por MAURÍCIO AZEDO
Placar, 4 de fevereiro de 1977
Há muitos meses o velho Carlito Rocha não passava pela porta da sede do Botafogo. Parecia cumprir uma promessa feita a si mesmo: seu coração não suportava a emoção de contemplar a ainda imponente sede do clube e relembrar que dentro em breve nada restará dela. Nem do campo do Botafogo: do antigo estádio restam apenas uns 40 metros de arquibancada – uma ilha em meio ao cascalho em que foi transformado o resto do campo, após a venda do terreno à Cia. Vale do Rio Doce, em janeiro do ano passado.
Indiferentes às glórias ali colhidas pelo Botafogo, entre elas a da conquista do Campeonato Carioca de 1948, o de maior densidade dramática na história do clube, dezenas de operários trabalharam durante meses na demolição das arquibancadas que viram o virtuosismo e a neurose de Heleno de Freitas, a segurança e a elegância de Nilton Santos, a magia e o malabarismo de Garrincha. A partir do dia 24de janeiro passado, uma segunda-feira, a demolição seria acelerada: às 18 horas emponto, o Botafogo transmitiria oficialmente à Vale do Rio Doce a posse de seu terreno.
O cruzado em ação
Nesse dia, porém, o velho Carlito Rocha violou seu juramento e vestiu sua roupa de cruzado. Às 4 horas da tarde ele baixou no Botafogo e durante horas a fio fez uma pregação obstinada, num derradeiro esforço para evitar que se consumasse a lesão que considera intolerável para o patrimônio afetivo do clube.
“O Botafogo não pode sair daqui. O Botafogo é o maior clube do Brasil, é uma instituição nacional”, repetia ele com um vigor surpreendente para os seus 86 anos. “Eu só peço uma coisa: não decidam nada. Me dêem tempo porque em 15 dias eu resolvo essa parada. Vou ao presidente da República, exponho tudo. O presidente impedirá isso. O Botafogo não pode sair daqui. Esse chão é nosso, é a vida do clube”.
Somente à 1 hora da manhã Carlito Rocha deixou a sede do Botafogo. Estava dominado pela fadiga, mas não pela desesperança. Suas palavras e seus apelos, porém, já não podiam reparar o irremediável. Das 9 da noite à meia-noite e pouco, 140 conselheiros do clube, em reunião especial, tinham aprovado uma série de medidas que preparam a nova era do clube: o Botafogo de Marechal Hermes, um subúrbio distante, onde será construído seu novo campo.
– Carlito ainda não compreendeu que as coisas mudaram. Antigamente um clube devia dinheiro ao governo ou a uma companhia oficial, e bastava um apelo, uma campanha da imprensa, para a dívida ser esquecida ou mesmo perdoada. Agora é diferente. Infelizmente o Botafogo tem mesmo que sair daqui – disse o jornalista Sandro Moreira, membro do Conselho Diretivo do clube e integrante da sólida maioria que se convenceu da nova realidade: o Botafogo tem de sair para outra, pois se acabou a era de General Severiano, a rua da atual sede.
Para Sandro, o gesto de Carlito Rocha merece homenagem, é mais uma prova do seu amor a clube. A seu ver, trata-se de uma resistência desesperada, inútil. Em tom de admiração, Sandro define o velho patriarca do clube:
– Carlito é o último botafoguense vivo.
Como Carlito Rocha,
a velha-guarda botafoguense não consegue acostumar-se à idéia de que o Botafogo
seja despojado de sua sede e de seu campo.
4 comentários:
Boas. Só uma correção. Em 1977 a revista era chamada de Placar. A revista só passou a ser chamada de Placar Magazine no final da década de 1980. Suas pesquisas são muito importantes. A memória é senão o maior, um dos maiores patrimônios de qualquer associação. No caso do Glorioso, repleta de fatos fundamentais para a história do país e para a construção da identidade do brasileiro, mais do que nunca.
Foi o maior erro que esses conselheiros cometeram contra o Botafogo de Futebol e Regatas. Essa dívida sendo cobrada do clube e este tendo que vender seu patrimônio é algo inédito na história dos clubes de futebol pelo menos nos chamados grandes clubes. Problemas políticos decorrentes do período em questão mostram que o objetivo maior era acabar com o Estádio de GS, tanto é verdade que nunca destruíram o casarão e mais, a Vale sabia que não poderia construir uma sede ali devido a restrições da lei em relação ao gabarito das construções. Foi um dos maiores crimes lesa Botafogo na sua gloriosa história. Ali, enterraram o Botafogo de Futebol e Regatas. Certa vez perguntado ao Maninho sobre as dívidas do clube, ele disse que era estranho nunca cobrarem nada do flamengo que devia 10 vezes mais que o Botafogo. Saldanha comentou certa vez sobre a "operação 63", que envolveu Botafogo e Flamengo, e disse que se cobrassem do clube da Gávea não sobrariam nem as balizas.Aliás, a Gávea não é patrimônio do Flamengo, pois segundo li, Aquela área é em regime de comodato, o clube não pode vender. Não posso afirmar se é verdade, pois a fonte que li, já perdi há muito tempo.
