quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Manga, a aranha alvinegra

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por António Falcão

É pura valsa / e de Zequinha de Abreu / enquanto "Manga" é Orfeu (Ayrton Pelim).

Na Ilha do Retiro, estádio e toca do leão Sport Club do Recife, quem olhasse aquele rapaz esguio, sério e de rosto marcado pela varíola, via um belo projecto de goleiro. Isso em 1954, quando ele chegou à equipe juvenil do Sport aos 17 anos e com 1,86 m de altura. Nisso, Lula Carlos - repórter arguto e cronista antenado - quis saber mais. E o guardião tímido, adolescente sem traquejo verbal, disse ser Haílton Corrêa Arruda, ou Manga, nascido em 26 de Abril de 1937, no Pina - bairro da capital pernambucana onde havia vindo ao mundo um outro craque: Ademir Menezes, o Queixada.

Nesse 1954, sem tomar gol, Manga foi campeão juvenil invicto ao lado de Almir Pernambuquinho, meia de muita bola no pé e nenhum juízo no quengo. Mas o dia do jovem goleiro veio numa excursão à Europa, em 1956, com Oswaldo Baliza contundido em Lisboa e ele assumindo o arco do rubro-negro recifense, inclusive diante do Real Madrid, no estádio Santiago Bernabeu. Ano seguinte, com físico privilegiado, coragem, elasticidade, mãos enormes - que sofreriam inúmeras fracturas -, firmeza no jogo aéreo, óptima colocação e reflexo, Manga se notabilizou no Brasil. Porém, só foi para o Botafogo carioca viver o auge da carreira no início de 1959, tendo antes sido campeão estadual pernambucano pelo Sport, actuando com velhas raposas do futebol, como o craque carioca Mirim e o alagoano Tomires.

No Rio, criaram até prémio para quem fizesse gol nele. E Nilo, do América, levou um aparelho de televisão em 25 de Abril de 1959, véspera do aniversário do arqueiro recifense. Em 1960, Manga venceu o torneio internacional de Bogotá. E em 1962 os bicampeonatos dos torneio início e certame cariocas, ganhando ainda o 6o pentagonal do México e o torneio Rio-São Paulo. Sua performance fez Nílton Santos, o Enciclopédia do Futebol, confessar: "Foi o melhor goleiro que passou pelo Botafogo desde que me conheço por gente". E é possível que Garrincha, Didi e Amarildo - os outros artistas e ídolos do alvinegro - pensassem o mesmo do guarda-redes, a quem chamavam carinhosamente de Manguinha.


Mas, viciado e perdedor no baralho, Manga tomava empréstimos para cobrir dívida da jogatina. E depois pedia mais dinheiro ao clube. Para o jornalista João Saldanha, tal penúria expunha seu frágil carácter - e, adiante, isso seria o estopim da desavença entre eles. No entanto, em campo, o goleiro erguia troféus. Em 1963, foi tricampeão do torneio início e venceu o 4o torneio de Paris. Ano seguinte - com a liberdade no Brasil indo a pique em um reles golpe militar -, ele pôs o time na conquista destes títulos: torneio Rio-São Paulo, jubileu de ouro da federação de futebol da Bolívia, quadrangular ibero-americano de Buenos Aires e taça Governador Magalhães Pinto, em Belo Horizonte.

Manga apareceu na selecção brasileira em 1965, vencendo os alemães no dia 6 de Junho. Contra a ex-URSS, desatento ao bater o tiro de meta, ele acertou a cabeça de um russo e a bola, de volta, caiu nas suas redes. Nesse ano, fez 6 jogos pelo Brasil. E em 1966, antes de ir à Copa do Mundo na Inglaterra, venceu outro Rio-São Paulo. Às vésperas do Mundial, porém, outro autogolo (como se diz em Lisboa): pondo a bola vinda de córner dentro do próprio arco. E na Copa, contra Portugal, que venceu os brasileiros por 3 a 1, o aranha alvinegra ainda falhou. Porém, nada decisivo: a equipe lusitana era infinitamente melhor que a do Brasil. E tinha Eusébio - génio ao pé da letra. De tão bom, esse escrete português merecia ter ido até o final da competição, mas a esperteza britânica não permitiu e foi campeã do mundo diante da Alemanha.

