quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Uma neurose de Heleno a Marinho


por Albino Castro Filho
22 de março de 1975

[Nota do Mundo Botafogo: Discordo de alguns excertos do texto do autor, mas considero que, no essencial, vale a pena os leitores ‘lerem’ o Botafogo de 1975, já sem os grandes craques dos times de 1960-70 e à beira de perder o casarão. Se o autor deste texto adivinhasse essa perda, então certamente daria o Botafogo como clube condenadíssimo. O que prova que ele conhecia muito mal a torcida mais Gloriosa do Brasil…]

Os botafoguenses costumam dizer que o Botafogo não é um clube como outro qualquer. E eles têm lá as suas razões. A começar pelos próprios botafoguenses. Quem é o botafoguense? O Flamengo é o clube do povo, de maior torcida, o Vasco é o time da colônia portuguesa –, e segundo alguns, o verdadeiro clube de massas – o Fluminense é dos grã-finos, o América, da classe média tijucana. E o Botafogo, quem torce pelo Botafogo?

Diziam que o Botafogo era o time dos 18 torcedores. Mas esses 18 triplicaram, triplicaram e hoje o clube já tem uma razoável torcida. Uns dizem, com uma forte pitada de ironia, que “o Botafogo é o clube das elites intelectuais”. Ou ainda, “o time dos cineastas”. Outros mais debochados preferem reduzir o clube ao “time dos críticos de cinema”. Há quem sustente que é o “clube da juventude”. Juventude? Nem tanto.

O Botafogo inegavelmente é controvertido.

Foi o único clube que pôde se dar ao luxo de recusar Leônidas da Silva, em 1935, quando o Diamante Negro já era considerado o maior jogador do Brasil. Recusar porquê? Porque ele era negro. E Leônidas acabou indo quase de graça para o Flamengo. Aliás, o Botafogo foi o último time carioca a deixar um negro vestir sua camisa, muito depois, inclusive, do Fluminense, acusado sempre de elitista, o que não é mentira.

[Nota do Mundo Botafogo: A verdade da saída de Leônidas da Silva prende-se com o amadorismo / profissionalismo, porque todos sabem que o Botafogo foi o último grande clube carioca a ceder ao profissionalismo. O nosso clube foi o 2º do Brasil, após o Bangu, a integrar nas suas fileiras um negro – Paulinho – que foi campeão carioca de 2ºs quadros em 1906 e do qual existe foto do time todo, já publicada pelo Mundo Botafogo, pelo que não se entende esta continuada ignorância acerca de acontecimentos marcantes do futebol brasileiro. Esse título de 2ºs quadros foi o 1º título de todos do futebol carioca e o Botafogo ganhou-o com um negro nos seus quadros!]

Até aparecer um homem chamado Carlito Rocha, era um clube muito preocupado com os salões da sua sede em estilo arquitetônico indefinido do que com o futebol, embora tenha sido um dos primeiros a praticar este esporte no Rio. O Botafogo defendeu o amadorismo com unhas e dentes até 35. Aí desistiu e aderiu ao profissionalismo.

O futebol do Botafogo era coisa de gente fina, de um Mimi Sodré, descendente de Lauro Sodré, um Nilo Murtinho Braga, morto recentemente, e de um Carvalho Leite.

Mas um dia Carlito Rocha, homem supersticioso ao extremo, transformou a imagem do clube, popularizando ao máximo o comportamento do Botafogo, inclusive passando a usar o candomblé, a mandinga, a partir da década de 40, como uma importante arma. Heleno de Freitas, rapaz vindo da classe média rural de Minas Gerais, passou a ser o símbolo do novo Botafogo, um ingrediente demasiadamente picante para o paladar dos velhos e requintados sócios do clube. Heleno era um dos integrantes do grupo da Praia de Copacabana, que ficou conhecido como Os Cafajestes. As famílias tradicionais que frequentavam o Botafogo não podiam concordar com tamanha liberalidade de Carlito Rocha.

O Botafogo ficou conhecido como o clube dos cafajestes. Heleno, brigão e metido a valente, quebrava a cara do primeiro que desrespeitasse o nome do time. Heleno encarnava o amor que Carlito Rocha achava que um jogador tinha que ter pela estrela solitária, a paixão e garra necessárias para tornar o Botafogo popular, com muitos torcedores. Era um homem de gestos finos, elegante e relativamente culto em relação a seus companheiros de profissão, possuindo o diploma de advogado e ostentando orgulhosamente um enorme anel de doutor no dedo. Heleno, no máximo, era um filhinho de papai metido a popularucho.

[Nota do Mundo Botafogo: Ajuizamento sobre Heleno que me parece despropositado.]

