segunda-feira, 22 de julho de 2024

O Banqueiro e o Passarinho

[Nota preliminar do Mundo Botafogo: (1) o artigo que se segue, de Araújo Netto, transcreve-se exatamente como foi escrito à luz da ortografia da época; (2) a posição assumida por Paulo Azeredo, responsável por oito dos doze campeonatos cariocas ganhos pelo Botafogo entre 1907 e 1962, evidencia a exigência de respeito ao Botafogo – mesmo em se tratando de Garrincha –, tal como Carlito Rocha também o fez em diversas ocasiões da sua vida dedicada ao Glorioso; (3) este é o Botafogo que eu conheço, que obriga a ser respeitado e respeita os outros.]

por ARAÚJO NETTO | O Cruzeiro, nº 27, 1963

Um jornal francês informou aos seus leitores, nos dias da guerra Mané x Botafogo, que o Banco Nacional do Brasil e o seu presidente tinham interrompido suas atividades para evitar a fuga do mais fabuloso passar brasileiro: o incomparável Garrincha.

A fantasia francesa foi longe demais. O Banco do Brasil não parou, muito menos o seu presidente. Mas entre as personagens centrais da grande questão houve, sim, um banco e um banqueiro que nunca faltaram no noticiário: o Banco Nacional de Minas Gerais e o banqueiro José Luiz Magalhães Lins, que não pararam, mas tiveram seus hábitos e horários profundamente alterados em todo o desenrolar da crise.

A imponência e a austeridade do banco, de seus longos corredores, de suas paredes de mármore, de seus gabinetes, foram, nos sete dias decisivos da crise, perturbadas e alvoroçadas pelas manchetes sensacionais e pela presença irreverente de seus fabricantes.

O banqueiro – homem jovem, prático, meticuloso e objetivo, torcedor do América Futebol Clube – no desfecho do caso quase se assusta com a contabilidade dos minutos e das horas (45 ao todo) gastas no grande esforço para devolver a Garrincha e ao Botafogo a paz que haviam deixado escapar.

A conclusão do balanço, porém, deu ao banqueiro uma certeza confortadora – a do lucro extraordinário que obtivera na operação: enredando-se na trama, êle fêz muito mais do que servir ao futebol, paixão popular, porque resguardou e defendeu um môço atordoado e indefeso – Garrincha, homem e ídolo do povo.

Como e por que se explica a participação do banqueiro respeitável na novela popular?

Garrincha entrou pela primeira vez no gabinete do banqueiro há quase um ano, pouco depois de sua volta triunfal do Chile, levado por três amigos jornalistas.

Garrincha guardava, em sua casa e em Pau Grande, uma pequena fortuna em dólares e em cruzeiros. Dinheiro imobilizado, inaplicado, corroído pela inflação. Os jornalistas sugeriram-lhe que se aconselhasse com o banqueiro.

Em pouco tempo, como a um passe de mágica, dólares e cruzeiros multiplicavam-se, para alegria e espanto de Garrincha.

Em pouco tempo, José Luiz Magalhães Lins, para Garrincha – o passarinho – era muito mais do que um banqueiro. Era um bruxo. Dono de uma milagrosa varinha de condão.

Numa noite de domingo, quinze dias atrás, Garrincha voltava da Ilha do Governador, em seu carro, quando resolveu ligar o rádio para ouvir um pouco de música. No mesmo instante o aparelho pôs-se a falar. Mas palavras duras, grosseiras, de um locutor panfletário. Tôdas as acusações, de agressões a êle. Era só um mercenário a explorar o Botafogo – ficou sabendo pelo locutor.

Garrincha aceitou a provocação. Quando chegou ao estúdio da emissora, sua intenção era dar uma surra no insolente. Com a conversa, acalmou-se. Explicou-se, defendeu-se, acusou o Botafogo. Aceitou o convite para uma entrevista sensacional.

No dia seguinte, dos primeiros telefonemas que o banqueiro José Luiz Magalhães Lins atendeu, um foi do Dr. Paulo Azeredo, presidente licenciado do Botafogo. Uma das “glórias” do grande clube, atingido pelo desabafo de Garrincha.

