quarta-feira, 8 de junho de 2016

Depressão pós-festa

por LÚCIA SENNA
Cantora e escritora
[Escrito para o blogue Mundo Botafogo]

LÚCIA SENNA (à direita) FESTEJANDO

Sou festeira por natureza, é fato. Gosto de reuniões familiares, das festas de casamento, de aniversários, das comemorações natalinas, das festas juninas, dos festivos encontros nas casas de amigos e, acredite, não é balela, curti até mesmo o  chá de panela da filha da Isabella, que  está de casamento marcado com o pai da filha dela, história complicada e que não vem ao caso.

Eu sei, criatura, que não hás de acreditar no que agora hei de te revelar. Vou falar bem baixinho, lá dentro do teu ouvido, com todo cuidado pra não te assustar: não perco festas beneficentes, festas religiosas, festas infantis, juvenis e nem mesmo, pasme... festas de formatura!

Sim, eu sei que estás perplexa e não tiro a tua razão.  Mas sempre fui assim, meu nascimento já foi um acontecimento e aparando certas arestas não deixou de ser uma festa na amazônica floresta. Prometo que um dia te conto como foi o tal evento. Por enquanto só te digo que tudo ocorreu a bordo de uma pequena embarcação regional de Santarém para Manaus, travessia difícil, verdadeiro caos. Depois veio a calmaria, o porto seguro, o cais e a imprevista festa.  Mas isso também não vem ao caso e não vamos mudar o rumo da prosa, ou melhor, o rumo da festa.

Sou louca por festas não anunciadas que acontecem de repente, ao acaso, descontraídas, informais e que dão sempre certo, pois a expectativa é zero.

E o que dizer das festas à fantasia, das baladas, das cirandas e serestas ao relento, daquelas que se arrastam madrugada adentro, viola já rouca, afônica, porém incansável tocando toadas de amor aguardando o nascer do dia?

E as festas folclóricas? E a folia de Reis? E o boi- bumbá?

Uma das festas mais tradicionais da nossa região amazônica é a do boi-bumbá, que ocorre sempre no mês de junho e que, através de seus personagens, conta uma interessante história sobre  a negra Catirina e seu marido, o negro Francisco. Reza a lenda que a dita Catirina, grávida de muitos meses, sentiu um desejo incontido de comer língua de boi. A neguinha não falava em outra coisa, torrando o saco de nego Francisco que, num acesso de loucura, cometeu um verdadeiro desatino: matou o boi predileto do fazendeiro mais poderoso da região.

Podes tu imaginar o desfecho desta história?  Então escuta, que vou te contar.

Bem... assim que a morte foi descoberta, nego Francisco deu no pé,  correu léguas e léguas, esquecendo  de sua neguinha grávida e ávida de desejo  por uma linguinha de boi.  Nego Francisco prezava demais sua liberdade e tinha pavor de ser pego e preso.  Pois bem... na fuga encontra um pajé e várias curandeiras que cometem a incrível façanha de ressuscitar o animal. O boi, vivinho da silva, dança como nunca e a comunidade festeja por várias noites e dias.

O BOI-BUMBÁ

Se frustração levo da vida é a de nunca ter tido oportunidade de participar da festa do boi-bumbá. Sempre tive fascinação pela figura do boi, colorida, rica, misteriosa.  Ainda guardo esperança de um dia, quem sabe, ser o que é chamado de ‘miolo do boi’, pessoa que fica dentro de uma armação de madeira em forma de touro, coberta de veludo bordado e que tem a função de conduzir o animal pelas ruas da cidade.  Não, não ria de mim, pois é a mais pura verdade! Eu já te disse, ora essa, o quanto gosta de festa. 

Tenho percebido, no entanto, que o efeito pós-festa não presta, deixando-me com uma sensação de vazio, parecida com aquela que certas mulheres sentem  imediatamente após terem  parido seus bebês, a famigerada depressão pós-parto. 