Heleno não conseguiu tornar o Botafogo um time de torcida e ainda despertou a ira dos outros torcedores contra o clube, pela sua arrogância em campo e a falta de respeito a seus próprios companheiros. O clube não ganhou nenhum título durante os anos em que ele vestiu sua camisa. Em 48, quando foi vendido por uma fortuna ao Boca Juniors, de Buenos Aires, o Botafogo, com um punhado de novatos (como Nilton Santos) e velhos (como Silvio Pirilo, dispensado do Flamengo), conseguiu finalmente o tão sonhado primeiro título no profissionalismo. Foi campeão carioca derrotando no jogo final, no seu estádio da rua General Severiano, o então poderoso Vasco, por 3 a 1.

Após o título de 48, o Botafogo voltou a viver anos difíceis, com um time medíocre, onde o talento de Nilton Santos quase desapareceu. Em meados da década de 50, a transformação: foram chegando caras novas e o Botafogo ressurgiu. Primeiro, Garrincha, que foi parar ao clube depois de rejeitado por quase todos os times grandes do Rio. Mais tarde, Quarentinha, do Vitória da Bahia, Paulinho Valentim, do Atlético Mineiro, Didi, do Fluminense, e outros. Nove anos depois do seu primeiro título profissional, o Botafogo foi campeão carioca, numa célebre partida decisiva em que venceu o Fluminense, tido como favorito na véspera, por 6 a 2. A partir daí o clube começou a viver o seu maravilhoso ciclo.

O Botafogo, dos Sodré e do excêntrico e genial Heleno de Freitas, se transformou no supertime carioca, o clube que todos gostavam de ver jogar, porque era extraordinário o talento de seus jogadores, mas que, ao mesmo tempo, despertava raiva dos torcedores dos demais times, impotentes diante do poderoso conjunto, onde um Garrincha podia arrasar uma defesa adversária em questão de segundo.

Carlito Rocha, bastante idoso, já não podia andar se metendo muito no clube e suas famosas gemadas, que dava aos jogadores antes das partidas, também deixaram de surtir efeito. O time era bom demais. Nenhum adversário resistia. Prá quê então a gemada? Assim, comentavam ironicamente os botafoguenses, os campeonatos perderiam a graça, pois o clube ganharia todos.

Heleno de Freitas foi o primeiro jogador “tipicamente do Botafogo”. Depois, Nilton Santos, Garrincha, Didi, Quarentinha, Paulinho Valentim, Manga, Amarildo, Zagalo, Gérson, Roberto, Jairzinho, Paulo César, Rogério, Zequinha e agora Marinho. Todos craques e, acima de tudo, craques do Botafogo. São jogadores que já atuaram ou atuam, em outros clubes, mas dificilmente qualquer torcedor consegue vê-los sem a camisa listrada preta e branca e uma estrela solitária ao peito. Com eles o clube sempre manteve um relacionamento estranho, passional. E vice-versa.

Há até quem compare o relacionamento entre esses jogadores e o Botafogo com um casal que às vezes é capaz dos maiores escândalos em público, briga e discute todas as noites, mas, ao mesmo tempo, os dois se amam bastante e vivem uma paixão turbulenta. Um não consegue viver sem o outro. O mesmo acontece entre o Botafogo e seus “jogadores típicos”, Nilton Santos, por exemplo, jamais se separou do clube e, apesar de discutir muito antes das renovações, acabava ficando. Mas a maioria trocou de time e o clube sempre fez ótimos negócios com as suas vendas: Didi (ao Real Madrid e depois ao Sporting Cristal, do Peru), Paulinho Valentim (ao Boca Juniors), Manga (ao Nacional, do Uruguai), Amarildo (ao Milan), Gérson (ao São Paulo), Jairzinho (ao Olympique de Marselha), Paulo César (ao Flamengo) e Zequinha (ao Grêmio de Porto Alegre).

As renovações contratuais de todos eles sempre foram problemáticas e representam um importante capítulo na história folclórica do clube. Os contratos de Garrincha às vezes levavam semanas para serem renovados e geralmente era preciso a intervenção de um amigo. Mas Garrincha não enriqueceu com o futebol, o que não aconteceu com Gérson, Jairzinho e Paulo César, que sempre souberam tirar partido das suas condições de ídolos.

Zagalo, atual técnico, também foi “jogador do Botafogo”, apesar de ter iniciado nos juvenis do América e jogado durante anos como titular do Flamengo. Mas não tinha a mesma arrogância dos seus companheiros ou mesmo o talento dos melhores jogadores do clube. Zagalo venceu pela persistência e, segundo muitos, subserviência aos dirigentes.

