sábado, 28 de agosto de 2010

Botafogo ao mar

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por Roberto Porto
http://www.riototal.com.br/coojornal/memoria-esporte006.htm


Hoje em dia, após aplicado exercício de reflexão, este repórter passou a ter a mais completa e absoluta das certezas de que Miguel de Cervantes (1547-1616) e William Shakespeare (1564-1616) foram cidadãos dotados de poderes premonitórios. Por que, haverão de perguntar os leitores? Pois bem: é de Cervantes a frase "Não creio em bruxarias, mas que elas existem, existem". E é de Shakespeare, por sua vez, a sentença "Há mais coisas entre o céu e a terra do que possa supor a nossa vã filosofia". Em poucas e resumidas palavras, o espanhol e o inglês, com séculos de antecedência, previram o surgimento no Brasil do clube da estrela solitária e da máxima que o acompanha; "Há coisas que só acontecem ao Botafogo", de autoria desconhecida, pelo menos até o momento.

Em 1955, após vitoriosa excursão à Europa, a delegação do Botafogo voltou ao Brasil de navio, após os jogadores terem visitado o local onde o avião do Torino chocara-se com uma montanha, matando toda a delegação que retomava de um jogo pela Copa da Europa em Lisboa. Tomados de pavor, os jogadores pediram ao chefe da delegação, o jornalista Sandro Moreyra (1919-1987), que permitisse a substituição do Constellation da Panair do Brasil pelo transatlântico Conte Grande. Sandro percebeu que, caso não concordasse, os jogadores não embarcariam. Ocorrida há 52 anos, esta é a história do dia em que o Botafogo fez-se ao mar, não para honrar o nome regatas que carrega em sua identidade. Mas por um profundo medo de avião.

Só ao Botafogo acontecem certas coisas...

Sandro Moreyra, um chefe de delegação muito amigo

O Campeonato Carioca de 1954 só foi terminar em fevereiro de 1955 e o Botafogo ficara mal colocado. E logo após a recontratação de Zezé Moreira, para dar um jeito no departamento de futebol, o clube tinha pela frente um sério compromisso: uma exaustiva excursão à Europa, acertada pelo empresário José da Gama, com nada menos de 18 jogos a cumprir em curto espaço de tempo. É óbvio que o treinador pouco ou nada pôde fazer. Formou um grupo, convocou alguns reservas imediatos e tomou o rumo do Velho Mundo. A base da equipe era a do ano anterior, ou seja, Gilson (Lugano), Orlando Maia, Gérson dos Santos (Thomé) e Nilton Santos; Pampolini (Danilo) e Juvenal; Garrincha (Neivaldo), Ituarinho [*], Vinícius, Dino e Hélio (Quarentinha).

A chefia da delegação, estrategicamente, foi entregue ao jornalista e benemérito do clube Sandro Moreyra. Por que estrategicamente? Porque Sandro, além de cobrir o clube diariamente para o Diário da Noite, tinha comprovada ascendência sobre os jogadores. E a diretoria do Botafogo estava cansada de saber que não bastariam Zezé Moreira e Paulo Amaral, que fariam o papel dos durões, para controlar um grupo tão heterogêneo por quase três meses de perambulação européia. Sandro sabia lidar com os jogadores e tinha especial relação com dois dos maiores astros daquele time: Nilton Santos e Garrincha. Na verdade, porém, todos eram seus amigos e o respeitavam. Ele era uma espécie de homem da alta sociedade metido no curioso mundo do futebol.

Na delegação que viajou às pressas para a Espanha, com estréia marcada contra o poderoso Real Madrid, no Estádio Santiago Bernabeu, viajavam três jogadores com extraordinária vocação de artilheiros: Dino da Costa, goleador do Campeonato Carioca de 1954 com 24 gols, apesar das más atuações do Botafogo; Luiz Vinícius de Menezes, que viera fugido de Minas Gerais e se escondera em General Severiano até sua situação ser regularizada; e nada menos do que Valdir Cardoso Lebrêgo, o Quarentinha, até hoje o maior artilheiro da história do clube. Estava para começar ali, dia 20 de maio de 1955, em Madri, uma das mais gloriosas façanhas do Botafogo, infelizmente hoje relegada ao limbo do esquecimento.