Há bem pouco tempo, ao invés de lamentar a escassez de convites para festas, resolvi convocar amigos e abrir as portas do meu Apezinho para um encontro festivo. Os dias que antecederam o tal encontro foram deliciosos. Minha imaginação corria solta, sem rédeas, sem freios, qual criança à espera de Noel.  E era um tal de enfeitar a casa, flores para todos os lados, mudança na arrumação dos móveis para a sala ficar mais confortável,  preparar comidinhas, salgadinhos,  queijinhos, salaminhos, tudo para o ninho tornar-se  aconchegante para minha querida gente, alguns amigos da vida inteira, outros de hora e meia. 

A reunião foi ótima, todos presentes, instrumentos de percussão à vontade, violão alegrando ainda mais o ambiente, conversas fiadas, animadas, muitas piadas picantes, azeitadas, risos, gargalhadas regadas a cerveja, vinho, caipirinha e  no cardápio de bebidas também não faltava a nossa  brasileiríssima e devassa cachaça. Cantamos, dançamos, recitamos Vinícius, fomos ridiculamente engraçados, bobos, tontos de tantas doses extras de pinga resultando em  homéricos  porres de incontida felicidade!  

A noite já ia longe e aos poucos as pessoas foram se retirando e, de repente, me vi só, rodeada de latas e garrafas vazias, móveis desalinhados, almofadas pelo chão, copos sujos por todo lado e em cada canto da sala uma saudade, uma ausência, uma melancolia, uma indefinida agonia, uma vontade incontida de chorar, de esconder o rosto dentro das mãos,  de esconder o corpo dentro da rede, de me esconder de mim mesma, de dormir profundamente num colo quente que infelizmente não existe mais. Fiquei ali até o romper da aurora e ainda depois, por muitas e muitas horas, no quarto frio, empanturrada de solidão.  Farta de vazio.

Acho, sinceramente, que sofro de ‘depressão pós-festa’, síndrome, penso eu, ainda não rotulada pela medicina, mas que sinto e sei  que não passa com nenhum chazinho ou cafeína, escalda-pé, sal grosso, cafuné, relaxante muscular e nem mesmo com a boa e velha aspirina. Melhora depois de muito choro e só passa completamente quando outra festa já se avizinha.

Texto: LÚCIA SENNA; Fotos: 1ª - FERNANDO MOURA PEIXOTO (ambas da montagem); 2ª - Rede Mundial (Internet).

20 comentários:

Anónimo disse...

Belo texto, parabéns

Unknown disse...

Lúcia Senna, minha nova colega do MB, arrasou em sua primeira crônica para o blogue. Bravo!

Ruy Moura disse...

Comentário deixado pelo nosso leitor Marcos no texto de apresentação de Lúcia Senna: "A depressão é um tema instigante e profundo. O olhar da cronista nos mostra uma realidade particular e inusitada que atrai e cativa o leitor."

Parabéns Lúcia!! Que outros textos surjam para enriquecer o nosso Mundo Botafogo!

Unknown disse...

Carmem Cardoso-Arte Educadora
Sou também festeira e leitora!Adorei o texto!! Som,fantasias...dessas festas penetrou fundo na minha alma.
Parabéns Lucia ,pela sua capacidade de levar o leitor a voar no tempo e alimentar a imaginação.
E que venham novos sorrisos,novas histórias e novas pessoas.

PCORRÊA disse...

Me pegou de surpresa ao ler essa cronica tão bem estruturada e contagiante falando da falta de festa que faz a essa dama das festas.
Texto rico, bem estruturado, montado e com uma espinha dorsal direta para explicar a falta que lhe faz as festas e que a faz feliz.
Parabéns Lúcia e espero poder ver mais textos seus por aqui tão bem argumentados e alegres como você parece ser.

Anónimo disse...

Gostei muito dessa crônica e me identifiquei com a descrição e o sentimento festeiro.
Lindo.

ney roberto disse...

