terça-feira, 1 de junho de 2010

A vida torta de Mané Garrincha (II)

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Revista Veja
8 de março de 1972


[Título alternativo proposto pelo editor do blogue: “A criança doce que falava com os passarinhos”]

EM FAMÍLIA – A triste sorte de Garrincha, nessa época, não chegou a surpreender ninguém. João Saldanha, técnico do Botafogo em 1957, ano em que Garrincha ganhou seu primeiro campeonato pelo time, lembra o episódio do "tal de Nílton Santos" como sintoma muito claro de sua alienação e do que estava para acontecer. Garrincha, diz ele, não é um poeta: "É um primitivo, um matuto, meio índio, meio selvagem, criado num submundo de miséria e ignorância, um lugar atrasado onde nem o trem parava".

Esse fim de mundo, Pau Grande, não tem cinema, nem cartório, nem mais nada. Quase tudo - terrenos, empregos, pessoas - pertence à fábrica América Fabril, uma tecelagem que hoje, mal se recuperando de uma concordata, não consegue reempregar todos os seus antigos funcionários.

Mané Garrincha nasceu ali, quarto filho de uma família numerosa e marcada pela tragédia. O pai, guarda, morreu de cirrose. Uma irmã, Teresa, morreu aos catorze anos de barriga d'água. Outra, ao cair de um caminhão num dia de festa, e o filho desta, agora com dezesseis anos, perdeu uma perna quando caiu de um trem.

Garrincha estudou até o segundo ano primário e, como todo mundo no lugar, foi trabalhar na fábrica. Carregava carrinhos de pano enquanto sua namorada, Nair, já era qualificada como tecelã. Ela lhe dava cigarros, frutas, amendoim. Ele deu o troco que podia dar e os dois se casaram em 1953 (ele com dezenove, ela com dezesseis anos) já com a primeira filha encomendada. Além de Teresa, hoje com dezoito anos, viriam outras sete - para encher a casa de três quartos, sala, cozinha e banheiro, presente da fábrica quando Garrincha ganhou a primeira Copa.

Teresa já trabalha como fiandeira, mas está de licença desde que perdeu no trabalho o dedo anular direito, há dois anos, e sofreu um trauma nervoso. Garrincha está muito presente na casa de dona Nair, agora com 36 anos, quadris largos, cabelos curtos e esticados, fala fluente de quem já se acostumou a responder perguntas, acendeu velas no dia da volta do ex-marido contra o Flamengo. "Manuel", diz ela, "era um primor de marido, uma beleza de casa, eu tinha até empregada."

Depois, porém, "viraram a cabeça dele" e desde então sua vida entrou em compasso de espera. Diz que Garrincha lhe deve 20 mil cruzeiros de pensões, que não teria pago desde que ele foi para a Europa; tem esperança de recebê-los agora, descontados dos salários de Garrincha no Olaria, 1.000 cruzeiros por mês. Sustenta-se e às filhas com o auxílio-doença de Teresa, 250 cruzeiros de pensão do governo da Guanabara (votada no governo Negrão de Lima) e 200 que o Botafogo dá, numa regularidade duvidosa, como homenagem à família do maior jogador que teve em toda a sua história.

SACO SEM FUNDO – Nem sempre a vida foi tão dura para dona Nair e suas filhas. Garrincha, como tantos personagens famosos e folclóricos, literalmente nadava em dinheiro em 1958, quando veio da Suécia campeão do mundo. Bebeu para valer (cachaça e batida de limão) em Pau Grande, jogou pelada com Suingue e Pincel e entrou no armazém de seu Joaquim com uma sacola de dinheiro, pagando em dólar todas as contas em atraso dos moradores de Pau Grande. Mais tarde, ao procurar um banco, levava a mala de lona que ganhara da companhia aérea e de dentro dela tirou pacotes de dinheiro amarrados com barbante e notas remendadas com esparadrapo.

Havia cheques de mais de um ano idade e Garrincha contou que foram encontrados entre os brinquedos de suas filhas. Era um louco, deliciosamente irresponsável. Quando perdeu a forma passou a ser apenas irresponsável. As histórias sobre o que Garrincha deixou que lhe roubassem formam o saco sem fundo de sua infeliz vida financeira. Não parecia preocupar-se com isso, na época. Tinha amigos, contava com eles. Em 1959, por exemplo, o Botafogo não queria pagar-lhe 80.000 cruzeiros velhos por mês porque um dos diretores do time, engenheiro, dizia que nem ele ganhava tanto, embora também não fosse um Garrincha na sua profissão. O Botafogo pagou 78.000 cruzeiros. Os dois restantes saíram dos bolsos do técnico Saldanha e de Renato Estelita, responsável pela política de profissionalismo que manteve no clube jogadores como Garrincha, Nílton Santos, Didi e Amarildo.

Nas vésperas da Copa de 1962, dirigentes do Botafogo apressaram a renovação de seu contrato, antes que ele se valorizasse. Deram a Garrincha 120.000 cruzeiros velhos de ordenados, 3 milhões em luvas e um terreno sem valor em Saquarema. Radiante, ele chegou a agradecer ao clube pelo grande negócio.
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2 comentários:

Milene Lima disse...

Merecidíssima homenagem, Ruy.
Garrincha é o tipo do sujeito que eu adoraria ter conhecido, ouvir suas histórias, enfim, meio que pegar no colo...rsrs.
Ah, quanto a ver jogar, seria fantástico. Felizardos os que tiveram essa honra.

Mais beijos rosados.

Ruy Moura disse...

Eu vi-o jogar, Pétala Rosadinha. Vi toda aquela turma desde 1961-62, embora eu fosse pequeno. M;as colva o radinho de pilhas ao ouviso e mais tarde o meu pai levava-me ao Maracanã. Ele era Vasco. Só não vi jogar o Paulinho Valentim, e confesso que dos jogos que não vi do Botafogo, o meu escolhido é o da final de 1957 com os 5 gols do Valentim Tlim-Tlim-Tlim!

Beijos muito grandes!

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