por MAURÍCIO AZEDO
Placar, 4 de fevereiro de 1977
O velho heroísmo
É essa trégua que estimula Carlito Rocha a insistir naquele que pode ser o último grande sonho da sua vida e que assumiu contornos de grandeza dramática quando ele se dirigiu ao Conselho Deliberativo na reunião de 24 de janeiro. Embora não estivesse inscrito entre os oradores, nem sequer tivesse assinado o livro de presença, Carlito pediu a palavra e durante alguns instantes manteve o plenário em respeitoso silencia com o tom de determinação que impregnou pelo menos uma de suas frases.
Carlito está intimamente ligado ao momento mais alto da existência do Botafogo em General Severiano: a conquista do campeonato carioca de 1948. Muitos torcedores esqueceram os nomes de alguns dos integrantes da equipe campeã, formada por Osvaldo, Gerson e Santos, Rubinho, Ávila e Juvenal, Paraguaio, Geninho, Pirilo, Otávio e Braguinha. Mas raros deixam de lembrar a contribuição prestada fora do campo por Carlito Rocha, então presidente do clube.
– Naquele campeonato o Botafogo realmente se superou – diz Sandro Moreira, que não se cansa de exaltar os serviços prestados por Carlito. – Na verdade, o melhor time do Rio era o Vasco da Gama, que tinha sido campeão invicto em 1947 e que de 1945 a 1952 foi longe o melhor time brasileiro. O Botafogo era todo emocional: foi ungido por Carlito. Seus jogadores não admitiam perder, para “não dar um desgosto a seu Carlito”. Eu me lembro de um jogo em que o Olaria estava ganhando de 3 a 1, em Campos Sales, e o Botafogo ganhou a partida de 4 a 3 fazendo três gols em19 minutos, no fim da partida. Por trás de cada jogador – ou dentro de cada um – havia Carlito Rocha.
No estádio de General Severiano foi protagonista, naquele campeonato de 1948, de uma das mais formidáveis viradas já havidas em jogos do Rio. Depois de estar perdendo de 3 a 1 para o Flamengo, que chegou a fazer um gol-fantasma por intermédio do centroavante Gringo (Osvaldo Baliza, goleiro do Botafogo, chutou a bola para o meio do campo e voltou tranqüilo para o gol; de voleio, Gringo emendou de primeira, surpreendendo Osvaldo que, de costas para o lance, mal teve tempo de tocar na bola, antes que ela entrasse), reagiu de forma arrasadora e acabou vencendo por 5 a 3. O jogo deu uma antevisão do que seria a festa do título: os jogadores e o técnico Zezé Moreira foram carregados em triunfo, depois que a torcida, enlouquecida pela vitória, saltou o alambrado para festejar seus ídolos.
A voz da resistência
A campanha foi conduzida com um estilo que o marcaria de forma muito própria no futebol brasileiro. Para dar mais vitalidade aos jogadores, introduziu na rotina da alimentação o complemento de uma gemada, que ele considerava capaz de produzir milagres. Às suas preces e promessas de católico fervoroso – no seu último aniversário do Botafogo, a 8 de dezembro, recusou sentar-se na mesa de honra para não dar as costas a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do clube –, juntou todo um rosário de superstições que tinha como principal personagem a cadela Biriba, uma vira-lata levada para o clube pelo ex-jogador Macaé e que deu sorte num dos jogos e por isso tornou-se mascote do time. Na partida de decisão, disputada diante de 12 300 pessoas em General Severiano, o Botafogo catimbou o que pôde, sob a batuta de Carlito. O time do Vasco mudou de roupa no ônibus do clube, por temer alguma falseta do Botafogo, mas nenhum cuidado impediu que o Botafogo o vencesse de forma categórica: 3 a 1. Entre os heróis da conquista do título, nenhum foi maior que Carlito Rocha.
Foi esse Carlito mítico, saído da mitologia do Botafogo, que deixou o plenário do conselho em transe ao proclamar esta meta de uma vida toda dedicada ao clube.
– Eu sou a voz do Botafogo que não quer sair daqui.
A mesma velha-guarda que se empenha na defesa da sede é acusada de ter levado o Botafogo ao caos financeiro que culminou com a perda do terreno de General Severiano. Ao assumir a presidência, há pouco mais de um ano, Charles Borer encontrou o Botafogo com uma dívida que a 30 de janeiro de 1976, data da venda da sede, montava a mais de 48,6 milhões de cruzeiros. Era o passivo deixado por três administrações que Sandro Moreira classifica de “desastrosas”: Nei Cidade Palmeiro, que dirigiu o clube de 1964 a 1970, Altemar Dutra de Castilho e Rivadávia Correia Méier.
– Na gestão de Rivinha (Rivadávia), o Botafogo chegou ao caos – diz Sandro Moreira. – Na tentativa de enfrentar os problemas financeiros do clube, Rivinha fez uma operação 63, pela qual alguns clubes brasileiros, como Botafogo e o Flamengo, puderam levantar recursos no exterior. Acontece que, mesmo recebendo 1 milhão de dólares, o Botafogo não resolveu seus problemas financeiros. E ainda passou a pagar juros em dólar, que sofre mais de dez aumentos por ano. Por último, Rivinha consolidou a dívida com a Caixa Econômica, que não faz benemerência, pois é um banco como outro qualquer: ao fim da gestão de Rivinha, o Botafogo estava pagando (ou deixando de pagar, pois não tinha dinheiro) 2 milhões de cruzeiros de juros por mês.
Os últimos meses da administração de Rivadávia foram dramáticos. Acossado pelos credores, o Botafogo consolidou sua dívida e ficou com um único credor, a Caixa Econômica, mas em compensação 83% de suas rendas passaram a ser apropriados na boca do cofre.
– O Botafogo jogava
no Maracanã e, no fim do jogo, sua quota na renda não dava nem para pagar o
bicho dos jogadores – diz Sandro, que apresenta uma imagem bem expressiva da
penúria que o clube vivia: a do time treinado no jardim, porque não havia
recursos para reparar o gramado, diante dessa situação, todas as correntes
preocupadas com a sobrevivência do clube e a restauração da grande fase do
futebol do Botafogo – a dos campeonatos de 1957, 1961, 1962, 1967, 1968 – se
uniram em torno de Borer para afastar os responsáveis pelo desastre.
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