Neném Prancha.
O velho
roupeiro está um pouco distante, olhando o mar. Sim, no céu também tem mar.
Parece animado com o vento, que pode trazer robalos e sardinhas, dizem os
pescadores da Colônia do Posto Seis. Decidimos ir até lá. Tenho tempo porque a
matéria já está pronta. Entrevistei Sandro, Saldanha, Otávio de Moraes, Nilton
Santos, Oswaldo Baliza. Todos conviveram com Heleno. Bem ou mal. Mas quem sabe
não tiro algo a mais desse encontro? Um homem divide o banco com Neném Prancha.
Parece tímido. “Seu Neném, o sujeito aqui – e aponta pra mim – quer saber da
dureza dos argentinos”, ironiza Heleno. Neném dá de ombros. Explico que tudo na
vida tem suas dificuldades. E conto do dia em que consegui uma foto de um
jogador gigante da seleção russa de basquete. A edição do Jornal do Brasil já
estava rodando na gráfica. Aí menti. “Foi o Lemos que mandou enfiar isso aí”.
Lemos era o Carlos Lemos, na época um carioca de Vila Isabel, pai de três
filhos e já secretário de redação. Minha insubordinação, pro bem do leite das
crianças, provocou um largo sorriso no chefe.
Minha
história, contada pra distrair e desanuviar o ambiente tenso, não faz sucesso.
Antes de retomar a conversa, ouvimos a voz do sujeito tímido. Ele se diz
preocupado com o jogo de logo mais. Mas pergunta se por acaso alguém se anima
em descer. Dali todos estão um pouco desanimados. Conto que sou do tempo em que
os jogadores eram mais acessíveis. Ninguém tinha assessor de imprensa. Não
existiam as tais coletivas de imprensa. Hoje futebol é negócio. Lá de dentro da
sala de estar, Carlos Imperial avisa, com aquela voz possante de ‘dez, nota
dez’. “Vai começar”. Todos corremos. Escolhemos as poltronas, aleatoriamente.
Fico ao lado daquele senhor antes encabulado. Bola rolando já há um tempo e, de
repente, ele começa a soluçar. Pergunto o que houve. “É que estou me lembrando
da última vez que vi o Botafogo lá embaixo. ‘Tava muito mal no hospital. Pedi
ao meu filho que me levasse pra casa. Foi no meu quarto que vi o Botafogo
sapecar um 2 a 0 no flamengo e ir pra final da Taça Guanabara do ano passado”.
Interrompo. ‘Chuta, Jorge Wagner, chuta’. Ferreyra pega a sobra. Gol. ‘Olha aí
a garra dos tais argentinos aí, Heleno!”, ouso provocar o aniversariante.
Tamanha a balbúrdia ele não escuta. Estou livre de qualquer desaforo.
Na
volta do intervalo, ninguém muda de lugar. Meu vizinho se impressiona com a
garra e a pegada do time. “Muito parecido com o Força e Saúde, do futebol de
praia, lá da República do Peru”, compara Stelio Teixeira. Não demora muito e
sai outro gol, num chute de efeito. “Meu filho sempre pedia pros jogadores dele
fazerem isso. É mais fácil porque a bola é mais leve”, revela. Ao lembrar de
Leonardo, Stelio deixa escorrer uma lágrima. Disfarça. Melhor assim. Não tenho
tempo de consolá-lo. ‘Me desculpe, gente, tenho que ir’, aviso, ‘tenho que
contar tudo isso. Vocês vão fechar a reportagem. As máquinas não podem
esperar’.
*Oldemário
Touguinhó era jornalista
1 comentário:
IMPERDÍVEL ESTÁ LEITURA
SAUDAÇÕES ALVINEGRAS GLORIOSAS
MARCOS VENICIUS
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