domingo, 9 de março de 2025

Narrativas de emoção e glória (XXI): Botafogo e a terra prometida

Fonte: portal revistacult.uol.com.br.

por DANIEL KUPERMANN | Psicanalista e Professor do Instituto de Psicologia da USP | Excertos do portal revistacult.uol.com.br.

«[…] Marlon Freitas, o capitão, que não pôde ir ao enterro do pai anos antes por estar concentrado em outra cidade, protagonizou em prantos uma cena comovente, gravada pelo câmera indiscreto. Ajoelhado de frente ao estreito armário do vestiário transformado em altar, dizia: “eu consegui, pai. É a terra prometida, pai”. […]

Sou da geração nascida em meados dos anos 1960. […]. Nós, botafoguenses, éramos chamados de “sofredores”. Éramos o retrato do Brasil: a magia do possível, metaforizada pelas pernas tortas do Mané, transformada em silêncio, tristeza e conformismo; décadas sem títulos assistindo à corrupção do clube de futebol mais tradicional do país, vampirizado por dirigentes de conduta nada ilibada e de ganância mais monumental que o estádio no qual o acontecimento transformador do dia 30/11/2024 se deu. A Brasília dos generais era o retrato de General Severiano. […]

Desde então, assistimos a decadência em ritmo persistente, até a criação da SAF (Sociedade Anônima de Futebol), e a compra do Botafogo pelo grupo representado pelo americano John Textor. […]

Em 30/11/2024 ocorreu a final da Copa Libertadores da América, competição mais importante do continente e, talvez, a mais relevante para uma equipe brasileira, para a qual chegamos na condição de favoritos contra o Atlético Mineiro. […] Quatro dias antes, em 26/11, ganhamos de 3x1 do Palmeiras em pleno Allianz Parque, em final antecipada do Brasileirão.

Nessa condição, mais de 50 mil botafoguenses foram a Buenos Aires assistir presencialmente ao jogo. […]

…fui assistir ao jogo no Nilton Santos mesmo, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em telões instalados para a massa que ali compareceu. O clima era de um otimismo inebriante que, imagino, fosse frequente nos tempos em que Mané Garrincha vestia a camisa 7, e que os torcedores iam ao estádio ver um futebol bonito, e se divertir com o gingado do inesquecível craque. […]

Eis que, com 40 segundos de jogo [nota do MB: na verdade a falta foi apitada aos 29 segundos] o volante Gregore comete uma entrada afoita em uma jogada no meio de campo, […] e é expulso! […]

As cenas no telão lembravam as da tragédia de 1950 no Maracanã, quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo para o Uruguai. Rostos de torcedores no Monumental chorando, com as mãos na cabeça, o olhar atônito em um misto de descrença e déjá vu. […]

Eu baixei a cabeça, coloquei as mãos sobre os olhos e pensei que tudo estava perdido. Senti um cansaço secular, levantei-me e sai da aérea das cadeiras para o corredor externo onde ficam os bares e banheiros. […] Respirei fundo, voltei e vivi os 96 minutos mais tensos e mais mágicos de minha vida como botafoguense. Mas isso também pouco importa.

O que aconteceu foi que Luiz Henrique fez um gol redentor aos 34 minutos. […] Um pouco depois o mesmo Luiz Henrique que vestia a camisa 7 de Garrincha e Jairzinho e Túlio sofreu um pênalti, que o corajoso Alex Telles, com a camisa 13, converteu […]. Presenciávamos o milagre, mas eu, evidentemente, continuava grave, preocupado, o senho franzido, desconfiado de que tudo cairia por terra no segundo tempo. […]

Apenas nos 7 minutos de acréscimo dados pelo árbitro comecei a rezar. Eu era ateu, sempre fui ateu, mas confesso publicamente que durante aqueles 7 minutos, sim, 7 da camisa de Garrincha, Jairzinho, Túlio e agora Luiz Henrique, eu rezei. Rezei em português, em hebraico, em latim, em iorubá. E o imponderável aconteceu.

