por FLÁVIO CARNEIRO
Botafoguense, escritor, roteirista e professor de literatura na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Autor de ‘A confissão’, entre outros. Vive em Teresópolis (RJ). Página na internet: www.flaviocarneiro.com.br
Nas crônicas que escrevia semanalmente para a Manchete Esportiva, Nelson Rodrigues vez ou outra elegia o
personagem da semana. Era quase sempre um jogador o tal personagem, alguém que havia
se destacado na rodada e merecera sua atenção. Pois numa dessas crônicas,
Nelson elegeu como personagem da semana não um jogador mas uma torcida: a do
Botafogo.
A certa altura da crônica, o tricolor Nelson afirma que “nem todo mundo
pode imaginar o que é ‘ser Botafogo’. Vejam um vascaíno, um rubro-negro e um
tricolor. Eles se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Reagem diante da
derrota, da vitória e do empate de maneiras bem parecidas. Suas euforias e
depressões são equivalentes. Mas há, no botafoguense, coisas que só ele tem e
que o distinguem de tudo e de todos”.
Numa crônica anterior, Nelson já havia escrito que há sempre, nas vitórias
do Botafogo, “uma pungência, um patético que faltam às demais”. Tanto que ele,
naquela semana, passa por cima de uma goleada do América sobre o Corinthians
para falar da vitória de 2x0 do Botafogo sobre a Portuguesa. O jogo, segundo o
cronista, tinha tudo para ser uma festa: o alvinegro, capitaneado por Didi e
Garrincha, passeou em campo, dominando plenamente o adversário, e poderia, sem
exagero, ter ganhado de 10x0. A tal ponto que Nelson se perguntou, ao final da
partida, temendo pela sorte do seu Fluminense: “o que seria de nós se o
Botafogo jogasse sempre assim?”
A partida, no entanto, terminou apenas num dramático, num suado 2x0. Por
quê? Responde o cronista: “tudo é mais difícil para o Botafogo e o povo, com
seu instinto agudo, costuma dizer: ‘Há coisas que só acontecem ao Botafogo!’
Exato”. E Nelson decifra o enigma ao dizer que o problema todo é que o time
“tem contra si a fatalidade, mesmo quando assombra, mesmo quando esmaga, mesmo
quando arrebenta.”
O botafoguense Arthur Dapieve sabe bem o que é isso. Numa crônica recente,
intitulada Esse nosso amor,
Dapieve comenta o espetáculo dantesco que teve como palco o Estádio dos Aflitos
(o nome do estádio: ironia do destino?), em Recife, na partida Botafogo e
Náutico pelo campeonato brasileiro. Aliás, você por favor me responda, caro
leitor: algum jogador do seu time já foi preso em pleno gramado e levado à
força por policiais pelo meio da torcida adversária? E caso isso tenha
acontecido, o presidente do seu time foi atrás do jogador para protegê-lo e
acabou preso também, como naquele jogo? Duvido.
Nessa crônica, Dapieve escreve: “tenho dois amigos jornalistas paulistas e
são-paulinos que trabalharam no Rio de Janeiro durante algum tempo. Ambos se
tornaram botafoguenses porque se assombraram com a nossa incrível concentração
dramática. Eles dizem que em um ano de Botafogo acontece o suficiente para
encher cinco anos do São Paulo. Sem os títulos, infelizmente”.
Imprevisível
Se torcer para um time de futebol é sempre uma aventura, torcer para o Botafogo é um pouco mais do que isso. Nunca se sabe como vai acabar a partida, se é que vai acabar. Aliás, não se sabe exatamente nem como é que vai começar. Quer um exemplo? Essa aconteceu comigo. Em 1996, o time estava disputando a Taça Teresa Herrera, na Espanha, e ia jogar contra o Juventus, da Itália. Só consegui chegar em casa no início do segundo tempo e quando liguei a televisão vi o Juventus com sua camisa tradicional (com listras verticais, brancas e pretas) e o adversário (supostamente o Botafogo) de camisa azul!
Levei um tempo até entender aquilo. Parecia outro time. Mas não, lá estava
o figuraça Túlio Maravilha, na sua vistosa camisa cor de anil. O que aconteceu:
o árbitro achou que as camisas do Juventus e do Botafogo eram parecidas e fez
um sorteio para ver quem mudava. O Botafogo foi o escolhido. Como não tinha
levado uniforme reserva, pegou emprestadas as camisas do… La Coruña!
Agora me responda com sinceridade: é normal isso? E o Botafogo ainda foi o
campeão do torneio! A valer a superstição — outro traço típico da torcida
botafoguense — o time só deveria jogar de camisa azul, ou pelo menos só deveria
disputar outras vezes esse torneio com camisa dessa cor.
Por curiosidade, resolvi investigar se isso já havia acontecido antes.
Claro que não me surpreendi quando descobri que sim, várias vezes.
Alguns exemplos. Contra o Americano de Campos, em 1923, o time usou —
repare bem — o segundo uniforme do Andarahy Athletico Club! Cor da camisa?
Verde! Dez anos depois, mesma confusão de uniforme e o Botafogo novamente joga
com camisas emprestadas, agora contra o Engenho de Dentro, entrando em campo
com camisas vermelhas (dessa vez sequer se tem registro de quem emprestou o
uniforme).
