“Durante quase três décadas
fingiu ser jogador de futebol. Minutos em campo e golos? Nem vê-los. Botafogo, Flamengo, Puebla, Ajaccio, Fluminense, Vasco da
Gama, Independiente... entre outros. À primeira vista este não parece ser um
currículo particularmente modesto no que à vida de um futebolista sul americano
diz respeito. Para um brasileiro, ainda para mais, juntar o Independiente, um
dos gigantes da América do Sul, a alguns dos maiores clubes brasileiros, ainda
para mais, os quatro grandes do Rio de Janeiro, é mesmo um currículo a roçar o
invejável. Este é o currículo de Carlos Henrique Raposo. O currículo de Carlos
Kaiser, o maior aldrabão da história do futebol brasileiro e, quem sabe, do
futebol internacional.” – João
Pedro Cordeiro,
in Bancada.pt
A vida de
Kaiser já foi abundantemente divulgada na comunicação social, chegando
recentemente ao cinema um documentário (2017) sob o título original ‘Kaiser: The Greatest Footballer Never to Play Football’.
A obra foi dirigida pelo britânico Louis Myles, tentando explicar como um
sujeito que nunca foi habilidoso jogando futebol acabou sobrevivendo tanto
tempo dentro do mundo do futebol, integrando planteis com Carlos Alberto
Torres, Renato Gaúcho, Ricardo Rocha, Romário, entre outros.
Em 2018, a carreira fabricada por Kaiser é editada em livro pelo jornalista
Rob Smyth, explicando como ele enganou, durante 26 anos, alguns dos maiores
clubes do Mundo e que encheu um estádio em França para a sua apresentação
oficial.
Kaiser jogou futebol nos escalões de base, mas quando chegou à idade de
integrar equipes principais faltou-lhe a veia para um futebol capaz. Então,
engendrou uma carreira cheia de lesões e fugas a treinos e jogos, embora tenha
conseguido ser contratado por grandes clubes, especialmente no Rio de Janeiro.
Poucos se lembram dele porque à época, na década de 1980, não existiam os
canais de informação atuais que, certamente, fariam cair rapidamente a máscara
do aldrabão.
Kaiser manteve sempre boas relações
com amigos que o encobriam, como um dentista que lhe passava atestados de
infeção dentária às centenas, e com a imprensa. Distribuía camisas dos clubes,
passava algumas informações à mídia e aparecia em matérias acompanhado de
adjetivos como ‘artilheiro' e 'goleador'. A imprensa dava respaldo à imagem de
bom jogador que era vendida aos clubes. Quando foi para o Bangu, um jornal da
época chegou a publicar uma matéria intitulada “O Bangu já tem seu rei: Carlos
Kaiser”.
Durante
anos estudou os maneirismos dos melhores jogadores do Mundo, trabalhou no
físico em ginásios e construiu uma personagem praticamente inabalável.
O editor do blogue Mundo Botafogo compilou diversas entrevistas do
próprio Kaiser contando a sua inacreditável história. Ei-lo falando na primeira
pessoa do singular:
– Quero que
percebam os motivos que me levaram a mentir. A pobreza da minha família
atirou-me para um poço sem fundo, sem eu ter opção. Habituei-me a representar
porque não me deixaram ser o que eu queria.
– Eu tenho
facilidade em angariar amizades, tanto que muitos da imprensa da minha época
gostam de mim, porque nunca tratei ninguém mal.
– Jogo completo se tiver uns 20, 30, tem muito. Todo jogo eu dava ‘migué’. Todo jogo eu saía machucado, até treino, se eu pudesse, eu saía machucado.
– Eu mandava
alguém levantar a bola pra mim e errava a bola. Aí sentia o posterior da coxa,
ficava 20 dias no departamento médico. Não tinha ressonância (magnética) na
época. E quando a coisa ficava pesada para o meu lado, tinha um dentista amigo
meu que dava um atestado de que era foco dentário. E assim ia levando. [E Renato Gaúcho corrobora: – Sei
que ele era um inimigo da bola. A parte física era com ele. No coletivo ele combinava
com um colega... Na primeira jogada me acerta porque eu tenho que ir para o
departamento médico.]
– Na época a
gente ficava concentrado em hotel. Eu chegava três dias antes, levava dez
mulheres e alugava apartamentos dois andares abaixo do que o time ia ficar. De
noite ninguém fugia de concentração, a única coisa que a gente fazia era descer
escada. Tanto que tem treinador hoje que bota segurança no andar.
– Mulher era a
coisa mais fácil, podia ser em espanhol, inglês, francês. Porque jogador já tem
esse assédio, eu não me considero um cara feio.
– Era viciado em sexo, como Michael Douglas.
Me deitava com ao menos três mulheres por dia.
– Se fui clone de
alguém na vida foi do Renato Gaúcho. A gente se conheceu em 83, ele jogava no
Grêmio e vinha muito pro Rio. Essa fama que ele tem com as mulheres perto de
mim não é nada. A gente saía muito, eu, ele e o Gaúcho (ex-atacante do
Flamengo).
– Sentei-me no
balneário, o doutor Castor [presidente do Bangu] entrou e quando ele
chegou perto de mim, disse-lhe: “Antes que o senhor diga qualquer
coisa, Deus deu-me um pai e o levou. E Ele me deu outro. Então
jamais vou admitir que digam que o meu pai é ladrão e os adeptos
estavam atrás de mim gritando isso.’ Ele segurou-me pela nuca,
beijou-me e convidou-me para viajar. E renovou comigo por mais seis
meses.” [Explicando
por que arrumou uma briga com adeptos logo antes do jogo de estreia pelo Bangu
de modo a ser expulso antes mesmo de começar o jogo]
– Era
brasileiro, e brasileiro tem muita fama por lá [Explicando
a sua apresentação pública em um clube francês que incluía um treino de 15
minutos para a torcida]. O estádio era
pequeno, mas estava bem cheio. Pensei que iria só acenar e tal, mas vi um monte
de bolas no campo e percebi que teria um treino. Fiquei nervoso porque logo no
primeiro dia eles iriam ver que eu não jogava nada. Comecei a pegar todas
as bolas rapidamente e chutá-las para o público. Os adeptos foram à
loucura. Não sobrou uma bola em campo. Ao mesmo tempo beijava a
camisola do clube. Conquistei o carinho dos adeptos e acabou só
acontecendo um treino físico.
– A vida é
marketing. Eu tinha a aparência de uma estrela do futebol. Sabia como falar e
como vender a minha imagem. Quem me via pensava: o tipo jogou em França, esteve
no Flamengo, no Fluminense, é amigo do Bebeto e do Carlos Alberto. Este tipo é
o ‘real deal’. É como o Messi e o Beckham. O Messi é o melhor jogador, mas
aquele que vende é o Beckham. O Messi não vende. Não tem a maneira certa de
falar. Eu tinha. Apareci em vários programas no Brasil e hoje atraio a atenção
a nível global. Não teve nada a ver com a minha qualidade enquanto jogador ou
amante. É tudo culpa do meu carisma.
– Não me
arrependo de nada. Os clubes já enganaram tantos os jogadores, alguém tinha que
ser o vingador dos caras.
– Todos os times que participei
celebraram duas vezes: quando assinei e depois quando fui.
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