Júnior Santos, o pedreiro que virou jogador de futebol tardiamente, o artilheiro da competição que ficou meses afastado por contusão, entrara em campo um pouco antes e, no último minuto, no sétimo minuto, recebeu a bola na ponta direita. […] ao invés de segurar a bola, […] Júnior Santos encarna o Mané e inventa um drible inédito, de letra cria uma passagem entre os jogadores do Atlético e avança rente à linha de fundo, livre de marcação, em direção ao gol. […]

Diz-se que os campeões da Copa Libertadores da América alcançam a “glória eterna”. Fomos campeões, glória eterna, justiça cósmica em um mundo e em um esporte nem sempre justo, o melhor time do continente ganha a final com um jogador a menos desde o primeiro minuto, experiência mística restrita aos escolhidos, terra prometida, nas palavras do cristão Marlon Freitas. […]

…não houve chororô com a expulsão de Gregore, fato inédito. A crença dos novos botafoguenses na vitória não esmoreceu, e a história não virou farsa. O pessimismo da minha época tornou-se anacrônico. […]

Ao final do jogo eu dizia aos meus filhos, com um toque de humor, que eu não merecia a terra prometida. Eu duvidei da vitória. […]

No relato bíblico, os 40 anos de deserto aos quais os judeus foram destinados tiveram o intuito de purificar o povo, admitindo à terra prometida apenas a nova geração, deixando a pusilanimidade dos escravizados e adoradores de ídolos de ouro para trás.

Mas eu tenho sorte. Sou botafoguense. Voltei a ser ateu. A vida não é uma questão de merecimento, mas de talento e acaso. Marlon tem razão. A terra prometida é nossa. Afinal, queiram ou não, é tempo de Botafogo!»

Leia o texto completo em https://revistacult.uol.com.br/home/botafogo-e-terra-prometida/

8 comentários:

BFR Números disse...

Espetacular!

Engraçado que fiz várias das associações e analogias do autor durante aquela final, num grau metalingüístico (e metafísico! rs) de milésimos em milésimos de segundo. Foi uma experiência surreal e transcendental, algo que pouquíssimas, raríssimas vezes experimentei não só com o Botafogo mas com o futebol de forma geral. Remeteu à primeira Copa do Mundo que vi o Brasil ganhar - o tetra - num tempo totalmente diferente tanto meu quanto do mundo e da sociedade, onde o futebol ainda tinha um certo ar de inocência e ainda um quê de poesia que se perdeu na noite dos tempos.

A única lacuna que observei na fantástica crônica foi a final de 1999. Quem estava no Maracanã naquela tarde e noite - que, até o último dia 30 de Novembro não havia acabado - aguardou 25 longos anos para o seu desfecho em dimensões, planos, esferas, multiversos ou universos paralelos. O que eu gritei no gol do Júnior Santos foi 25 vezes mais do que eu, ainda bem jovem, gritara naquele chute do Rodrigo no 2º tempo que sacudiu as redes pelo lado de fora e enganou meio Maracanã (ainda o original, em sua "Last Dance", antes de reformas ou da própria demolição para que se erguesse a 'Arena FIFA Maracanã'). Vi aquele jogo próximo do saudoso Russão. Digo próximo porque ele não parava quieto de nervoso com aquela partida. Foi nele, e em Bebeto de Freitas que primeiro pensei após 'cair a ficha' de que aquele 3º gol foi mesmo válido e a realidade me 'atropelou' feito o Luis Henrique fez com o Arthur Jorge em prantos de felicidade à beira do campo, rs.

Ruy Moura disse...

Meu amigo, eu não acredito que alguma vez na vida eu torne a sentir as emoções da conquista da Libertadores. Foi um jogo único com todos os condimentos. O pavor inicial, a sensação de perda de um título mesmo antes de o jogo praticamente começar. Depois a explosão absoluta. Aguentar uns 15 minutos iniciais do 2º temp e estaria ganho o jogo. Nada isso. O receio voltou com o 2x1. Depois a sensação de conseguirmos gerir jogo até final, com o Atlético perigando a nossa meta, até que Júnior Santos acedeu ao meu grande desejo, desde antes do jogo, de ele entrar e os deuses do futebol serem justos com ele e permitirem o 10º da artilharia. Não rezei porque não sou religioso, mas a minha convicção pré-jogo foi tão forte que ganhou a realidade à força e fez-me soberbamente feliz!