Time quase chega atrasado à primeira partida em Madri

O avião que conduziu a delegação do Botafogo até a Europa, um pesado e resfolegante Constellation da Panair do Brasil, chegou ao Aeroporto de Barajas, em Madrid, com horas de atraso. A rigor, pode-se dizer que o Real Madrid já estava em campo enquanto os jogadores do Botafogo tiravam o paletó e a gravata do terno de viagem e colocavam às pressas o uniforme. O torcedor madrileno já começara uma sonora vaia, reclamando do atraso, quando o Botafogo, com Lugano (goleiro reserva) e Dino da Costa à frente, entrou em campo carregando a bandeira espanhola. Foi um sucesso. Vieram os aplausos, que se transformariam em espanto ao final da partida, quando os brasileiros, mais mortos do que vivos, arrancaram um inesperado empate de 2 a 2.

Ao longo das 18 partidas, o Botafogo jogou na Espanha, França, Dinamarca, Holanda, Suíça, Itália e Tchecoslováquia. Mas não havia lógica no roteiro, ou seja, o time atuava na Espanha, viajava para a França, regressava novamente para cumprir um compromisso na mesma Espanha e assim por diante. Foram ao todo 12 vitórias, quatro empates e apenas duas derrotas, uma para o Tenerife (2 a 1), na costa da África, e outra para o Racing de Paris (4 a 2). Lá pelas tantas, perdido em viagens de trem, ônibus e aviões, sem a mínima idéia de idiomas, países e atormentado com a diferença do fuso horário, o ponteiro-esquerdo Hélio - que tinha o apelido de Boca de Sandália - perdeu a noção de tempo e espaço. Já não sabia quando havia deixado o Brasil.

A história, obviamente, foi contada a este repórter pelo brilhante Sandro e, como tal, vou passá-la na íntegra aos leitores. Um certo dia, cabisbaixo, Hélio aproximou-se de Sandro e perguntou: "Chefe, há quanto tempo estamos viajando?" Sandro foi curto na resposta: "Dois anos, Hélio". Simplório ao extremo, o jogador se queixou: "Olha, seu Sandro: a essa altura minha mulher e meus filhos, lá em Olaria, devem estar pensando que eu morri". De imediato, o chefe da delegação alvinegra encontrou a solução: "Escreve uma carta para a família, rapaz...". Foi então que Hélio apresentou um problema insolúvel: "O caso, seu Sandro, é que nós estamos viajando há tanto tempo que esqueci o endereço de casa..."

Um passeio turístico dos mais sinistros em Superga

O mais grave, porém, estava para ocorrer. Na manhã seguinte à brilhante vitória do Botafogo por 4 a 0 sobre o combinado Juventus-Torino, em Turim, um guia turístico teve a infeliz idéia de levar a delegação brasileira à Basílica de Superga, numa elevação nas proximidades da cidade. Lá, em 1949, o avião do Torino espatifara-se na montanha, depois de bater de raspão com a asa na torre da basílica. Não houve sobreviventes no acidente que entrou para a história do futebol como a Tragédia de Superga. No ano seguinte, 1950, a delegação da Azzurra que participou da Copa do Mundo no Brasil exigiu viajar de navio. Em 1955, permaneciam na lembrança de todos os italianos – povo sentimental – os queridos jogadores do Torino.

Durante a visita à Superga, ocorreu uma surpresa desagradabilíssima: em torno da basílica, com a torre já reconstruída, ambulantes vendiam, como recordação turística aos visitantes, pedaços do avião que conduzira o Torino à morte. Aqui era um pneu, ali um enegrecido de uma poltrona, mais adiante parte da fuselagem (previamente dividida em dezenas de pedaços), fotos dos cadáveres carbonizados dos jogadores, objetos pessoais encontrados nos destroços, enfim, um sinistro e lúgubre comércio, digno de um dos filmes de terror do escritor americano Stephen King. O resultado? Pânico nas hostes alvinegras. Os jogadores, ainda com compromissos a cumprir na Tchecoslováquia, tremiam de pavor com a aproximação da viagem aérea de volta.