Marinho, o último “craque botafoguense”, é outro exemplo de jogador que encarna todo o espírito do clube. Chegou em 1972 do Recife, onde tinha aparecido rapidamente no Náutico. Treinou, jogou e virou ídolo. Agora é tido como o melhor jogador brasileiro. Em General Severiano, logo ficou amigo dos jornalistas e dos velhos personagens do clube, como o roupeiro Neném Prancha, lendária figura das areias de Copacabana, ao qual atribuem frases famosas do tipo. “pênalti é tão importante que deveria ser cobrado pelo próprio presidente do clube” e “se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária não perdia uma partida”, entre outras. A sua ingenuidade, de menino assustado com a “cidade grande e sedutora, além de muito dinheiro no bolso, logo o transformou num rapaz “cheio de colares e balangandãs, roupas do gênero hippie, cabelos oxigenados nas pontas e um carrão, com um potente toca-fitas, onde as músicas do cantor Agnaldo Timóteo (torcedor doente do clube) estão sempre presentes.

Como Garrincha e Manga, Marinho é um menino capaz de aparecer no Aeroporto do Galeão no dia que embarcou para tentar acertar sua venda para o Schalke 04, da Alemanha Ocidental, acompanhado de um exótico amigo conhecido por Cabeção, um tipo nordestino, com a camisa aberta e jeitão de matuto.

- Vou visitar meus primos na Alemanha – dizia Marinho, enquanto dava tapinhas nos rostos dos jornalistas.

Mas é da perda desses ingênuos ídolos ou estrelas – do tipo Jairzinho, Paulo César, Didi e Gérson – que o Botafogo mais se ressente. O clube nos últimos tempos viveu do futebol deles. É um time que precisa de craques geniais, pois os torcedortes cariocas continuam preferindo Flamengo, Fluminense e Vasco na hora de escolher um time.

Nilton Santos disse recentemente, na porta de sua loja de artigos esportivos, na Rua Voluntários da Pátria, que tem muito medo do destino do seu clube por causa do desaparecimento dos grandes nomes.

- Meu maior receio é que o Botafogo vire um Bangu. Até já disse para uns amigos: na televisão preto-e-branco, quando passa o vídeo-tape do Bangu fico sem saber se é a rapaziada de Moça Bonita ou o meu Botafogo. Na teve preto-e-branco fica tudo igual. Tudo japonês.

O envolvimento passional que o clube tem com seus ídolos poderá levar o Botafogo à ruína? Parece que não. Os melhores tempos em General Severiano são aqueles em que há três ou quatro vedetes com problemas (um sem contrato, outro querendo se desquitar da mulher, um terceiro sem falar com o treinador e um quarto tentando renovar o contrato que só vencerá dentro de mais um ano, por estar com muitas dívidas) e quando tudo parece irremediavelmente confuso.

Mas o Botafogo de jogadores maravilhosos, de muitas excursões vitoriosas e que acumulou diversos títulos ao longo da década de 60, está cada vez mais distante. O clube vive uma terrível crise existencial. Não há dinheiro para comprar novos ídolos e com muita dificuldade consegue segurar um Marinho. E, para completar, já não surgem juvenis em General Severiano, como um Jairzinho ou Roberto.

O Botafogo conseguirá sobreviver sem grandes ídolos? Será uma missão provavelmente impossível para um clube que, apesar de tudo que conquistou, ainda não se tornou popular.

4 comentários:

Lorismario disse...

Rui. Algumas neuroses são completamente adaptativas. Como os workoolicos anônimos, por exemplo. E já que o texto foi escrito em 1975, bem que alguem, que conhcesse muito bem a história do Botafogo poderia escrever uma continuação de 1976 até 2014. O título seria "E a neurose continua: etapa de 1976 até 2014." Não poderá faltar a "bundada" do Bruno na cavadinha do Loco Abreu. A FlaPress ficará muito furiosa. Assim é a vida. Tudo muda a todo instante. Loris

Ruy Moura disse...

Jamais me esquecerei da 'bundada' de 2010. E eu que estive para ir ao Rio assistir ao jogo... Só não o fiz porque acreditei que a arbitragem não ia deixar passar essa oportunidade para 'oferecer' o tetra ao flamengo. Enganei-me. Arrependido estou de não ter ido.

Abraços Gloriosos!

Émerson disse...

Rui,

Terá sido um framenguista quem escreveu esse texto?
De Botafogo, esse não entende (entendia?) nada.
Saudações Gloriosas!

Ruy Moura disse...

Confesso que não sei qual é o time para o qual ele torce, mas esse texto foi escrito aos 28 anos. Hoje ele é um importante jornalista desportivo.

Abraços Gloriosos!

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