quinta-feira, 28 de março de 2019

Didi para Garrincha

por ELTON FLAUBERT
In O Campanário

Anos atrás, quando assisti pela primeira vez a vitória brasileira sobre a Suécia na final da Copa de 58, lembro que minha atenção foi totalmente dominada por Garrincha. Isso me veio novamente à mente quando procurava alguns vídeos históricos no Youtube e encontrei uma entrevista dele falando sobre o estado do futebol brasileiro na época: muito passe, pouco ímpeto.

Antes de 58, o Brasil era uma força menor no continente. Argentina e Uruguai eram os grandes vencedores da Copa América, a maior rivalidade continental, e para piorar tínhamos perdido uma copa em casa de maneira dramática. Nélson Rodrigues, que transformava o sentimento em palavras como raros escritores, tinha dito que a nossa derrota em 50 criou um “complexo de vira-lata” tal tinha sido o trauma de perder a glória que se encontrava em nossas mãos. Já o “fiasco” (derrota para uma das maiores seleções da história, a Hungria de Puskas) em 54 foi associado ao racismo, pois nossos jogadores negros não seriam psicologicamente aptos para aguentar momentos decisivos. A vitória de 58 foi muito mais do que o primeiro título, mas o próprio momento iluminador do que havia de melhor no povo brasileiro se expressando nessa arte épica chamada futebol.

Depois que a Suécia abriu o marcador da final jogando em casa, foi Garrincha – um “Mané” – que nos colocou de volta na partida. Quase que sistematicamente, Didi pegava a bola no meio e lançava na direita para Garrincha. Driblando para direita, para esquerda, mudando a direção do corpo, desvendando intuitivamente o comportamento dos adversários, Mané fez miséria com os suecos. O gol de empate veio numa jogada sua pela direita, em que driblou dois suecos e cruzou para Vavá escorar. O gol da virada foi quase uma repetição do primeiro. As portas estavam abertas para o título tão esperado.

Quis o destino que a grandeza do nosso futebol começasse a ser celebrada pelas pernas tortas de Garrincha. Mané era o antídoto da objetividade por definição. Futebol, para ele, não era excelência. Não era objetivamente fazer gols, ter o melhor desempenho possível, driblar em direção às traves, ser campeão independentemente de qualquer coisa. Garrincha é o anti-Messi, o anti-Cristiano Ronaldo. Messi e Cristiano querem gols, títulos, prêmios, vão ao limite por isso, tudo é perfeitamente calculado em prol de um objetivo. Ninguém jamais viu Messi dando um drible que não fosse objetivamente pelo gol. Ninguém jamais viu Cristiano Ronaldo se divertindo num campo de futebol. Não há sobra, não há resto. Tudo é útil e necessário. Ao contrário, o gol era parte integrante do grande mistério do futebol para esse Mané que celebrava no jogo a espontaneidade da criança. O seu drible era poesia que funcionava como ode e agradecimento ao que o futebol lhe dera. Ele estava ali para alegrar a plateia. Reza a lenda que, em 1956, o técnico do Botafogo, Zezé Moreira, irritado com os seus dribles em excesso colocou uma cadeira no gol e lhe pediu para acertá-la logo depois de um drible perto da área. Garrincha saiu driblando todo mundo, chegou na cadeira e começou a driblar todos de novo em direção contrária. Ele não fazia isso porque só sabia driblar, pois concluía e cruzava muito bem, era dono de técnica refinada, não só de habilidade. Queria o gol, mas antes uma infinitude de coisas.

Garrincha era uma ingovernável força da natureza. Era o maior exemplo da inteligência intuitiva que define o nosso futebol. Ele não era só um nato driblador, o maior de todos, mas possuía o dom da antevisão. Se Pelé antevia a jogada, Garrincha antevia outra coisa. Ele antevia o corpo, os gestos, os comportamentos, as reações dos adversários. Sempre a frente, Mané sabia exatamente para onde ia o seu marcador. Intuitivamente, Garrincha era um mestre do comportamento humano. Mané era um traquina.

Igualmente, ele tinha o poder de hipnotizar a plateia com a genuinidade do seu talento. Mesmo hoje, assisti-lo é sentir o tempo e a respiração pararem na expectativa do que vai acontecer, da beleza rara que pode brotar dos seus movimentos. Mané era autor de uma arte que não foi feita para ser eterna no sentido do jogo coletivo da Hungria de 54 ou da Holanda de 74, mas para causar uma sensação específica e rara de alegria. Uma alegria fulgurante, que vem rápida e fulminante, lembrando-nos por uma centelha do bem da existência, e de como somos pequenos diante disso. Alegria que dissipava nossas manias rapidamente e sumia. Como sua arte, a vida também foi passageira para o Mané que foi abatido pelo álcool e pelos julgamentos por seu relacionamento com Elza Soares.

Esse “anjo torto” que dava alegria era também um símbolo compacto do povo brasileiro e do que diante de tantas mazelas tornou-se bonito pela generosidade do futebol. Na falta de ordem, na ausência de qualquer senso de unidade, no meio daquele tipo de sincretismo que perverte todas as coisas com sua irreverência maligna, também havia algo de bonito nesse povo, pronto para ser coroado na épica do futebol.

