quinta-feira, 3 de junho de 2010

A vida torta de Mané Garrincha (IV)

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Revista Veja
8 de março de 1972


[Título alternativo proposto pelo editor do blogue: “A criança doce que falava com os passarinhos”]

SEM PARALELOS – Foi portanto com alguma tristeza, mas sem nenhuma surpresa, que correu pela Itália e depois pelo Brasil a notícia de que o maior ponta-direita do mundo estava jogando, de camiseta vermelha e calção branco, com um time de amadores formado de açougueiros de Tor Vajanica, num campeonato reunindo trabalhadores de bar, mecânicos e operários do lugar. "Eu faço isso", dizia Garrincha na época, "para me divertir e me manter em forma." Mas no principal jogo do campeonato o time dos açougueiros perdeu para o dos mecânicos por 5 a 4 (quatro passes de Garrincha) e sua carreira como amador terminou nessa derrota. Ele se defendeu de novo: "Aqui não posso nem correr, que quebro o pé. O campo é cheio de pedras e buracos".

Parecia realmente o fim da linha. Mas ainda não. Saldanha, referindo-se à inconsciência de Garrincha em relação às pessoas e aos negócios, diz que ela também impede que ele sinta que o verdadeiro craque tem vergonha de fazer certas coisas, como jogar entre açougueiros. Prefere sair e se esconder num sofrimento íntimo do que exibi-lo num campo. Foge da realidade.

Garrincha, que mal vê a realidade, não finge nem tenta esconder coisa alguma. Pensa, em 1972, que é o mesmo de 1962, e por motivos bem simples: hoje, como ontem, sente um prazer de menino brincando com a bola, de mexer com os companheiros de time, de achar graça nos próprios dribles. Paradoxalmente, essa falta de percepção lhe dá força. Sua situação, agora, é mais triste para os outros do que para ele mesmo: no campo, Garrincha não tenta o impossível, corre o que pode correr, dribla o que sabe e tudo acaba dando certo. A ilusão é soberana. Ninguém o ataca seriamente. Ninguém quer machucá-lo e nenhum jogador teria nervos para agüentar a culpa de ter sido o responsável por uma contusão de Mané. Uma jogada de corpo é o quanto basta para que o estádio o aplauda e comece a rir. Em todos esses anos, e em todas as suas derrotas, não apareceu realmente um candidato sério ao seu lugar. Zequinha, Rogério e Cafuringa, por exemplo, fazem hoje um pouco de cada coisa que Mané fazia, mas não sintetizam, como ele, a capacidade múltipla de pique, drible, cruzamento e chute. Jairzinho - que Garrincha considera o maior ponta-direita do Brasil - lembrou na última Copa um pouco desse estilo único, desconcertante e inexplicável. Mas não existe outro Garrincha. Como jamais existiu alguém, que, como ele, no final de um campeonato do mundo (o de 1958), surpreendeu-se com a vitória do Brasil: "Mas não vai haver returno"?

O ANTI-PELÉ – Todos, enfim, querem ajudar Garrincha. Saldanha, "que se esqueceu dele" em 1969, elogiou no seu programa de rádio a volta do craque, principalmente porque "50.000 pessoas significam um carinho que ele merece". Sandro Moreira, seu amigo, não foi ao jogo e o "tal de Nílton Santos", o bicampeão de 46 anos e bem sucedido homem de negócios, também não foi, pelo mesmo motivo. Diz Santos: "Quero guardar a imagem do homem que jogou ao meu lado durante dez anos e que foi o maior jogador de futebol do mundo".

É irônico que o maior jogador de futebol do Brasil, junto com Pelé e às vezes maior que ele, fosse justamente o anti-Pelé, em tudo. Em casa ou no campo, por exemplo, Garrincha escuta histórias e gritos que o bom senso de Pelé jamais levaria em conta. Há a aritmética doméstica de sua mulher e musa Elza Soares: "Com 80 minutos de partida, Mané ainda pode decidir um jogo. Quarenta por cento de Mané é melhor que cem por cento de muita gente". Há o incentivo de Roberto Pinto, treinador do Olaria, que durante os momentos menos brilhantes de Mané durante o jogo com o Rio Branco, em Vitória, na semana passada (o Olaria perdeu de 2 a 1), gritava: "Não tem importância. Tá ótimo. O jogo é amistoso. Sábado, contra o América, é que é para valer". Há o coro de seus poucos amigos, repleto de adjetivos e acusações a tudo e todos, no passado, e há quem hoje afirme que Garrincha não tem mais saúde para jogar futebol. Há os torcedores, que o amam e lhe pedem autógrafos na rua, como aconteceu em Vitória na semana passada, pessoas que querem que ele dê "uma ajudazinha" na primeira comunhão da escola, às 6 horas da manhã, ou o velho torcedor que exige de Garrincha que volte a ser o maior porque sempre acreditou que "esse tal de Pelé não vale nada". E há, sempre, a sua crença cega na "boa gente". Foi para Vitória na véspera e não sabia bem por quê. "Sei não. Acho que se eu não for antes as pessoas de lá não acreditam. Devo ser um chamarisco". O estádio Engenheiro Araripe, na noite seguinte, estava lotado (renda de 40.000 cruzeiros, muito acima da média local) para ver o "chamarisco". Com algum orgulho, fontes do Olaria anunciam que ainda este mês Mané fará outra proeza: dará o pontapé inicial num jogo em Juazeiro, Bahia.

PORTAS ABERTAS – Levando gente ao Maracanã, parando o trânsito nas ruas de Vitória, ganhando mais palmas em Juazeiro e outras cidades em que o Olaria fizer excursões, Garrincha, a não ser pelo seu futebol e pela idade, continua o mesmo. A Carlinhos, dezanove anos, ponta-direita do Rio Branco, ele dizia na semana passada, com ar de pai preocupado: "Você tem que se cuidar. Treinar, jogar bola, saber com quem anda. Ganhe dinheiro. Se você perde um jogo, ninguém mais vai querer saber de você. Você deve ser pobre, né? Jogador de futebol é sempre pobre".

Garrincha é sempre assim. Será recebido, em todos os lugares, principalmente em Pau Grande, onde dona Nair continua esperando a sua volta, porque "as portas estão abertas". Psicologicamente, dizem que Garrincha jamais cresceu além da fronteira de Pau Grande. Talvez jamais volte para ficar, mas ainda este mês estará lá para assinar os papéis de autorização do casamento de Edenir, sua filha de dezassete anos. Nair tem pressa nesse casamento. Ainda este ano, Mané Garrincha, a alegria do povo, vai ser avô. FIM

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