terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A noite de Tolito

por Helito Fonseca*

[Publicado a 8 de Fevereiro de 2014 no blogue Arquiba Botafogo por Paulo Marcelo Sampaio, que escreve regularmente pela mão de botafoguenses que partiram para o imaginário Olimpo do Futebol.]

Estava com uma saudade danada daquela barulho todo do centro calorento e abafado do Rio de Janeiro. Mas como fazer pra descer? Eu não tinha a menor ideia. Como convencer o barbudão, São Pedro, o manda-chuva do céu? Aqui no paraíso não há muito tempo de descanso. Todos têm suas tarefas. E continuei na atividade que tinha na terra. Minha banca de jornais guarda alguma semelhança com a que tinha no cruzamento da avenida Rio Branco com a rua Sete de Setembro. Tem a mesma bandeira que marcava aquela esquina como território do Botafogo. Pra todo mundo ver.

Pra descer à terra, tinha que arranjar alguém para vender os jornais, as revistas, os cigarros a varejo e as balinhas de hortelã e de tamarindo. “Pessoal, pessoal, tomem conta aqui da minha banca, por favor”, fui logo avisando ao João Saldanha, ao Sandro Moreyra, ao Oldemário Touguinhó e ao Armando Nogueira, todos clientes meus, que fugiam da redação do Jornal do Brasil, ali perto, para sentir a voz do povo. “Por que tanta pressa, Tolito?”, quis saber Sandro. “Como vocês não sabem, pessoal? Hoje o Botafogo faz jogo decisivo no Maracanã. “O nosso time vai ganhar fácil”, me disse o Saldanha. Segundo ele, que tanto viajou com o clube, como dirigente, técnico e como jornalista, depois de jogar em grandes altitudes, o time chega aqui voando. Vai na fé, Tolito, me disseram os quatro. Futebol pra eles era paixão. Mas também trabalho. E estavam enjoados de acompanhar times de uma só temporada. “Hoje tem jogador que passa seis meses num clube. Troca o afago da torcida por punhado de dólares e frio siberiano”, costuma criticar Saldanha. “A gente toma conta da tua banca”, garantiu Oldemário, com a velha experiência de varejo, verdureiro que foi. E lá fui eu, contente pro Maracanã.

Peguei o metrô ali na estação da Carioca, a uns quinhentos metros da banca de outrora. Quis passar por lá. Mas achei melhor não. E se alguém me reconhece? Iam correr, gritando ‘vi um fantasma, vi um fantasma!’. Melhor não. Era lá que centenas de botafoguenses paravam. Discutiam política e futebol. Nos anos 1960 e 1970, mais futebol. Tudo por causa da ditadura. Lembro bem o dia que quase não pude trabalhar: 16 de novembro. Cada torcedor que procurava o Jornal dos Sports, saía frustrado. O ‘cor-de-rosa’ nem chegou à minha banca. Também pudera. Com uma manchete criativa daquelas – obra do Roberto Porto, meu cliente também – os torcedores, eufóricos com os 6 a 0 – humilhação imposta ao flamengo no dia de seu aniversário – não deixavam as Willys Rurais chegarem às bancas. Todo mundo queria logo garantir seu exemplar.

Pois bem. Era hora da volta do trabalho. Vagões apinhados. Meus músculos, já cansados de carregar pacotes e mais pacotes de revistas, iam aguentar tanto tranco? Experimentei então o conforto fantasmagórico; eu não ocupava espaço nenhum. E assim cheguei à estação do Maracanã. Na rampa de acesso ao estádio, tive a primeira emoção. Ao ver o prédio da UERJ, chorei. Morei ali, naquele mesmo lugar, em 1936, numa estrutura de cimento armado, que deveria ser o prédio do prefeitura do Distrito Federal. Mas a obra, condenada, virou um esqueleto. E meus pais, junto com outras tantas famílias, ocuparam aquilo lá. Da mesma rampa vi o morro da Mangueira, da minha Estação Primeira. Antes que chorasse ainda mais, comecei a cantar alguns versos de um samba que ajudei a compor para o desfile de 1979. “E na Bahia… E na Bahia, onde o braço forte na na lavoura prosseguiu; motivado pelos bravos camponeses; no trabalho poderoso do Brasil; tem mulata, pessoal; na colheita do cacau”. Não fica bem um velho como eu ficar chorando assim, em público. Sim, sou Mangueira sim. Essa história de que a Mangueira é irmã do flamengo é bobagem. Tem mangueirense de tudo que é time. E o Sandro é Botafogo e Mangueira, como eu. A Beth Carvalho também.