Os dribles de Garrincha não eram uma espécie de malandragem característica do povo brasileiro, mas aquele tipo de desvio benéfico que consegue subverter a ordem das coisas terrenas em prol de algo maior, mais belo, mais grandioso, mais justo. As linhas tortas de Deus. Mesmo a mais virtuosa das ordens dirigida pelo mais virtuoso dos homens, cria um tipo de limitação que, ao mesmo tempo, funda sua transgressão. Necessária e violenta, a ordem dos homens não pode dissipar as tensões inerentes aos humanos vivendo nesse mundo daqui, num entremeio entre ser e não-ser. A beleza desse drible transgressor não é a virtude da ordem, com senso da unidade e do eterno, como o sincrônico carrossel holandês de 74, mas a virtude da superação em nome do que é maior do que nós. O drible de Garrincha era a transgressão de um burocrata na Alemanha de Hitler que camufla algo para ajudar um judeu. É o desvio do que tudo indicava. É o drible que desnorteia a regência dos eventos, quebra a linearidade do transcorrer das coisas.

Se há algo de bom no característico do povo brasileiro é esse ato cambiante que circula por algo maior sem quebrar a unidade. O lado perverso dessa característica é sua utilização pelo arrivismo, pela ganância, pela irreverência maligna. Essa transgressão camuflada pode ser tanto um remédio como um veneno para alma. Veneno do culto ao mal que Garrincha soube superar ao fazer do seu talento aquilo para que ele foi feito. Ele podia ter optado pelo formalismo burguês, pelo gol direto e reto, pela utilidade. Não seria Garrincha e teria sido o malandro arrivista que conhecemos tão bem. Para esse Mané, como para o bom do povo brasileiro, tudo está bem quando parece dar errado para dar certo, pois qual a probabilidade das coisas se tornarem tão gloriosas sem a mais irrestrita objetividade, sem o foco dos construtores?

Todavia, a beleza anárquica de Garrincha não seria nada sem o seu companheiro de seleção e Botafogo: Didi. Ele era o complemento que guiava a astúcia de Garrincha para a transgressão virtuosa. Didi sempre teve uma aparência sóbria, madura, precisa. O esguio meia jogava com uma elegância natural. Com ele, não havia excessos. O seu futebol não era conclusivo, mas uma oferta despretensiosa para os exageros intuitivos dos atacantes, sedentos por gols. No caso de Garrincha, sedento pela traquinagem.

Didi desfilava em campo, distribuía passes precisos e lançamentos decisivos. Quando a bola chegava aos seus pés, o tempo parava – não pela expectativa – mas porque ele se tornava o seu dono, ditando o ritmo da história a ser contada no campo. Seu olhar trazia certa melancolia característica do brasileiro, mas que não se escondia no riso. Era mais aquele reconhecimento confuso das tribulações da vida, da sua incompletude, das tensões naturais. A percepção dos dramas humanos que abundavam no seu entorno com uma consciência madura de quem destemia o fracasso.

Só um homem com tal magnitude e disposto a oferecer – tanto como jogador, quanto como técnico – poderia ditar o ritmo da história em campo sem sequer olhar para a bola, esta que era o sentido da sua existência, o instrumento da arte, o presente de Deus para redenção do povo brasileiro ao lhe fazer conhecer intuitivamente. Só um homem assim poderia inventar a “folha seca”, uma batida tão sóbria, simples e despretensiosa com a ponta dos dedos no meio da bola que a fazia subir e cair rapidamente como uma folha da árvore.

Só um homem com essa elegância e certeza diante das tensões da vida poderia, depois do primeiro gol sueco, pegar a bola do gol, trazê-la em baixo dos seus braços e dizer a todos: não há problemas, iremos vencer. O próprio mito de fundação do futebol brasileiro. A elegância de Didi estava ali para ser o complemento ideal para a bela transgressão anárquica dos dribles de Garrincha. E quis o destino que os dribles sem lógica aparente de Garrincha trouxesse a primeira copa e transformasse o futebol num enredo épico do povo brasileiro.

Didi para Garrincha abriu o caminho para a ordem, para o bem-feito, para o alto nível físico, técnico e psicológico. Garrincha não podia ser rei, pois era interrupção virtuosa da ordem das coisas. Didi não podia ser rei, pois sua natureza era desconfiar, não à toa teve imensas dificuldades no Real Madrid independente de questões táticas e boicotes como o de Di Stéfano. Pelé, com sua concentração e técnica soberba, sendo ótimo em todos os fundamentos, antevendo as jogadas, com uma habilidade que beirava a perfeição, com o seu profissionalismo, era o homem destinado a assumir o legado real e ser o grande nome da épica que se tornou o futebol brasileiro. Pelé pode ter sido o melhor jogador de futebol da história, mas Garrincha foi o maior. Eternamente.

Fonte: https://www.ocampanario.com/single-post/2017/03/21/Didi-para-Garrincha

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