quarta-feira, 2 de junho de 2010

A vida torta de Mané Garrincha (III)

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Revista Veja
8 de março de 1972


[Título alternativo proposto pelo editor do blogue: “A criança doce que falava com os passarinhos”]

"GENTE BOA" – Em 1972, porém, já não há grandes negócios para Garrincha. Ele parece não entender: "Hoje em dia é assim, o sujeito só pensa em ganhar dinheiro. Até esses meninos que estão começando já têm um pai para orientar, imagine". Seu nome não perdeu a magia. Mas ele recusa qualquer outro tipo de negócio - restaurante, posto de gasolina, qualquer coisa - porque "não tenho pensamento nem queda para isso". Parece encurralado entre o campo do Olaria, onde treina de manhã, e o grande apartamento alugado mobilado (espelhos, candelabros, móveis velhos) em Copacabana, diante da praia, por 5.000 cruzeiros mensais. De lá só sai praticamente para ir ao clube (não gosta de praia) e de tarde e de noite vê tudo na televisão, "menos anúncio".

O apartamento, que ele detesta, é a herança de seu último desastre financeiro: a perda de 200.000 cruzeiros, metade do preço de uma casa que estava comprando com Elza e que foram perdidos pela falta de pagamento do restante, na época em que viajaram para a Itália.

De resto, nem gosta mais de beber, como antigamente: "Para que? Já bebi tudo que podia, só não bebi veneno". Reclama que quase não é visitado. Quando aparece alguém, o sorriso e a alegria de Garrincha abrem-se em abraços e tapinhas nas costas: "Oi, gente boa, gente boa..."

"Gente boa", do melhor ao péssimo, foi tudo o que Garrincha viu na vida, dentro e fora do campo. "Gente boa" já eram os times que no começo da década de 50 nem queriam vê-lo treinar. "Gente boa" também deviam ser as moças do basquete do Vasco da Gama que riam muito da sua pobreza, com aquelas camisas de algodão barato. "Gente boa", enfim, foram todos que o ajudaram, bajularam e exploraram, e todos os que hoje em dia sumiram da sua casa. "Os meus amigos de futebol têm a sua vida, são livres, sabe como é, né?", diz o craque, sem pronunciar jamais uma frase de condenação a quem quer que seja. Ao Botafogo, por exemplo, de onde saiu depois de treze anos, ele gostaria de voltar, "porque o pessoal daquele tempo já morreu todo". Quando vivo, em 1966, o "pessoal todo" vendeu Garrincha ao Corinthians sem sequer se dar ao trabalho de avisá-lo.

Foi o começo de uma peregrinação que ainda não terminou. Saiu do Corinthians no mesmo ano, esteve na humilde Portuguesa do Rio, excursionou na Bolívia. Jogou no Bangu, andou pelos campos do interior e em Goiás seu nome era o chamariz, junto com o do craque local Goiano. Treinou no Fluminense e no Vasco. Em 1968, na Colômbia, fez um jogo ruim pelo Deportivo Barraquilla (deveria ganhar 600 dólares por partida), levou uma vaia e voltou sem jogar uma segunda vez. Não teve sorte nos treinos do Nacional, em Montevidéu, nem nos do Boca Juniors, de Buenos Aires. Tentou, sem sucesso, jogar no Flamengo.

Em abril de 1969, finalmente, a andança sem frutos sofreu uma interrupção brutal quando seu carro bateu num caminhão na rodovia Presidente Dutra e sua sogra, Rosália Maria Gomes, morreu. Foi condenado a dois anos de prisão, com direito a "sursis", por homicídio culposo, e absolvido em 1971. Elza conta que a morte de sua mãe foi a pior fase na vida de Garrincha. O Brasil, na época, parecia definitivamente fechado para ele.

ESTRANGEIRO – Mané Garrincha, o "passarinho" desligado, o homem bom e sem ressentimentos, devia mesmo estar sendo vítima do destino. Ele se lembrou de que fora do Brasil deveria haver muito mais "gente boa". Em 1963, por exemplo, os dois times mais famosos da Itália, ambos de Milão, a Internazionale e o Milan, disputavam o ponta-direita brasileiro já considerado legendário. Chegaram a oferecer meio bilhão de liras (montante inédito até então na Itália) pelo seu passe, mas o Botafogo queria muito mais e os entendimentos foram suspensos. Em princípios de 1970, lembrado disso e da carreira feliz de brasileiros como Angelo Sormani, campeão italiano, Amarildo e Mazola, entre outros, Garrincha foi viver na Itália. Era um ídolo, mas infelizmente chegara tarde demais: os times estavam proibidos de comprar jogadores estrangeiros desde 1965, a menos que fossem descendentes de italianos.

Manuel Francisco dos Santos conformou-se em ser companheiro de Elza Soares, que ganhava bem como cantora, e a fazer propaganda de café para o IBC, por 1.000 dólares mensais. Alguns o reconheciam como vendedor de café e se entristeciam, outros pensavam que ele era um vendedor qualquer e tratavam-no com grosseria. O Brindis, um time de terceira classe, tentou contratá-lo como consultor técnico, mas de novo a sua origem impediu a transação. Para piorar tudo recebia telefonemas anônimos e ameaçadores, em italiano, acusando-o de ter "traído o Brasil" e que ele, Elza e seus filhos seriam castigados. A polícia nada conseguiu apurar. Mudaram-se para Tor Vajanica, um balneário, e a vida continuou correndo devagar, com as raras alegrias de algum jogo beneficente entre velhos jogadores famosos, como o que fez em Milão no ano passado, ou então entre times improvisados com jogadores que vinham de todos os cantos do mundo.

2 comentários:

Milene Lima disse...

Ai, quanta injustiça! Me deu um aperto lendo tudo isso. Claro que eu já tinha conhecimento que a vida dele havia sido assim, cheia de turbulências, mas ler assim nos detalhes me deixou triste.
Dá...sei lá...uma vontade de pedir desculpas a ele, por tudo, pela vida, por terminado aqui sua passagem desse jeito.

Beijo, Ruy.

Ruy Moura disse...

A ignorância e a genialidade andaram para a par na vida de Garrincha. Na etiquetita 'memorial Garrrincha' é muito evidente as coisas desastrosas e as coisas maravilhosas de uma vida sempre vivida com intensidade.

Que importa uma vida longa de molenguice? O que é fundamental é a intensidade com que se vive.

Beijos Gloriosos!

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