Em 1968, em pleno Maracanã (portanto com mando de campo naquela partida), o
time entra com a tradicional camisa listrada, o Grêmio também (com a sua de
cores preta, branca e azul) e quem é que vai mudar de uniforme? Adivinha. O
Botafogo pega emprestadas as camisas azuis da Adeg (a associação desportiva do
antigo estado da Guanabara).
Já na década de 70, o episódio se repete. O estádio é o mesmo Maracanã, o
jogo é contra o Paissandu, de Belém. A Adeg agora virou Suderj, quer dizer, o
nome é diferente mas a função continua a mesma: emprestar camisa para o
Botafogo — dessa feita, amarelas!
Nave louca
Talvez por isso, por essa absoluta imprevisibilidade, o Botafogo seja, até
prova em contrário, o time que mais combina com quem lida com literatura. Se
você, meu amigo ou minha amiga, é poeta, contista, romancista ou exerce a
crítica literária e ainda não tem time, não se acanhe: as portas estão abertas.
Entre, aperte os cintos e se prepare para embarcar na nave louca!
Não era assim que pensava, por exemplo, o Paulo Mendes Campos? É dele a
frase: “Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E
a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária”.
E o Vinicius de Moraes? Diz ele que escolheu torcer pelo alvinegro por um
muito nobre motivo: alguns nomes de ruas do bairro de Botafogo. Nomes sublimes,
sugerindo belas senhoras: Bambina, Mariana, Clarisse.
Dizem que o poeta, em seus tempos de diplomata, conheceu em Los Angeles o
magnata Mr. Buster, arquimilionário que se espantou quando o brasileiro decidiu
abandonar o poder e a grana que lhe oferecia o cargo e voltar para o Rio. Mais
tarde, Vinicius escreveria um poema criticando a vida de luxo de Mr. Buster e
afirmando os motivos de sua decisão. Entre eles: torcer para o Botafogo.
E aí estão escritores contemporâneos que não me deixam mentir. De estilos e
gerações variados, eles se espalham pelo país e até pelo exterior, como a
Adriana Lisboa, botafoguense por herança paterna, materna e o que mais possa
existir, e que hoje espalha a glória do clube no país em que futebol se
chama soccer.
Agora, nem a Adriana nem o Luis Fernando Verissimo têm manias de torcedor,
o que é digno de nota em se tratando de botafoguenses. Quer dizer, o Verissimo
só não gosta de falar durante o jogo, mas o Verissimo não querer falar não
chega a ser, convenhamos, uma grande novidade. O que é diferente, no caso, é que
ele também não gosta que falem com ele enquanto o Botafogo (ou o seu
Internacional) está jogando.
De manias o Jorge Viveiros de Castro diz que se livrou, depois de tantos
anos e várias mandingas fracassadas. Tudo bem que continua roendo unha,
xingando juiz, mandando algum jogador para aquele lugar, coisas assim, normais.
Agora, mania não tem mais não. Cansou. Quer dizer, dia desses ele foi flagrado
assistindo a um jogo do Botafogo, na televisão, encostado na parede e plantando
bananeira. Jorge explicou que era apenas um exercício de ioga, para amenizar a
tensão. Sei.
Estratégias
Fernando Molica é um botafoguense autêntico, o que equivale a dizer que não
regula muito bem da bola (com o perdão do trocadilho). Repetir (ou não)
determinada camisa, rezar para que, depois de um primeiro tempo ruim, algo o
obrigue a mudar de lugar no estádio (não pode ser por vontade própria, tem que
acontecer alguma coisa), variar (ou não) de amigos na arquibancada, pedir aos
céus para ver, no dia do jogo, alguém com a camisa do Botafogo antes que
apareça alguém com a camisa do adversário são algumas de suas, digamos,
estratégias.
O historiador Raul Milliet Filho, autor de ‘Vida que segue: João Saldanha e as Copas de 1996 e 1970’, não
gosta de ver jogo do Botafogo na televisão. Diz que prefere o estádio porque
dali pode ter uma ampla visão do campo e analisar taticamente a partida. “Na
televisão você o lance, mas não vê o jogo”, justifica. Tudo bem, mas que pode
haver algo estranho por trás disso, pode. Para alguém que jamais cruza as
pernas quando está vendo jogo do Botafogo, tudo é possível.
Essas histórias todas levam a crer que, se dependesse de manias, o Botafogo
seria campeão mundial todos os anos, com folga. E por que não é? Porque se
trata de tolice, mera superstição, dirá você, leitor incrédulo. Pois tenho
outra hipótese para a explicação do fenômeno: uma esquisitice atrapalha a
outra. Isso mesmo, uma está anulando a
outra. E são tantas que, claro, nos perdemos.
Faço aqui, portanto, nesse momento histórico, uma proposta que pode
devolver ao alvinegro seus dias de glória: uma uniformização das manias. Se
estão aí a querer uniformizar a língua portuguesa, que façamos também isso, nós
que na história já trocamos tantas vezes de uniforme: uma gramática das manias
botafoguenses. Sentar bem no meio do sofá: certo ou errado? Vestir a meia do
avesso na véspera do clássico: certo ou errado? Entrar de lado na catraca do
Maracanã: certo ou errado? Quem sabe funciona.
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