Ninguém me convence que essa venda não foi tramada nos bastidores sujos da política então vigente, a ditadura militar. Lembremos que um dos que mais odiavam o Botafogo era o dono de uma organização da mídia que apoiou a ditadura e que até pagou a contratação um grande craque PC Cajú.
Me lembro de um oficial de alta patente comentando que aquele estádio incomodava os moradores de um conjunto ali construído, o Morada do Sol, onde vários e vários proprietários eram oficiais de alta patente. Lembrando que no entorno daquela região existem várias instalações militares, eu inclusive servi no IME, que fica na Praia Vermelha, em frente ECEME, o Forte São João, no Leme, o estádio era um estorvo para essa gente em dias de jogos. Nada posso afirmar, mas foi isso que ouvi.
É sempre bom lembrar do episódio em 68, onde estudantes da UFRJ foram abrigados pelo presidente do Botafogo Altemar Dutra de Castilho, que impediu a entrada dos militares que perseguiam os estudantes. Não nos esqueçamos dos "comunistas" que frequentavam o clube e a fote oposição do clube a ditadura.
Desde sua fundação o Botafogo incomoda muita gente, e a história nos mostra as tentativas de destruir o clube. Que os de fora queiram destruir o clube, não é algo normal, mas os de dentro destruírem o clube, isso é traição, e os piores inimigos do clube são os que estão dentro. Isso me lembra uma frase de um botafoguense ilustre: "antes de conhecer a política do Botafogo eu só tinha raiva dos flamenguistas".
Triste fim de um dos clubes mais importantes da história do futebol brasileiro e mundial, responsável por tantas glórias para o futebol nacional com um sem número de grandes jogadores e juntamente com o Santos são os únicos clubes do país a ter jogadores na seleção da Fifa do século XX.l Os grandes dirigentes, os grandes craques e sua fiel e apaixonada que construíram tudo isso torcida não mereciam que o clube chegasse a esse ponto. Uma dívida inexplicável para os elencos montados nos últimos tempos é algo realmente revoltante. O futebol não merecia isso. Abs e SB!
É verdade, Felipe. Vou alterar. Todavia, há uma explicação: a biblioteca Google anunciava como Placar Magazine. Creio que optaram por chamar uniformemente assim todas as edições, e eu citei como tal.
Sim, concordo quanto à memória: é o maior patrimônio de qualquer associação, e foi por essa razão que o Mundo Botafogo foi fundado em dezembro de 2007, quando não havia praticamente memória do Botafogo registada em espaço próprio, com a missão de "compilar e divulgar a história do Botafogo de Futebol e Regatas, registrando casos e façanhas em mais de cem anos de existência do Clube da Estrela solitária, cuja vida se iniciou oficialmente a 1 de julho de 1894 com a fundação do Club de Regatas Botafogo".
Abraços Gloriosos.
100% de acordo com o que escreveu, Sergio. Desde a saída de Paulo Azeredo e Sergio Darcy de timoneiros do Clube, em 1963, os presidentes que se seguiram enterraram o Botafogo, particularmente Rivinha que fez o negócio da venda à Vale do Rio Doce, e Borer apenas assinou tuso o que já estava montado. Depois foi Manynho que ainda tentou algo, mas estava desamparado. Quer queiram quer não, foi o 'bicheiro' que reabilitou o Botafogo - um Emil que se sabia de onde vinha e quem era, ao contrário de antecessores que se sabia de onde vinham mas não quem eram. E depois dele foi o período negro de comando CAM que termina nesta gerontocracia que liquidou o Botafogo, que provavelmente só se recupera com a solução da falência proposta por Santoro, à semelhança do que aconteceu ao escocês Rangers, que faliu, desceu à quarta divisão, retornou à 1ª e está pronto a continuar a sua gloriosa história.
Creio que o Botafogo não acabará, mas talvez tenha que falir para renascer renovado, tal com o Fênix ou o Escorpião, que lançando contra si o aguilhão mortal quando nos acampamentos o rodeavam de fogo mas que na manhã seguinte não o encontravam lá...
Abraços Gloriosos.
Enviar um comentário