sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A freira que era má

por LÚCIA SENNA, escritora e cantora
escrito para o blogue Mundo Botafogo

Nunca tive habilidade nem paciência para trabalhos ditos artesanais. Tomei consciência desse fato bem menina, quando cursava a segunda série primária no tradicional colégio de freiras Santa Rosa de Lima.

Uma vez por semana tínhamos aula de bordado com a Irmã Regina. Nesse dia, além da lancheira e da pesada pasta repleta de cadernos e livros, a cestinha de bordados não podia ser esquecida. Dentro dela havia um tipo de pano próprio para bordar, linhas das mais variadas cores, dedal e agulha grande e grossa, especial para a confecção de pontos de cruz.

Cruz credo! O meu paninho parecia mais um pano de chão, todo amarfanhado e amassado. Os pontos – que deveriam ser pequenos e delicados – feitos com zelo e capricho, eram simplesmente um lixo. Na minha impaciência e na ânsia de dar aquele trabalho por terminado, fazia uns verdadeiros garranchos tortos e mal acabados.

Como mostrar aquele trapo para a Irmã Regina? Eu ficava gelada só de pensar, meu coração descompassava de aflição.  E, assim, lá ia eu para o encontro fatídico: mãos frias e suadas, um passo pra frente, dois pra trás.

Irmã Regina, de pequena estatura, tinha a pele do rosto áspera e avermelhada. O olhar exprimia sentimentos de reprovação. Sobrancelhas grossas e negras. Boca não tinha e, de tão finos, seus lábios, há muito haviam desaparecido, talvez levados pela acidez da própria língua. O véu preto e apertado na testa contribuía ainda mais para o rigor da postura.

Irmã Regina era capaz de disparar um raio de luz negro em direção aos seus alvos. E o alvo, agora, era eu. A sensação, acreditem, era a pior possível. Já sentia o peso de seus passos. O som cortante da sua metálica voz queimava-me os tímpanos.

Sem voz, hesitante e trêmula, abro a cestinha de bordados e entrego para a megera indomável o resultado da minha inabilidade. Visivelmente mal-humorada, lança-me um olhar fulminante, seguido de uma estrondosa gargalhada. Mostra, com indisfarçável prazer, o meu trabalho para a turma. Exposta ao ridículo, choro.

Com voz de aço decreta o castigo: uma semana inteira sem recreio e, pior, refazendo o bordado.
Não há como negar: Irmã Regina, coitada, sem noção e sem tino, cultivava métodos arcaicos de ensino.

Hoje, no entanto, vejo-a com bons olhos. O trauma, vivido ainda na infância, certamente me deixou marcas. Não suporto trabalhos manuais. Até mesmo para fazer uma bainha ou pregar botão, preciso de um bom manual de instrução. Crochê ou tricô? Ah, não brinque comigo, faça-me o favor! Cerâmica? Colares de conta? Não, não contem comigo. E os famigerados bordados com ponto de cruz? Cruz credo! E o ponto treliça? Nem rezando missa. E o ponto atrás? E o ponto xadrez? Ficaram pra trás, na companhia da minha inaptidão.

Irmã Regina, querida, a ti, minha eterna gratidão. Se tivesses agido com doçura, quem sabe teria eu deixado me envolver pelas linhas e lãs, tesouras e tecidos. Quem sabe, estaria eu, nesse momento, sentada em uma confortável cadeira de balanço, ao lado de uma cesta repleta de novelos de lã, agulhas de tricô, a bordar e bordar e bordar... Levando vida sedentária, certamente estaria gordota, com as ancas avantajadas, pernas inchadas e parecendo ter bem mais idade.

Minha vida, irmã, graças a Deus, tomou outro rumo. Sem querer, me deste o empurrão inicial. Acabo por te transformar no personagem principal da minha mais recente crônica.

14 comentários:

Anónimo disse...

Linhas, tece-as bem, quando se trata da vida!
Única meta que traçaste pra ti abrindo
Caminhos com bastante destemor e afoiteza,
Indo ao improvável de maneira desabrida,
Ao meu ver, comportamento exemplar, muito lindo...

Movida por tua amazônica beleza,
Afrontaste com coragem adversidades,
Rumo meio torto como os do ponto cruz...
Indo de soslaio à beira das vaidades,
As amenizas com soltos risos, se deduz!

Sérgio Sampaio,
www.umpoetinha.com.br

Anónimo disse...

