por Helito Fonseca*
[Publicado a 8 de Fevereiro de 2014 no blogue Arquiba Botafogo por Paulo
Marcelo Sampaio, que escreve regularmente pela mão de botafoguenses que
partiram para o imaginário Olimpo do Futebol.]
Estava com uma saudade danada daquela barulho todo do centro calorento e
abafado do Rio de Janeiro. Mas como fazer pra descer? Eu não tinha a menor
ideia. Como convencer o barbudão, São Pedro, o manda-chuva do céu? Aqui no
paraíso não há muito tempo de descanso. Todos têm suas tarefas. E continuei na
atividade que tinha na terra. Minha banca de jornais guarda alguma semelhança
com a que tinha no cruzamento da avenida Rio Branco com a rua Sete de Setembro.
Tem a mesma bandeira que marcava aquela esquina como território do Botafogo.
Pra todo mundo ver.
Pra
descer à terra, tinha que arranjar alguém para vender os jornais, as revistas,
os cigarros a varejo e as balinhas de hortelã e de tamarindo. “Pessoal,
pessoal, tomem conta aqui da minha banca, por favor”, fui logo avisando ao João
Saldanha, ao Sandro Moreyra, ao Oldemário Touguinhó e ao Armando Nogueira,
todos clientes meus, que fugiam da redação do Jornal do Brasil, ali perto, para
sentir a voz do povo. “Por que tanta pressa, Tolito?”, quis saber Sandro. “Como
vocês não sabem, pessoal? Hoje o Botafogo faz jogo decisivo no Maracanã. “O
nosso time vai ganhar fácil”, me disse o Saldanha. Segundo ele, que tanto
viajou com o clube, como dirigente, técnico e como jornalista, depois de jogar
em grandes altitudes, o time chega aqui voando. Vai na fé, Tolito, me disseram
os quatro. Futebol pra eles era paixão. Mas também trabalho. E estavam enjoados
de acompanhar times de uma só temporada. “Hoje tem jogador que passa seis meses
num clube. Troca o afago da torcida por punhado de dólares e frio siberiano”,
costuma criticar Saldanha. “A gente toma conta da tua banca”, garantiu
Oldemário, com a velha experiência de varejo, verdureiro que foi. E lá fui eu,
contente pro Maracanã.
Peguei
o metrô ali na estação da Carioca, a uns quinhentos metros da banca de outrora.
Quis passar por lá. Mas achei melhor não. E se alguém me reconhece? Iam correr,
gritando ‘vi um fantasma, vi um fantasma!’. Melhor não. Era lá que centenas de
botafoguenses paravam. Discutiam política e futebol. Nos anos 1960 e 1970, mais
futebol. Tudo por causa da ditadura. Lembro bem o dia que quase não pude
trabalhar: 16 de novembro. Cada torcedor que procurava o Jornal dos Sports,
saía frustrado. O ‘cor-de-rosa’ nem chegou à minha banca. Também pudera. Com
uma manchete criativa daquelas – obra do Roberto Porto, meu cliente também – os
torcedores, eufóricos com os 6 a 0 – humilhação imposta ao flamengo no dia de
seu aniversário – não deixavam as Willys Rurais chegarem às bancas. Todo mundo
queria logo garantir seu exemplar.
Pois
bem. Era hora da volta do trabalho. Vagões apinhados. Meus músculos, já
cansados de carregar pacotes e mais pacotes de revistas, iam aguentar tanto
tranco? Experimentei então o conforto fantasmagórico; eu não ocupava espaço
nenhum. E assim cheguei à estação do Maracanã. Na rampa de acesso ao estádio,
tive a primeira emoção. Ao ver o prédio da UERJ, chorei. Morei ali, naquele
mesmo lugar, em 1936, numa estrutura de cimento armado, que deveria ser o
prédio do prefeitura do Distrito Federal. Mas a obra, condenada, virou um
esqueleto. E meus pais, junto com outras tantas famílias, ocuparam aquilo lá.
