por
ELTON FLAUBERT
In O
Campanário
Anos
atrás, quando assisti pela primeira vez a vitória brasileira sobre a Suécia na
final da Copa de 58, lembro que minha atenção foi totalmente dominada por
Garrincha. Isso me veio novamente à mente quando procurava alguns vídeos
históricos no Youtube e encontrei uma entrevista dele falando sobre o
estado do futebol brasileiro na época: muito passe, pouco ímpeto.
Antes
de 58, o Brasil era uma força menor no continente. Argentina e Uruguai eram os
grandes vencedores da Copa América, a maior rivalidade continental, e para
piorar tínhamos perdido uma copa em casa de maneira dramática. Nélson
Rodrigues, que transformava o sentimento em palavras como raros escritores,
tinha dito que a nossa derrota em 50 criou um “complexo de vira-lata” tal tinha
sido o trauma de perder a glória que se encontrava em nossas mãos. Já o
“fiasco” (derrota para uma das maiores seleções da história, a Hungria de
Puskas) em 54 foi associado ao racismo, pois nossos jogadores negros não seriam
psicologicamente aptos para aguentar momentos decisivos. A vitória de 58 foi
muito mais do que o primeiro título, mas o próprio momento iluminador do que havia
de melhor no povo brasileiro se expressando nessa arte épica chamada futebol.
Depois
que a Suécia abriu o marcador da final jogando em casa, foi Garrincha – um
“Mané” – que nos colocou de volta na partida. Quase que sistematicamente, Didi
pegava a bola no meio e lançava na direita para Garrincha. Driblando para
direita, para esquerda, mudando a direção do corpo, desvendando intuitivamente
o comportamento dos adversários, Mané fez miséria com os suecos. O gol de
empate veio numa jogada sua pela direita, em que driblou dois suecos e cruzou
para Vavá escorar. O gol da virada foi quase uma repetição do primeiro. As
portas estavam abertas para o título tão esperado.
Quis o
destino que a grandeza do nosso futebol começasse a ser celebrada pelas pernas
tortas de Garrincha. Mané era o antídoto da objetividade por definição.
Futebol, para ele, não era excelência. Não era objetivamente fazer gols, ter o
melhor desempenho possível, driblar em direção às traves, ser campeão
independentemente de qualquer coisa. Garrincha é o anti-Messi, o anti-Cristiano
Ronaldo. Messi e Cristiano querem gols, títulos, prêmios, vão ao limite por
isso, tudo é perfeitamente calculado em prol de um objetivo. Ninguém jamais viu
Messi dando um drible que não fosse objetivamente pelo gol. Ninguém jamais viu
Cristiano Ronaldo se divertindo num campo de futebol. Não há sobra, não há
resto. Tudo é útil e necessário. Ao contrário, o gol era parte integrante do
grande mistério do futebol para esse Mané que celebrava no jogo a
espontaneidade da criança. O seu drible era poesia que funcionava como ode e
agradecimento ao que o futebol lhe dera. Ele estava ali para alegrar a plateia.
Reza a lenda que, em 1956, o técnico do Botafogo, Zezé Moreira, irritado com os
seus dribles em excesso colocou uma cadeira no gol e lhe pediu para acertá-la
logo depois de um drible perto da área. Garrincha saiu driblando todo mundo,
chegou na cadeira e começou a driblar todos de novo em direção contrária. Ele
não fazia isso porque só sabia driblar, pois concluía e cruzava muito bem, era
dono de técnica refinada, não só de habilidade. Queria o gol, mas antes uma
infinitude de coisas.
Garrincha
era uma ingovernável força da natureza. Era o maior exemplo da inteligência
intuitiva que define o nosso futebol. Ele não era só um nato driblador, o maior
de todos, mas possuía o dom da antevisão. Se Pelé antevia a jogada, Garrincha
antevia outra coisa. Ele antevia o corpo, os gestos, os comportamentos, as
reações dos adversários. Sempre a frente, Mané sabia exatamente para onde ia o
seu marcador. Intuitivamente, Garrincha era um mestre do comportamento humano.
Mané era um traquina.
Igualmente,
ele tinha o poder de hipnotizar a plateia com a genuinidade do seu talento.
Mesmo hoje, assisti-lo é sentir o tempo e a respiração pararem na expectativa
do que vai acontecer, da beleza rara que pode brotar dos seus movimentos. Mané
era autor de uma arte que não foi feita para ser eterna no sentido do jogo
coletivo da Hungria de 54 ou da Holanda de 74, mas para causar uma sensação
específica e rara de alegria. Uma alegria fulgurante, que vem rápida e
fulminante, lembrando-nos por uma centelha do bem da existência, e de como
somos pequenos diante disso. Alegria que dissipava nossas manias rapidamente e
sumia. Como sua arte, a vida também foi passageira para o Mané que foi abatido
pelo álcool e pelos julgamentos por seu relacionamento com Elza Soares.
Esse
“anjo torto” que dava alegria era também um símbolo compacto do povo brasileiro
e do que diante de tantas mazelas tornou-se bonito pela generosidade do
futebol. Na falta de ordem, na ausência de qualquer senso de unidade, no meio
daquele tipo de sincretismo que perverte todas as coisas com sua irreverência
maligna, também havia algo de bonito nesse povo, pronto para ser coroado na
épica do futebol.
