por PAULO MENDES CAMPOS
| poeta, ensaísta, jornalista, contista, escritor, confesso
peladeiro e botafoguense
«Quando
ele avança, tudo vale. A ética do futebol não vigora para Mané. O fair-play
britânico é esquecido pelos marcadores, pelo juiz e pela própria torcida.
Normas e regras do association abrem estranhas exceções para êle. Uma
conivência complacente se estabelece de imediato entre o árbitro e o marcador,
o primeiro auxiliando o segundo, fechando os olhos às sarrafadas mais duras, aos
carrinhos mais espetaculares e, aos trancos mais violentos; às obstruções mais
evidentes. Quando todos esses recursos falecem, o marcador em desespêro, sem
medo ao ridículo, agarra a camisa ou a cintura de Garrincha. O juiz aí apita a
falta, mas sem advertir o jogador que usa o recurso ilegal.
Todos os
jogadores do mundo, afirma o professor Nilton Santos, são marcáveis, menos seu
Mané; êste só com revólver. Nilton é o mais consciente dos fãs de Garrincha,
costumando dizer que, se está ainda a jogar futebol depois dos trinta anos, é
por ser também do Botafogo.
Quando Garrincha
apareceu para treinar em General Severiano (a direção andava louca atrás de um
ponta direita), Nilton Santos, um pouco por comodismo, outro tanto por
humorismo, marcava os candidatos à posição no grito. O ponta pegava a bola e, antes
de conseguir dominá-la, já sabendo que estava ali o melhor lateral-esquerda do
mundo, ouvia um grito: Oi! A bola lhe escapava dos pés, e Nilton Santos se
apoderava dela tranquilamente. Uma tarde apareceu para treinar um menino de
pernas tortas. Já no vestiário, o técnico Gentil Cardoso, rindo-se, chama a atenção
de todos para a anomalia do novato: aquêle sujeito podia ser tudo na vida,
menos jogador de futebol.
Começado o treino, lá pelas tantas uma bola sobrou para Garrincha. Nilton deu o grito de costume, mas o menino torto matou a bola e ficou esperando. Ferido pela ousadia, Nilton partiu para cima do garôto com decisão. Talvez nesse momento estivesse em jôgo o destino de Garrincha: se Nilton lhe tomasse a bola, e lhe aplicasse como corretivo duas ou três fintas, possivelmente Gentil Cardoso não esperasse muito para enviar o novato ao chuveiro, sem permitir-lhe maior oportunidade. Apesar dêsse perigo, a despeito de não estar enfrentando um marcador qualquer, Garrincha escolheu o caminho mais difícil: driblar Nilton Santos ou voltar para o trabalho mal pago da fábrica. Só três vezes em sua carreira, Nilton levou um drible entre as pernas: a primeira foi ali. A turma que não perde treino ficou boquiaberta; o lance abriu um crédito de curiosidade para Garrincha, seu destino estava salvo.
Quem levou
Garrincha para o Botafogo foi Arati, depois de apitar uma partida em Pau
Grande, 3º distrito do município de Magé. Tendo começado a chutar a bola aos 10
anos de idade, Garrincha não teve outro clube além do Pau Grande F. C. e o
Botafogo. Apesar de sua extrema simplicidade, duas vêzes seu Mané desconfiou
que tinha bastante futebol para tornar-se profissional. Uma tarde, foi bater em
São Januário. O Vasco era então um time de craques experientes, cobertos de
glória, uma espécie de Academia Brasileira de Letras, sem perspectiva para
estreantes. Garrincha uniformizou-se, mas não lhe apresentaram a bola. Meses
depois, foi parar na Rua das Laranjeiras, conseguindo treinar meio tempo, já na
hora da penumbra e do cansaço de Gradim, o técnico.
No Botafogo,
Garrincha estreou na mesma semana em que apareceu, jogando no time de baixo. No
domingo seguinte, a dramática torcida botafoguense via entrar em campo aquêle
extrema-direita de pernas desajeitadas. Há coisas que só acontecem ao Botafogo,
resmungaram nas sociais. O adversário era o Bonsucesso. Já antes do término do
primeiro tempo, Manuel Francisco dos Santos tomava conta da posição, correndo
como um potro, batendo na bola com segurança, fintando com estilo próprio,
cobrando escanteios dos dois lados, sendo que do lado esquerdo a bola descrevia
uma curva não prevista pela geometria euclidiana e pelos arqueiros.
Em suma, êle
apareceu feito, praticando um futebol pessoal e desconcertante, onde só o dom
da cabeçada era a única deficiência. Não quero ser modesto em futebol: descobri
imediatamente êsse mundo nôvo com uma intuição alvoroçada de tôdas as alegrias
que êle iria me dar. Senti Garrincha e Pelé à primeira vista, e êsse orgulho
ninguém me tira.»
Nota do Mundo
Botafogo: o texto corresponde ao original,
respeitando a ortografia à época da publicação.
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