Cara amiga, que bom que não me presenteias com paninhos bordados, mas com crônicas deliciosas. Isso mesmo: agradeça à irmã Regina a consciência de tua inabilidade manual. Só assim podemos desfrutar das tuas crônicas leves e lúcidas a amenizar nossos dias. Maria Inês-jornalista e escritora.

Lúcia Costa disse...

O texto leve de Lúcia Costa nos remete ao imaginário lúdico da sua infância, fazendo-nos lembrar em contrapartida da nossa própria,o que de tempos em tempos é essencial e revigora a alma!
Marcos Leite.

Anónimo disse...

Fico penalizada com as criancinhas que não recebem incentivos, motivações, amor pelas suas criações, não importa se estão horríveis ou não, elas têm que ser valorizadas. Não tive experiências com freiras, mas algumas amigas amargaram com as freiras. É muito bom a leitura desta crônica. A escritora é bem explícita, interessante, bem humorada, toca sempre no âmago das coisas. Parabéns, Lucia! Maravilha! Sonia Costa

Anónimo disse...

Consigo imaginar sua cara ao ver a Freirinha, e digo mais, por como você escreve até consigo sentir medo dela, rsrs.

Nao da pra ser incrível em tudo.

Ainda bem que nao costura e tem tempo para escrever, cantar e nos cuidar. Agradecemos a irmã Regina, a sua inabilidade pra bordar e costurar, agradecemos a você por ser assim.. tao você. Adoramos cada vírgula de você.

Beijos da Bruxinha.

Gaby.-

Anónimo disse...

Mais uma crônica deliciosa. Você, Lúcia, deve ser uma pessoa incrível, pois tenho lido sempre os seus textos e concluo que você está sempre apostando no lado positivo da vida.
É aquela velha história : fazendo dos amargos limões, doces limonadas.
O mundo precisa de mais Lúcias.
Grande abraço.

Lúcia Costa disse...

Também tive problemas com freiras quando criança, por isso me identifiquei tanto com essa crônica. Gostei muito, parabéns!!!! Beijos, Graça

Lúcia Costa disse...

Amiga,

Jamais daria pra ti paninhos bordados, ainda que eu tivesse habilidade para tanto.
Continuarei te presenteando com livros e algumas eventuais crônicas. Existirá presente melhor para uma jornalista e escritora?
Bjs.

Lúcia Costa disse...

Fazer dos limões, doces limonadas... Realmente é uma forma bastante interessante de levar a vida. Procuro agir assim na maioria das situações.
Tem muita gente que prefere " curtir" os amargos limões. Questão de opção, não é mesmo?
Obrigada pela participação.
Grande abraço.

Lúcia Costa disse...

Graça querida,

´Tomara que- como eu- tenhas conseguido te livrar de um possível trauma. Infelizmente o mundo está cheio de pessoas negativas, sejam elas freiras ou não. A saída é nos fortalecermos espiritualmente para não ficarmos à mercê de tanta negatividade.
Obrigada pelo comentário.
Bjs.

Lúcia Costa disse...

Oi, Marcos

Relembrar a infância é sempre delicioso. Lá, certamente, estão as nossas mais singelas recordações. De vez em quando aparecem também algumas figuras desagradáveis, mas faz parte do maravilhoso pacote chamado VIDA.
Gostei muito do teu comentário.
Bjs.

Só mais uma coisinha : Lúcia Costa é a cantora. A cronista é Lúcia Senna ( kkkkk)

Lúcia Costa disse...

Oi, Sonia

Quero te agradecer os elogiosos comentários. Bom te encontrar sempre aqui no blogue e ler tuas opiniões , sempre tão interessantes , sobre as minhas crônicas.
Beijos, querida

Lúcia Costa disse...

Gaby, minha querida

" Gracias a la vida que me ha dado tanto". A vida é muito generosa comigo! Ter uma nora igual a ti, é dádiva divina. Matheus- que maravilha- foi te buscar lá em Bariloche e te trouxe para o nosso convívio.
Obrigada, bruxinha, te amo.

Lúcia Costa disse...

Sérgio,

Fico encantada com teus versos! A cada crônica publicada, um presente em forma de acróstico! Acertas quando dizes que " com coragem, afrontaste adversidades ". És bom de acróstico e de diagnóstico . Sinto-me verdadeiramente lisonjeada.
Aproveito a oportunidade para te parabenizar por todos os Acrósticos publicados aqui no blogue, não só sobre os grandes jogadores do Botafogo, mas também de muitas outras personalidades relevantes, como, por exemplo, do nosso querido Ruy Moura.
Obrigada e um grande abraço,

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