segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O Rio dos cavalos de ferro

[Nota preliminar: O ciclismo no Rio de Janeiro, embora sem a dimensão do remo e do turfe, era um dos desportos mais populares até ao final do século XIX. O Botafogo Football Club dispôs, durante muitos anos, com relevo para a década de 1940, um departamento de ciclismo (cf. Etiqueta ‘z.ciclismo’ do Mundo Botafogo) e participou em inúmeras competições ao longo dos anos. Acerca da matéria reproduz-se para os nossos leitores o excelente texto de André Maia Schetino sobre o Rio dos «cavalos de ferro».]

 

por ANDRÉ MAIA SCHETINO | Professor de História da Educação Física no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, Minas Gerais

 

A bicicleta chegou à cidade no século XIX e ficou popular com competições inusitadas.

 

As competições de ciclismo já foram uma das atrações mais divertidas e prestigiadas pelos cariocas. Mas era tudo bem diferente do esporte que conhecemos hoje.

 

No fim do século XIX e no início do XX, os “cavalos de ferro”, como eram conhecidas as bicicletas, conquistaram a cidade aristocrática. Se no primeiro momento foram adotadas como um hábito elegante cultivado pela elite, logo estariam arrebatando torcidas e movimentando bancas de apostas.

 

Atualmente, o Rio de Janeiro dispõe da maior malha cicloviária do país. São 140 quilômetros de ciclovias, além de centenas de bicicletários.

 

Nos tempos do Império, porém, a bicicleta era artefato de luxo – para se adquirir uma, era necessário viajar até a Europa e desembolsar uma boa quantia. Por isso, as primeiras pedaladas do Rio ficariam restritas às “melhores famílias fluminenses”.

 

Criada em 1861, em Paris, pelos irmãos Pierre e Ernest Michaux, a bicicleta ganhou inicialmente o nome de velocípede (velo = veloz; pieds = pés). O nome “bicicleta” (do francês bicyclette) viria anos mais tarde, com a invenção do mais famoso modelo, com engrenagens acionadas por correntes.

 

Antes, o pedal era fixado no eixo da roda dianteira, e um giro de pedal equivalia a um giro da roda. Por isso, os modelos de velocípedes tinham a roda dianteira com diâmetro bem maior que a traseira, com o objetivo de aumentar o deslocamento a cada giro de pedal. O banco era posicionado praticamente acima da roda dianteira, o que fazia com que o ciclista se posicionasse assentado, com o tronco praticamente a 90 graus em relação ao banco.

 

Pouco a pouco, o veículo foi sendo incorporado à vida e à paisagem da capital carioca, tornando-se um meio de transporte eficiente para enfrentar o trânsito e proporcionar um aprazível passeio à beira-mar.

 

Logo foram organizadas as primeiras competições na cidade. Os jornais da época mostram o papel dos clubes esportivos na promoção da velocipedia, como era conhecido o ciclismo. No fim do século XIX, a cidade vivia a “febre” das corridas a pé – os primórdios do atletismo –, realizadas em agremiações como o Club Athletico Brazileiro e a Real Sociedade Club Gymnastico Portuguez. Alguns desses clubes começaram a organizar também provas de ciclismo. Em 1885, por exemplo, o Sport Club Villa Izabel anunciava “grandes corridas a pé e em velocípedes” em seu prado.

 

As bicicletas eram ainda raras na cidade; por isso, reuni-las não era tarefa fácil. Os melhores momentos para isso eram as festas e quermesses promovidas pelos clubes, onde se anunciavam páreos de corridas em que qualquer um que chegasse com uma bicicleta poderia competir, inclusive os não-associados.

 

O ciclismo no Brasil recebeu um grande impulso quando, ainda no ano de 1885, foi criado o Club Athletico Fluminense, situado no bairro da Tijuca e destinado à elite carioca. A festa de inauguração aconteceu no dia 12 de julho e contou com a presença de D. Pedro II. As provas, realizadas mensalmente e em festas especiais, eram destinadas a meninos de até 14 anos, que percorriam entre 500 e 600 metros, e homens adultos, que percorriam entre 1.200 e 1.800 metros.

 

Os prêmios para os primeiros colocados nos páreos ciclísticos eram constituídos basicamente de “brindes” ou “prendas”. As competições promovidas pelo clube distribuíam prêmios, como uma escrivaninha de prata e um canivete de ouro, ganhos, respectivamente, pelos meninos Arino do Vabo e Mário de Sá nas competições de fevereiro de 1886. Ainda não existia a tradição da premiação com troféus e medalhas, que começa a acontecer alguns anos mais tarde.

 

Era importante que todos os sócios que participassem das competições fossem premiados. Para isso, os clubes promoviam em festas, ou mesmo em competições regulares, páreos nas modalidades “com vantagens” e “perde-ganha”. No primeiro, a partir de critérios como diferença de idade, tamanho e força, os competidores largavam com vantagens de alguns metros sobre os outros. No segundo, como o próprio nome diz, ganhava o prêmio aquele que perdia o páreo.

 

Iniciativa fértil para situações cômicas: os competidores iam o mais devagar possível, não podendo colocar os pés no chão ou retroceder no percurso. Foi assim na festa realizada pelo Club Athletico Fluminense em maio de 1886, quando, no quarto páreo, “corrida de perde-ganha, em velocípedes; depois de engraçados episódios perdeu, isto é, ganhou o Sr. Campos Júnior”.