Os
dribles de Garrincha não eram uma espécie de malandragem característica do povo
brasileiro, mas aquele tipo de desvio benéfico que consegue subverter a ordem
das coisas terrenas em prol de algo maior, mais belo, mais grandioso, mais
justo. As linhas tortas de Deus. Mesmo a mais virtuosa das ordens dirigida pelo
mais virtuoso dos homens, cria um tipo de limitação que, ao mesmo tempo, funda
sua transgressão. Necessária e violenta, a ordem dos homens não pode dissipar
as tensões inerentes aos humanos vivendo nesse mundo daqui, num entremeio entre
ser e não-ser. A beleza desse drible transgressor não é a virtude da ordem, com
senso da unidade e do eterno, como o sincrônico carrossel holandês de 74, mas a
virtude da superação em nome do que é maior do que nós. O drible de Garrincha
era a transgressão de um burocrata na Alemanha de Hitler que camufla algo para
ajudar um judeu. É o desvio do que tudo indicava. É o drible que desnorteia a
regência dos eventos, quebra a linearidade do transcorrer das coisas.
Se há
algo de bom no característico do povo brasileiro é esse ato cambiante que
circula por algo maior sem quebrar a unidade. O lado perverso dessa
característica é sua utilização pelo arrivismo, pela ganância, pela
irreverência maligna. Essa transgressão camuflada pode ser tanto um remédio
como um veneno para alma. Veneno do culto ao mal que Garrincha soube superar ao
fazer do seu talento aquilo para que ele foi feito. Ele podia ter optado pelo
formalismo burguês, pelo gol direto e reto, pela utilidade. Não seria Garrincha
e teria sido o malandro arrivista que conhecemos tão bem. Para esse Mané, como
para o bom do povo brasileiro, tudo está bem quando parece dar errado para dar
certo, pois qual a probabilidade das coisas se tornarem tão gloriosas sem a
mais irrestrita objetividade, sem o foco dos construtores?
Todavia,
a beleza anárquica de Garrincha não seria nada sem o seu companheiro de seleção
e Botafogo: Didi. Ele era o complemento que guiava a astúcia de Garrincha para
a transgressão virtuosa. Didi sempre teve uma aparência sóbria, madura,
precisa. O esguio meia jogava com uma elegância natural. Com ele, não havia
excessos. O seu futebol não era conclusivo, mas uma oferta despretensiosa para
os exageros intuitivos dos atacantes, sedentos por gols. No caso de Garrincha,
sedento pela traquinagem.
Didi
desfilava em campo, distribuía passes precisos e lançamentos decisivos. Quando
a bola chegava aos seus pés, o tempo parava – não pela expectativa – mas porque
ele se tornava o seu dono, ditando o ritmo da história a ser contada no campo.
Seu olhar trazia certa melancolia característica do brasileiro, mas que não se
escondia no riso. Era mais aquele reconhecimento confuso das tribulações da
vida, da sua incompletude, das tensões naturais. A percepção dos dramas humanos
que abundavam no seu entorno com uma consciência madura de quem destemia o
fracasso.
Só um
homem com tal magnitude e disposto a oferecer – tanto como jogador, quanto como
técnico – poderia ditar o ritmo da história em campo sem sequer olhar para a
bola, esta que era o sentido da sua existência, o instrumento da arte, o
presente de Deus para redenção do povo brasileiro ao lhe fazer conhecer
intuitivamente. Só um homem assim poderia inventar a “folha seca”, uma batida
tão sóbria, simples e despretensiosa com a ponta dos dedos no meio da bola que
a fazia subir e cair rapidamente como uma folha da árvore.
Só um
homem com essa elegância e certeza diante das tensões da vida poderia, depois
do primeiro gol sueco, pegar a bola do gol, trazê-la em baixo dos seus braços e
dizer a todos: não há problemas, iremos vencer. O próprio mito de fundação do
futebol brasileiro. A elegância de Didi estava ali para ser o complemento ideal
para a bela transgressão anárquica dos dribles de Garrincha. E quis o destino
que os dribles sem lógica aparente de Garrincha trouxesse a primeira copa e
transformasse o futebol num enredo épico do povo brasileiro.
Didi
para Garrincha abriu o caminho para a ordem, para o bem-feito, para o alto
nível físico, técnico e psicológico. Garrincha não podia ser rei, pois era
interrupção virtuosa da ordem das coisas. Didi não podia ser rei, pois sua
natureza era desconfiar, não à toa teve imensas dificuldades no Real Madrid
independente de questões táticas e boicotes como o de Di Stéfano. Pelé, com sua
concentração e técnica soberba, sendo ótimo em todos os fundamentos, antevendo
as jogadas, com uma habilidade que beirava a perfeição, com o seu
profissionalismo, era o homem destinado a assumir o legado real e ser o grande
nome da épica que se tornou o futebol brasileiro. Pelé pode ter sido o melhor
jogador de futebol da história, mas Garrincha foi o maior. Eternamente.
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