Embora instável, Manga - pelo que fez no clube e na selecção brasileira - cativava a todos. O seu porte físico e arrojo impunham respeito, e era admirado pela elegância. No campeonato estadual carioca de 1967, ele praticamente deu a taça ao Botafogo. Nesse ano, o goleiro se despediu do escrete e quase leva um tiro de João Saldanha, que o acusara de se vender ao Bangu Atlético Clube. Em 1968 - com a Primavera de Praga oxigenando a vida e os jovens de vários países querendo banir o capitalismo do mapa -, Manga foi bicampeão no Botafogo, que há 10 anos dividia com o Santos o posto de melhor time brasileiro. A seguir, o guarda-meta iria para o Nacional de Montevidéu ser ídolo na República Oriental do Uruguai.

E lá teve 10 títulos. Destes, os principais foram: mundial interclubes (1971), Taça Libertadores da América (1971) e tetracampeão uruguaio (1969-1970-1971-1972). Por suas actuações, a imprensa local ainda o tem como o melhor goleiro que apareceu no país. Mas, em 1974, Manga voltou ao Brasil para ser o goleiro do Internacional de Porto Alegre e empolgar a torcida no estádio Beira-Rio. Nessa época de ouro do time Colorado, ele foi tricampeão gaúcho (1974-1975-1976) em uma equipe que contava com artistas como Figueroa - o mais fino zagueiro estrangeiro a actuar no Brasil, chileno superior a Basso (argentino do Botafogo, em 1949) e a Gamarra (paraguaio de vários times). E ainda com Paulo Roberto Falcão, Paulo César Carpegiani e Lula - este, conterrâneo de Manga. No entanto, o feito mais expressivo do goleiro no Rio Grande do Sul seria a conquista do bicampeonato brasileiro de 1975/1976.


Esse fenomenal atleta [na foto acima com o russo fora-de-série Yaschin] ainda se sagrou campeão mato-grossense no Operário de Campo Grande. E levou essa equipe às semifinais do Campeonato Brasileiro de 1977. Nisso, o técnico Cláudio Coutinho o convocara, pela última vez, para ser o reserva no escrete brasileiro. E a seguir Manga jogaria no paranaense Coritiba, quando o Coxa teve o título estadual de 1978. Concluindo a trajectória no País, ele serviu ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense em 1979 e - para variar - ganhou o campeonato estadual gaúcho. Dois anos depois, o nordestino fez-se campeão no equatoriano Barcelona de Guaiaquil, encerrando a carreira em 1982, aos 45 anos. E se radicaria por lá na função de treinador de goleiro, indo depois para Miami, nos Estados Unidos, onde (pelo menos até Março de 2006) trabalharia em escolinhas de futebol.

A rigor, pouca gente foi tão vitoriosa e longeva no futebol quanto Manga. Afora os títulos, no Botafogo carioca ele - tecnicamente perfeito - tem a marca invejável de 445 jogos e 258 gols sofridos. E na selecção do Brasil levou 15 tentos em 15 partidas. Mas muitos só lembram dele nos disparates que falava, como o do ingresso de seu irmão no América carioca, o que fez um repórter inquiri-lo: "Esse seu mano é bom de bola?" E ele: "Que nada, desde quando quem é bom vem para o América?" Diz-se até que Manga, aguardando julgamento no tribunal esportivo, falou por esquecer a palavra habeas corpus: "O Botafogo vai entrar na Justiça com um pedido de Corpus Christi". Porém, ainda hoje, os rubro-negros da Gávea carioca detestam lembrar isto que ele dizia sempre: "Contra o Flamengo, eu gasto o dinheiro do bicho na véspera do jogo". Dito assim, e com folclore à parte, há estudiosos do futebol que o vêem como o melhor goleiro nacional de todos os tempos. E por isso mesmo esses fãs de Manga devem ser respeitados.

Fonte:
http://www.contrapie.com/vercronicas.asp?ID=2024&idioma=3
[in António Falcão, "Os Artistas do Futebol Brasileiro", Recife, Ed. Nossa Livraria, 2006]

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