– Imagine, Dr. José Luiz. Que o Garrincha concordou com o locutor que nos chamou de vigaristas! O senhor precisa falar com o Garrincha, Dr. José Luiz. O Botafogo está desmoralizado.

O banqueiro é um homem de decisões rápidas. Procurou Garrincha no Rio e em São Paulo. A entrevista entre os dois foi marcada para o dia seguinte.

No dia seguinte, Garrincha estava com o seu contrato suspenso e multado em 60% dos seus salários pelo Botafogo ofendido.

Garrincha não faltou ao encontro. À hora marcada, entrou no gabinete do banqueiro – que, para êle, às vezes, é Doutor Zé, “meu chapa”, ou apenas “Zé”.

Desfiou a história, enumerou suas razões.

Queria que o Botafogo lhe desse Cr$ 10 milhões para voltar a jogar. Queria uma participação de 50 dólares em cada jôgo que o Botafogo disputasse na Europa. Ficou surpreendido quando o banqueiro achou pouco 50 dólares, quando soube que o Botafogo ganharia 12 mil dólares por jôgo feito com êle no time. Então, queria 50 contos! Espantou-se e não entendeu mais nada quando o banqueiro insistiu: 50 contos também não valiam coisa alguma.

A partir daquele momento, o banqueiro José Luiz sentiu toda a responsabilidade que lhe pesava. Garrincha precisava voltar ao Botafogo, desistindo da idéia de mudar-se para a Espanha. Mas precisava voltar sem se humilhar; preservando-se a sua dignidade de bicampeão do Mundo.

O Botafogo, que tanto precisava de Garrincha, só o aceitaria de volta com uma ampla e definitiva reparação. Um perdão total seria o melhor.

A primeira carta foi feita e assinada por Garrincha. O Botafogo recusou-a. Era altiva demais.

Quatro novas redações foram tentadas e discutidas, cada vírgula, cada verbo, cada substantivo.

Por um momento, quando o banqueiro informava à imprensa da primeira e inesperada recusa do Botafogo, Garrincha cedeu a um impulso. Na presença de todos os jornalistas, cantou um sucesso do último carnaval: “Eu agora sou feliz”…

A crise teve de tudo um pouco. Do dramático ao rocambolesco. Do pitoresco ao cômico.

Várias vezes, o banqueiro José Luiz interrompeu as negociações com o Botafogo para atender o telefone internacional, com chamadas de Washington que o informavam sobre as marchas e as contramarchas da missão San Thiago Dantas.

Uma noite, a 100 quilômetros de velocidade, o banqueiro viu-se na contingência de fugir da perseguição da reportagem para encontrar-se com Garrincha num restaurante à margem da estrada de Jacarepaguá. O garçom que o atendeu recusou-se a servir uísque a Garrincha. Era um botafoguense sincero:

– Tenham paciência, mas uísque eu só sirvo ao Garrincha com autorização da diretoria do Botafogo. Garrincha, Garrinchinha, volta ao clube. Não pede 10, pede 15 milhões que nós te damos. Mas, por favor, te cuida.

E na presença de uma testemunha importante, falando sério, Garrincha pela primeira vez resolveu dar uma instrução ao banqueiro sôbre a aplicação de Cr$ 25 milhões depositados na sua conta:

– Quero que você transfira todo esse dinheiro para as minhas sete meninas. Para viver, só preciso de Cr$ 40 mil por mês.

Afinal, na 12ª noite da guerra criada com a entrevista, a paz foi celebrada. Com uma nova carta que não humilhava Garrincha e reparava o Botafogo. Com um brinde de champanha trocado entre o banqueiro e a diretoria do clube. E com o passarinho dormindo outra vez tranquilamente.

3 comentários:

Sergio disse...

Que história! Não conhecia esse episódio, muito interessante. Abs e SB!

Ruy Moura disse...

Interessante e muito revelador das manipulações que alguém de fora do Botafogo fez a Garrincha apartir de 62. Essa época foi o início do declínio de Garrincha um ano e pouco depois da Copa de 62.

Abraços Gloriosos.

Ruy Moura disse...

Adenda: As duas histórias que publiquei mostram bem como Paulo Azeredo e Carlito Rocha obrigavam a respeitar o Botafogo. Atualmente começamos novamente a ser respeitados e... temidos!

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