De volta ao hotel, depois do jantar, uma comissão formada por Nílton Santos, Danilo (ex-Vasco), Thomé, Pampoline e Neivaldo, os mais bem informados do grupo, procurou Sandro Moreyra. Não houve um xeque-mate, porque o chefe da delegação, embora afável, não toleraria insubmissão. Mas os jogadores queriam fazer um apelo: voltar ao Brasil de navio. Com mais quatro partidas para cumprir na Tchecoslováquia, Sandro cedeu. O Botafogo viajaria a bordo de um transatlântico que partiria de Bolonha. Os jogadores vibraram e, nos jogos restantes, o time venceu três e empatou o último, em Ostrawa, diante do Banik. E Sandro Moreyra teve que honrar a palavra empenhada. O Botafogo retornaria da Europa singrando, por duas semanas, o Oceano Atlântico.

A Coca-Cola de Garrincha virou Cuba-Libre no navio

O sucesso do Botafogo em gramados europeus foi de tal ordem que o clube faria ainda mais duas longas excursões ao Velho Mundo: 1956 (22 jogos) e 1959 (15 partidas). Daí em diante, ano a ano, abriu-se para o clube o mercado latino-americano, até porque multiplicaram-se as competições européias, desaparecendo as datas livres. Mas a série de vitórias de 1955 traria um grave problema ao alvinegro. Carecido de recursos, o Botafogo vendeu os passes de Dino da Costa (Roma) e Vinícius (Nápoles) para o futebol italiano. Até o amadurecimento de Quarentinha e o surgimento de Paulo Valentim, os torcedores alvinegros sofreram com atacantes como Casnock, Arlindo Baiaco, Gato e muitos outros dos quais nem mesmo fotografias restaram nos arquivos.

Conta o folclore - e às vezes a versão é mais deliciosa do que o fato em si - que a viagem a bordo do Conte Grande foi uma maravilha. A bordo de um navio de luxo, alojados em confortáveis camarotes, os jogadores conviveram 14 longos dias com milionários excêntricos, belas turistas estrangeiras, louras descompromissadas e desfrutáveis, e muitos drinques finos. Garrincha, por exemplo, estava sempre com uma garrafa de Coca-Cola nas mãos, sorvendo alegremente seu refrigerante. Só que, após subornar o garçom, a Coca-Cola misturada ao rum se transformava numa saborosa "Cuba-Libre", a bebida da moda. Exercícios? Sim, Paulo Amaral diariamente comandava uma sessão ao lado da piscina, sob o atento olhar do técnico Zezé Moreira, que não queria craques gordos.

Mas a verdade é que sem Dino e Vinícius, com Quarentinha emprestado ao Bonsucesso, o Botafogo cumpriu uma campanha desastrosa no Campeonato Carioca de 1955, no qual o Flamengo obteve o primeiro tri da história do Maracanã. No ataque, Garrincha era o que se podia classificar de uma estrela solitária. E o resultado é que nem mesmo para o terceiro turno o alvinegro se classificou, superado pelo modesto Bonsucesso. Só no ano seguinte, 1956, sob inspiração de João Saldanha, o Botafogo começou a se recuperar, contratando Didi, o argentino Alarcón e o paraguaio Cañete, além de escalar Paulo Valentim no comando do ataque. Mas o tão desejado primeiro título na Era Maracanã só viria em 1957, sob o comando do próprio João Saldanha.
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[*] Segundo o pesquisador Pedro Varanda nos informou, na escalação deverá ler-se 'Ruarinho' e não Ituarinho.

3 comentários:

Anónimo disse...

Oi, boa tarde.

Na escalação postada no blog, por gentileza, substitua Ituarinho por Ruarinho, ok?

Gilson (Lugano), Orlando Maia, Gérson dos Santos (Thomé) e Nilton Santos; Pampolini (Danilo) e Juvenal; Garrincha (Neivaldo), Ruarinho, Vinícius, Dino e Hélio (Quarentinha).

Detalhe: Ruarinho as vezes jogava na frente, de meia-direita, ok?

Saudações Alvinegras,
Pedro Varanda

Anónimo disse...

Oi

Sábado, 28 de Agosto de 2010

Botafogo ao mar

Substitua, por gentileza, Ituarinho por Ruarinho.

Saudações Alvinegras

Ruy Moura disse...

Amigo Pedro, como o texto é citação não posso alterá-lo, mas fiz uma chamada de pé de página com a sua observação. Obrigado.

Abraços Gloriosos!

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