Ainda muito emocionado, entrei no Maracanã. Não o reconheci. Bem que o seu Carlito comentou comigo. Não dá pra se agitar muito. Andar de um lado pro outro? Nem pensar. É tudo muito apertadinho. Na cadeira onde fui me sentar, uma cartolina branca. O vizinho do lado me explicou que era prum mosaico. E o que diabo era aquilo? Com paciência, me explicou. Quando o time entrasse em campo, levantaríamos as cartolinas. Pretas e brancas. No verso da cartolina tinha toda a explicação. Um garoto disse a frase que que formaria: o gigante acordou. Franzi a testa, mas aqueles dizeres tinham a ver com minha história. E sorri. Antes de ser Botafogo, torci pro Andarahy, isso mesmo com agá e ipsilone. Mas o profissionalismo acabou com meu verde-e-branco. Decidi torcer pro Botafogo, o único dos grandes a defendê-lo na Liga. Um gigante preocupado com os pequenos. Olha, olha entraram em campo. E todos viramos os cartolinas para eles. Eu não sabia cantar a música pedida, mas não contive a emoção. Lá em baixo os jogadores devem ter sentido algo diferente.

Bola rolando e todos eles pareciam dispostos. E o gol não saindo comecei a ficar nervoso. Fui buscar uma cerveja. Soube que seria viagem perdida. Proibiram a venda de bebidas alcoólicas? Era só o que faltava. Como espantar tanto nervosismo? Lembrei-me do Marinheiro, o torcedor-símbolo dos meus tempos, antes mesmo de Tarzan. Era ele que distribuía cachaça com laranja. Com tanto álcool na cabeça ficávamos mais corajosos. Éramos esquentados, esquentados a ‘mé’. Jogo duro, zero a zero. E nada do gol sair. Consultei meu Mido – presente do doutor Adhemar Bebiano – e já passava dos trinte e cinco minutos. E bote chutão pra frente. Que mania boba é essa? Naquele tempo de 1967/68 não tinha disso não. Os ‘chutões’ eram de um tal Gérson. Um garoto do meu lado avisa: ele está aqui. É comentarista de rádio. Eu já sabia. Temos esse poder. Nosso corpo fica num lugar, mas nossos olhares estão por todo canto. E não é que o gol sai num chutão desses? Não conheço mais nenhum jogador. Mas o placar me informa. Wallyson é o nome do garoto. Chegou desacreditado, com fracassos acumulados. Mas o Botafogo tem dessas coisas. Abraça e consagra.

Olhava o campo esperando o segundo gol, que demorava pra sair. Mas veio o alívio. E depois mais um, do mesmo jogador com nome de sertanejo. E lá do meu cantinho, meus olhos percorreram as cabines de rádio. Vi mais uma cena bonita, uma antologia do amor: o tricolor Canhota sem camisa, vibrando com o terceiro gol. Depois de ver o Canhota perdendo a linha, classificação já garantida, voltei ao passado. Nunca gostei de comparações. Mas esse garoto me fez lembrar o ímpeto de Roberto Miranda e a explosão de Jairzinho. Nunca poderia ter perdido essa noite. Porque o Botafogo precisava de mim num dia tão importante. Porque eu precisava defender o Botafogo. Comigo é assim. Não defendo o Botafogo só em dia de jogo. Defendo o dia inteirinho, brigo por causa dele. Por isso essa minha voz rouca. Cansado, não quero subir. Procuro uma marquise pra dormir. A marquise da UERJ, para me lembrar de uma infância pobre, mas feliz.

(*) Helito Fonseca, o ‘Tolito’, era jornaleiro e tinha uma banca de jornais da qual fazia uma verdadeira agora botafoguense de manhã à noite.


Leia mais sobre Tolito em http://mundobotafogo.blogspot.pt/2010/10/tolito-e-agora-do-botafogo.html

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