por NÉLSON RODRIGUES |
Excerto da obra "À sombra das chuteiras imortais"
[Escrito a seguir à Copa do
Mundo de 1958, após o jogo Botafogo 2x1 Fluminense, em 10.07.1958, no Estádio
do Maracanã.]
«Amigos,
estou diante de um problema, que é o seguinte: — Garrincha foi, há pouco tempo,
meu personagem da semana. Poderei
repeti-lo sem irritar os leitores?
Eis a verdade, porém: — não
se trata de escolher, de optar. Ontem, só
houve em campo um nome, uma figura, um show: — Garrincha.
Os outros três campeões do
mundo estavam lá também. Mas Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem à miserável
condição humana. São mortais e
suscetíveis de todas as contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da
firma e por um dever contratual. Estavam
exaustos e no extremo limite de suas resistências emocionais e atléticas.
Garrincha, não. Garrincha está acima do bem e do
mal.
O problema de forma física e técnica não existe para ele, nunca existiu. Como os três outros campeões mundiais do Botafogo, ele foi massacrado por apoteoses consecutivas. Desde Brasil x Suécia que o “seu” Mané está em vigília permanente. E, no entanto, vejam vocês: — apareceu em campo com uma disposição vital esmagadora.
Ninguém mais ágil, mais
plástico, mais alado. Em campo, desde o primeiro minuto, foi leve como uma
sílfide. O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio, cruel. O torcedor já entrava em campo vociferando: — “Mata!
Esfola!”. Ontem, porém, no Botafogo x
Fluminense, sentiu-se uma curiosa reação: — Garrincha trazia para o futebol uma
alegria inédita. Quando ele apanhava a
bola e dava o seu baile, a multidão ria, simplesmente isto: — ria e com uma
saúde, uma felicidade sem igual.
O jornalista Mário Filho
observou, e com razão, que, diante de Garrincha, ninguém era mais torcedor de A
ou de B. O público
passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Era, digamos assim, um deleite
puramente estético da torcida. Aconteceu,
então, o seguinte: — foi-se assistir a um jogo e viu-se Garrincha.
No fim, já as duas torcidas
queriam apenas que Garrincha
apanhasse a bola e começasse a fazer as suas delirantes fantasias. Então, aplaudiam nas arquibancadas, cadeiras e gerais,
com uma euforia de macacas-de-auditório.
Por exemplo: — o meu caso.
Eu estava lá, como pó-de-arroz nato e hereditário, para torcer pela vitória do
Fluminense e contra a vitória do Botafogo. Súbito
começo a exultar também. Diante de cada
jogada de Garrincha, eu experimentava a alegria que as obras-primas despertam.
E, no entanto, vejam vocês: — chamavam este homem
de retardado!
Só agora começamos a
fazer-lhe justiça e a perceber a sua superioridade. Comparem o homem normal, tão lerdo, quase bovino nos
seus reflexos, com a instantaneidade triunfal de Garrincha. Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou chupamos um Chica-bon, sem
todo um lento e intrincado processo mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo
nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E,
por isso mesmo, chega sempre antes, sempre na frente, porque jamais o
raciocínio do adversário terá a velocidade genial do seu instinto.
No segundo tempo, quase não
lhe deram bola. E aconteceu o
inevitável: — o Botafogo caiu verticalmente. O Fluminense podia ter empatado,
até. Mas ficamos num joguinho platônico, um futebol inofensivo, de passes para os lados e para trás.
Resta saber: — de quem é a
culpa? De uma indigência de recursos táticos? Ou
faltou-nos um Garrincha, com suas penetrações fulminantes, as suas geniais
invenções? No primeiro tempo, botafoguenses e tricolores
punham as mãos na cabeça: — “Isso não existe!”.
Eu falei, mais atrás, que
ele foi, na sua agilidade, algo de muito leve, de muito etéreo. De fato, na
etapa inicial, Garrincha deu uma bicicleta de sílfide. Terminado o jogo, saímos do estádio com a ilusão
de que tínhamos visto não um jogo, não dois
times, mas uma figura única e fantástica: — Garrincha, o meu personagem da
semana.»