 

As provas naquele clube duraram até 1887, quando foi decretada sua falência. Sócios ligados ao ciclismo formam então o Veloce-Club, primeiro dedicado exclusivamente ao esporte. Como o Veloce não tinha sede própria, as corridas inaugurais aconteceram na raia do Rio Cricket Club, na Rua Payssandu, bairro do Flamengo, pela segunda e última vez com a presença de Suas Altezas Imperiais.

 

Quando o Rio se torna a capital da República – especialmente a partir do final de 1892 –, as bicicletas e o ciclismo vivem um período de prosperidade. Era de interesse dos republicanos mostrar que o Rio era uma capital moderna, e por isso o apoio ao mais moderno dos esportes da época: o ciclismo. Nesse período, surgem os primeiros espaços dedicados exclusivamente a competições de bicicletas: os velódromos. O primeiro e mais importante foi o Vellodromo Nacional, situado na Rua do Lavradio, centro do Rio.

 

Inaugurado em 1892, tinha infraestrutura completa para o esporte: luz elétrica (grande novidade da época), casa de apostas e um mecânico contratado na Europa para a manutenção e os reparos nas bicicletas. Além disso, oferecia serviço de aluguel e lições de ciclismo com um professor que prometia ensinar a andar de bicicleta em apenas oito lições.

 

As corridas no Bellodromo eram um sucesso. Durante muito tempo, foram realizadas diariamente. Um ano depois surgia o Bellodromo Guanabara, no bairro de Botafogo, e em 1897, o Frontão Velocipédico Fluminense. As corridas eram marcadas por acontecimentos inusitados. Assim como na maioria das modalidades da época, um dos atrativos do ciclismo eram as apostas. Com elas vinham alguns problemas, os chamados “tribofes”: confusões entre torcedores nas corridas.

 

Trapaças e discussões eram frequentes, e a presença da polícia era requisitada para conter os ânimos dos mais agressivos. Torcedores (e apostadores), digamos, menos éticos, não tinham pudor em esticar ou lançar suas bengalas em direção às rodas das bicicletas para derrubar os ciclistas nas corridas do Velódromo Nacional, em 1893.


O apogeu dos velódromos era apenas um dos indícios do desenvolvimento do esporte. Ao mesmo tempo, surgiram clubes e associações que, além de participar das competições, organizavam passeios ciclísticos pela cidade. Entre eles destacavam-se o Velo Club (de 1897), o Bicyclette Club (de 1897) e o Club Athletico Major Dias Jacaré (de 1901).

 

As competições eram disputadas não só nos velódromos, mas também nos parques públicos. A Praça da República e a Quinta da Boa Vista eram locais constantes de corridas e passeios. Também se promoviam excursões aos então distantes extremos da cidade, como a Gávea e Copacabana.

 

As competições tinham se desenvolvido bastante. Os ciclistas exploravam cada vez mais os limites de seus corpos e de suas máquinas. A maioria das provas ainda era de curta distância, mas surgiam também desafios de 10, 16 e até de 30 quilômetros. As premiações também mudaram: agora predominavam as medalhas e, em ocasiões especiais, como datas comemorativas, objetos de arte ou dinheiro.

As corridas femininas não chegaram a emplacar. A presença das mulheres era exaltada apenas nas arquibancadas e nos camarotes, com “suas belas toilettes que abrilhantavam o espetáculo”. Mesmo não competindo, elas também pedalavam – o passeio de bicicleta era uma oportunidade para mostrarem sua graça, delicadeza e elegância.

 

No ano de 1897, várias lojas já importavam as principais marcas europeias e norte-americanas, como Clement, Peugeot e Monarch. Adquirir uma bicicleta ainda era caro, porém bem mais fácil do que nos tempos do Império. A maioria das lojas oferecia o serviço de vendas a prestações, por consórcio. Paralelamente crescia também o mercado de bicicletas usadas, mais acessíveis, contribuindo para que pessoas de camadas sociais mais baixas pudessem ter acesso ao que antes era um luxo. Outra maneira barata de adquirir uma bicicleta dependia da sorte: adquirir um bilhete das famosas “ações entre amigos”, rifas que eram extraídas pelos números das loterias da época.

 

O ciclismo não chegou a ser um esporte popular no Brasil, mas durante algumas décadas foi um espetáculo que trouxe para o Rio uma das últimas invenções europeias. Em pouco tempo, a bicicleta deixaria de ser novidade e a cidade se acostumaria a ver suas ruas lotadas de “cavalos de ferro”.

 

“Os que não aprendem com a História vão cometer sempre os mesmos erros.”

 

Bibliografia:

PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Ciclovias cariocas. Rio de Janeiro: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2005.

Saiba mais em WEBER, Eugene. “Le Petit Reine”. In: França Fin de Siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

2 comentários:

jornal da grande natal disse...

Ótimo texto. Parabéns ao autor.

Ruy Moura disse...

Verdade, Vanilson. E eu sou fã de ciclismo, um dos desportos em que o/a atleta enfrenta a profunda solidão de escalar montanhas pedalada a pedalada em pleno esforço ou os contrarrelógios ainda mais solitários na luta contra o tempo.
Abraços Gloriosos.

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