segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Bocage no futebol


por NELSON RODRIGUES | Jornalista desportivo (1912-1980)

In Manchete Esportiva, 14 de janeiro de 1956

Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça — não havia palavrão que ele não praticasse.

Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: “Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!” E o Fulano assumiu, aos meus olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo da boca suja estava com a razão.

Sim, amigos: — cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo: — os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jocunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.

Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: — retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou torcedor é um Bocage.

Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano.

O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua.

Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.

Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar, aqui, o caso de Jaguaré*. No seu tempo, não havia Departamento Médico, e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria, desfraldando cáries gigantescas.

Assim era Jaguaré: não tinha dentes, mas só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: a época de Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol.

O sujeito que tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um Rockfeller, de tanga, mas Rockfeller. Até que, um dia, apareceu, por aqui, o emissário de um clube estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas dignas de um rajá.

A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela Espanha e, até, por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como jogar sem a pornografia luso-brasileira? sem as expressões obscenas que dinamizam, que transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma traição.

E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos nomes feios intransportáveis. Finalmente, não pôde mais: veio correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria, mas feliz porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos.

* Jaguaré foi um folclórico goleiro do Vasco no começo dos anos 30.

Nota do Mundo Botafogo: Manoel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage (1765-1805) foi um poeta português romântico, satírico e erótico, considerado o maior representante do arcadismo lusitano e o precursor do romantismo.

Disponível em https://medium.com/%C3%A9-mais-do-que-um-jogo/bocage-no-futebol-por-nelson-rodrigues-abc9ef48c914

4 comentários:

Sergio disse...

Sensacional, muito boa crônica. ABS e SB!

Ruy Moura disse...

A maioria dos grandes jornalistas das décadas de 1950, 60 e ainda 70 eram botafoguenses. Mas confesso que genial mesmo, só o NR. Um verdadeiro gênio. Truculento, difícil, reacionário - como ele próprio se julgava -, mas genial! As peças de teatro dele são absurdamente fantásticas. E o que ele e o irmão Mário Filho escreveram sobre o Botafogo é de arrepiar em catadupas de emoções botafoguenses. É claro que ele e o irmão Mário tinham um defeito incontornável: eram tricolores...
Abraços Gloriosos.

Émerson disse...

Ruy,

Acho que Mário Filho era framenguista.
Saudações Gloriosas!

Ruy Moura disse...

Olá, Émerson!

O Mário escreveu 'Histórias do Flamengo', e talvez por isso o associem ao CRF como clube da sua preferência. Porém, não existe nenhuma declaração dele mostrando a sua preferência. Ao contrário, li de um jornalista esportivo que os irmãos Rodrigues eram todos tricolores. Admiti ser verdade, mas, claro, a dúvida permanece porque o Mário nunca se declarou enquanto torcedor. Ademais, escreveu excelentes textos sobre o Botafogo. Porém, se ele realmente era flamenguista, então... é muitíssimo mais grave! (rsrsrs)
Abraços Gloriosos.

Valerá a pena ver de novo?

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