terça-feira, 30 de setembro de 2025

Garrincha visto pelo cronista ‘peladeiro’

Fonte: Castro, R. (2018). Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha. Lisboa: Edições Tinta da China.

por PAULO MENDES CAMPOS | poeta, ensaísta, jornalista, contista, escritor, confesso peladeiro e botafoguense

«Quando ele avança, tudo vale. A ética do futebol não vigora para Mané. O fair-play britânico é esquecido pelos marcadores, pelo juiz e pela própria torcida. Normas e regras do association abrem estranhas exceções para êle. Uma conivência complacente se estabelece de imediato entre o árbitro e o marcador, o primeiro auxiliando o segundo, fechando os olhos às sarrafadas mais duras, aos carrinhos mais espetaculares e, aos trancos mais violentos; às obstruções mais evidentes. Quando todos esses recursos falecem, o marcador em desespêro, sem medo ao ridículo, agarra a camisa ou a cintura de Garrincha. O juiz aí apita a falta, mas sem advertir o jogador que usa o recurso ilegal.

Todos os jogadores do mundo, afirma o professor Nilton Santos, são marcáveis, menos seu Mané; êste só com revólver. Nilton é o mais consciente dos fãs de Garrincha, costumando dizer que, se está ainda a jogar futebol depois dos trinta anos, é por ser também do Botafogo.

Quando Garrincha apareceu para treinar em General Severiano (a direção andava louca atrás de um ponta direita), Nilton Santos, um pouco por comodismo, outro tanto por humorismo, marcava os candidatos à posição no grito. O ponta pegava a bola e, antes de conseguir dominá-la, já sabendo que estava ali o melhor lateral-esquerda do mundo, ouvia um grito: Oi! A bola lhe escapava dos pés, e Nilton Santos se apoderava dela tranquilamente. Uma tarde apareceu para treinar um menino de pernas tortas. Já no vestiário, o técnico Gentil Cardoso, rindo-se, chama a atenção de todos para a anomalia do novato: aquêle sujeito podia ser tudo na vida, menos jogador de futebol.

Começado o treino, lá pelas tantas uma bola sobrou para Garrincha. Nilton deu o grito de costume, mas o menino torto matou a bola e ficou esperando. Ferido pela ousadia, Nilton partiu para cima do garôto com decisão. Talvez nesse momento estivesse em jôgo o destino de Garrincha: se Nilton lhe tomasse a bola, e lhe aplicasse como corretivo duas ou três fintas, possivelmente Gentil Cardoso não esperasse muito para enviar o novato ao chuveiro, sem permitir-lhe maior oportunidade. Apesar dêsse perigo, a despeito de não estar enfrentando um marcador qualquer, Garrincha escolheu o caminho mais difícil: driblar Nilton Santos ou voltar para o trabalho mal pago da fábrica. Só três vezes em sua carreira, Nilton levou um drible entre as pernas: a primeira foi ali. A turma que não perde treino ficou boquiaberta; o lance abriu um crédito de curiosidade para Garrincha, seu destino estava salvo.

Divulgação / Ultimato do Bacon.

Quem levou Garrincha para o Botafogo foi Arati, depois de apitar uma partida em Pau Grande, 3º distrito do município de Magé. Tendo começado a chutar a bola aos 10 anos de idade, Garrincha não teve outro clube além do Pau Grande F. C. e o Botafogo. Apesar de sua extrema simplicidade, duas vêzes seu Mané desconfiou que tinha bastante futebol para tornar-se profissional. Uma tarde, foi bater em São Januário. O Vasco era então um time de craques experientes, cobertos de glória, uma espécie de Academia Brasileira de Letras, sem perspectiva para estreantes. Garrincha uniformizou-se, mas não lhe apresentaram a bola. Meses depois, foi parar na Rua das Laranjeiras, conseguindo treinar meio tempo, já na hora da penumbra e do cansaço de Gradim, o técnico.

No Botafogo, Garrincha estreou na mesma semana em que apareceu, jogando no time de baixo. No domingo seguinte, a dramática torcida botafoguense via entrar em campo aquêle extrema-direita de pernas desajeitadas. Há coisas que só acontecem ao Botafogo, resmungaram nas sociais. O adversário era o Bonsucesso. Já antes do término do primeiro tempo, Manuel Francisco dos Santos tomava conta da posição, correndo como um potro, batendo na bola com segurança, fintando com estilo próprio, cobrando escanteios dos dois lados, sendo que do lado esquerdo a bola descrevia uma curva não prevista pela geometria euclidiana e pelos arqueiros.

Em suma, êle apareceu feito, praticando um futebol pessoal e desconcertante, onde só o dom da cabeçada era a única deficiência. Não quero ser modesto em futebol: descobri imediatamente êsse mundo nôvo com uma intuição alvoroçada de tôdas as alegrias que êle iria me dar. Senti Garrincha e Pelé à primeira vista, e êsse orgulho ninguém me tira

Nota do Mundo Botafogo: o texto corresponde ao original, respeitando a ortografia à época da publicação.

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Fonte: Castro, R. (2018). Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha . Lisboa: Edições Tinta da China. por PAULO MENDES CAMPOS | ...