A festeira Lúcia Senna diz a que veio. Sem papas na língua se apresenta em qualquer ajuntamento para festejar qualquer coisa e depois nos conta numa verve exuberante e gostoso. Continua Lúcia, conta mais!

Lúcia Costa disse...

Obrigada pelo elogio
Abraços,

Lúcia Costa disse...

Obrigada Marcos,
Tomara que eu consiga continuar cativando leitores como você que
tanto me estimulam, com comentários muito interessantes!
Abraços,

Lúcia Costa disse...

Gostei demais do comentário!
Saber que a minha crônica penetrou fundo na tua alma,
deixou-me muito feliz! Bonito quando escreves ..."voar no tempo
e alimentar a imaginação.."
Obrigada,amiga leitora, e que possamos continuar compartilhando novas histórias e emoções.
Abraços,

Lúcia Costa disse...

Agradeço pelo elogio e saiba que comentários assim são altamente
estimulantes e me deixam com vontade de escrever mais e mais...
Obrigada,

Lúcia Costa disse...

Obrigada, Ney Roberto.
Que delícia de comentário!
A vida é uma festa que, infelizmente, passa muito depressa...
Então, vamos aproveitá-la, não é mesmo?
Sigo o teu conselho e pretendo contar muito mais.
Estou te esperando aqui no Mundo Botafogo- blogue que tão bem me acolheu,
para que possamos compartilhar novos textos e emoções.

Um grande abraço,

Lúcia Costa disse...

Bom mesmo é abrir o blogue e ver comentários tão estimulantes quanto o teu.
Obrigada, cara leitor, pois " Depressão pós festa" é a minha primeira
crônica publicada no Mundo Botafogo. Ficamos sempre ansiosos diante do novo.
Portanto, é de suma importância constatar que gostaste do texto, pois isso é fundamental e me faz acreditar que estou indo no caminho certo.

Um grande abraço,

Anónimo disse...

Legítima mostras ser se escreves sobre festas!
Uma leve porém esmiuçada visão,
Contida com muito carinho em teu coração...
Impressionado estou pelas linhas imodestas,
As palavras, tais sons de interno diapasão!

Lúcia Costa disse...

Meu Deus! Um comentário em forma de acróstico...
Que beleza! Quanta criatividade e concisão na análise da
minha crônica!
Estou verdadeiramente lisonjeada!
Muito te agradeço pelo poema/elogio.
Um grande abraço,

ney roberto disse...

Lúcia, estou aqui, mas frustrado por não encontrar novas crônicas. Ou você será igual ao autor da Marselhesa, que a escreveu e desapareceu.
!

Unknown disse...

Lucia parabéns pela sua maravilhosa maneira de ver o fim de festas , belíssima interpretação de como sentirmos o pôs solidão , o vazio e nostálgico momento pôs alegria !!!
Parabéns e que venha mais e mais , que vire um livro de crônicas maravilhosas !!!!!��������������������

Lúcia Costa disse...

Oi, Fernando
Quero te agradecer pelo grande incentivo que me deste.
Milton Nascimento, nosso grande compositor, diz em uma de suas canções :" amigo é coisa pra se guardar, debaixo de sete chaves, no lado esquerdo do peito..."
E é assim que te guardo, amigo querido.

Lúcia Costa disse...

Confesso, Ney Roberto, que a causa da tua frustração, muito me alegra.
Em breve, estarei de volta e entusiasmada para escrever novos textos.
Gostei do comentário bem humorado. Tu me fizeste rir e rir ainda continua sendo
um grande remédio.
Um forte abraço

Lúcia Costa disse...

Obrigada, Daiane, pela força.
Percebi, nas entrelinhas, que sabes bem o que significa esse tipo
de depressão. Outras crônicas virão. Tomara que eu possa continuar te emocionando...
Tomara!
Um grande abraço,

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