Estou arrepiado neste momento revendo a jogada e a minha mais absoluta emoção jamais sentida em qualquer outro gol que festejei ao longo da vida. Não podíamos ser campeões apenas pelas grandes defesas do goleiro, tinha que ser com altivez, com o gol do 'selo de campeões'.

Abraços Libertadores!

Dinafogo disse...

O título da Libertadores de 2024 foi um divisor de águas na nossa história. Poderíamos ter conquistado em 2017 e saído da fila com o maior torneio continental, mas o fato se deu 7 anos depois, número mágico da nossa história. Muito merecido e inesquecível! Jamais imaginei que tal glória estava reservada para a minha geração. O terceiro gol realmente ecoou nos milhões de corações alvinegros espalhados pelo mundo.

Por muito tempo, tentaram convencer a minha geração de que o Botafogo é o time do chororô, da sofrência e dado a vexames. Contudo, sempre soube que o verdadeiro Botafogo gostava de um futebol-arte e bem jogado, como fazia Garrincha e cia, e repetido por LH e os heróis da América. Era brigão como o Pato Donald da terra de John Textor, vivia a boa sofrência que sempre acabava em deleite e era obcecado por brilhar como a estrela do seu escudo.

Estou com saudades já.

Ruy Moura disse...

O Botafogo é mágico porque os seus torcedores, mesmo quando não apareceram devidos às más campanhas, estavam ainda atentos, sem nós sabermos. Foi a resiliência da torcida que segurou a falência desportiva e financeira do Botafogo, que conseguiu esticar o mais possível a corda da sobrevivência até chegar Textor e redimir a equipe de futebol do seu apagamento e recuperar à altura das glórias antigas. Caso isso não tivesse acontecido teríamos fechado as portas em 2022 com novo rebaixamento e finanças insuportáveis de bastante ais de um bilhão de reais.

Abraços Gloriosos.

BFR Números disse...

E complementando os comentários dos amigos acima, é por razões como esta que publico abaixo que comemorei muito mais a Libertadores do que o Brasileirão. Claro que, já ter visto o título brasileiro em 1995 este já não tinha o peso do ineditismo - e da magnitude - da Libertadores, mas acho que minha satisfação pela conquista do Brasileirão, nos formatos, condições e circunstâncias atuais (após tanto tempo de boicote sistemático, principalmente no tempo do Bebeto de Freitas quando ele tentou fazer a coisa certa - 2007 e 2008) foi muito mais por ter sido pela 'dobradinha' Libertadores + Brasileiro do que por este último propriamente. E, claro, some-se à isso toda a carga emocional pesadíssima pelo vexame de 2023. Isto transformou a sensação da conquista do Brasileirão 2024 mais num 'estorno' ou numa 'quitação' do que propriamente num feito grandioso.

E digo mais: Se o Botafogo ainda vier a ganhar a Copa do Brasil no meu tempo de vida, sobretudo após o que foi a conquista da Libertadores e da 'dobradinha' em 2024, acho que esta será por mim celebrada mais como uma dessas taças de 'tira-teima' Supercopa ou Recopa do que nomeadamente uma competição nacional. E, aí sim, até do ponto de vista estatístico e 'burocrático', a dívida de 1999 estará saldada - embora da parte que me compete eu já tenha anistiado-a após o gol do Junior Santos no Monumental rsrs.

BFR Números disse...

Falei, falei e esqueci de acrescentar o "abaixo", rs.

É isto:

https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2025/03/11/todos-os-clubes-do-brasileirao-2025-sao-patrocinados-por-bets.ghtml

Ruy Moura disse...

Penso e sinto exatamente do mesmo modo, meu amigo. A Libertadores era meu foco. Se perdessemos a Brasileirão lamentaria, mas não não me ofuscava a alma depois daquela noite de 30 de novembro, o mês em que aniversario e foi como um presente do Botafogo. Porem, a dobradinha melhorou o sabor da conquistas em 2024, saldando a dívida de 2023.

Espero muito a Copa do Brasil, mas parece que o JT não está para aí virado...

Abraços Gloriosos.

Ruy Moura disse...

Complicado, não é?...

Botafogo no pódio nacional de basquete 3x3

Último ponto para o pódio. Fonte: Youtube Jean Thomps. por RUY MOURA | Editor do Mundo Botafogo O Botafogo foi o único clube carioca a a...