Da mesma rampa vi o morro da Mangueira, da minha Estação Primeira. Antes que
chorasse ainda mais, comecei a cantar alguns versos de um samba que ajudei a
compor para o desfile de 1979. “E na Bahia… E na Bahia, onde o braço forte na
na lavoura prosseguiu; motivado pelos bravos camponeses; no trabalho poderoso
do Brasil; tem mulata, pessoal; na colheita do cacau”. Não fica bem um velho
como eu ficar chorando assim, em público. Sim, sou Mangueira sim. Essa história
de que a Mangueira é irmã do flamengo é bobagem. Tem mangueirense de tudo que é
time. E o Sandro é Botafogo e Mangueira, como eu. A Beth Carvalho também.
Ainda muito
emocionado, entrei no Maracanã. Não o reconheci. Bem que o seu Carlito comentou
comigo. Não dá pra se agitar muito. Andar de um lado pro outro? Nem pensar. É
tudo muito apertadinho. Na cadeira onde fui me sentar, uma cartolina branca. O
vizinho do lado me explicou que era prum mosaico. E o que diabo era aquilo? Com
paciência, me explicou. Quando o time entrasse em campo, levantaríamos as
cartolinas. Pretas e brancas. No verso da cartolina tinha toda a explicação. Um
garoto disse a frase que que formaria: o gigante acordou. Franzi a testa, mas
aqueles dizeres tinham a ver com minha história. E sorri. Antes de ser
Botafogo, torci pro Andarahy, isso mesmo com agá e ipsilone. Mas o
profissionalismo acabou com meu verde-e-branco. Decidi torcer pro Botafogo, o
único dos grandes a defendê-lo na Liga. Um gigante preocupado com os pequenos.
Olha, olha entraram em campo. E todos viramos os cartolinas para eles. Eu não
sabia cantar a música pedida, mas não contive a emoção. Lá em baixo os
jogadores devem ter sentido algo diferente.
Bola
rolando e todos eles pareciam dispostos. E o gol não saindo comecei a ficar
nervoso. Fui buscar uma cerveja. Soube que seria viagem perdida. Proibiram a
venda de bebidas alcoólicas? Era só o que faltava. Como espantar tanto nervosismo?
Lembrei-me do Marinheiro, o torcedor-símbolo dos meus tempos, antes mesmo de
Tarzan. Era ele que distribuía cachaça com laranja. Com tanto álcool na cabeça
ficávamos mais corajosos. Éramos esquentados, esquentados a ‘mé’. Jogo duro,
zero a zero. E nada do gol sair. Consultei meu Mido – presente do doutor
Adhemar Bebiano – e já passava dos trinte e cinco minutos. E bote chutão pra
frente. Que mania boba é essa? Naquele tempo de 1967/68 não tinha disso não. Os
‘chutões’ eram de um tal Gérson. Um garoto do meu lado avisa: ele está aqui. É
comentarista de rádio. Eu já sabia. Temos esse poder. Nosso corpo fica num
lugar, mas nossos olhares estão por todo canto. E não é que o gol sai num
chutão desses? Não conheço mais nenhum jogador. Mas o placar me informa.
Wallyson é o nome do garoto. Chegou desacreditado, com fracassos acumulados.
Mas o Botafogo tem dessas coisas. Abraça e consagra.
Olhava o campo esperando o segundo gol, que demorava pra sair. Mas veio o
alívio. E depois mais um, do mesmo jogador com nome de sertanejo. E lá do meu
cantinho, meus olhos percorreram as cabines de rádio. Vi mais uma cena bonita,
uma antologia do amor: o tricolor Canhota sem camisa, vibrando com o terceiro
gol. Depois de ver o Canhota perdendo a linha, classificação já garantida,
voltei ao passado. Nunca gostei de comparações. Mas esse garoto me fez lembrar
o ímpeto de Roberto Miranda e a explosão de Jairzinho. Nunca poderia ter
perdido essa noite. Porque o Botafogo precisava de mim num dia tão importante.
Porque eu precisava defender o Botafogo. Comigo é assim. Não defendo o Botafogo
só em dia de jogo. Defendo o dia inteirinho, brigo por causa dele. Por isso
essa minha voz rouca. Cansado, não quero subir. Procuro uma marquise pra
dormir. A marquise da UERJ, para me lembrar de uma infância pobre, mas feliz.
(*) Helito Fonseca, o ‘Tolito’, era jornaleiro e tinha uma banca de jornais da
qual fazia uma verdadeira agora botafoguense de manhã à noite.
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