por CLARICE LISPECTOR
Jornal do Brasil, 30 de março de 1968
E o título sairia muito maior, só que não caberia numa
única linha. Não leio todos os dias Armando Nogueira – embora todos os dias dê
pelo menos uma espiada rápida – porque “meu futebol” não dá para entender tudo.
Se bem que Armando escreve tão bonito (não digo apenas “bem”), que às vezes,
atrapalhada com a parte técnica de sua crônica, leio só pelo bonito. E deve ser
numa das crônicas que me escaparam que saiu uma frase citada pelo Correio da Manhã, entre frases de
Robert Kennedy, Fernandel, Arthur Schlesinger, Geraldine Chaplin, Tristão de
Athayde e vários outros, e que me leram, por telefone. Armando dizia: “De bom
grado eu trocaria a vitória de meu time num grande jogo por uma crônica...” e
aí vem o surpreendente: continua dizendo que trocaria tudo isso por uma crônica
minha sobre futebol.
Meu primeiro impulso foi o de uma vingança carinhosa:
dizer aqui que trocaria muita coisa que me vale muito por uma crônica de
Armando Nogueira sobre digamos a vida. Aliás, meu primeiro impulso, já sem
vingança, continua: desafio você, Armando Nogueira, a perder o pudor e escrever
sobre a vida e você mesmo, o que significaria a mesma coisa.
Mas, se seu time é Botafogo, não posso perdoar que
você trocasse, mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem por um meu romance
inteiro sobre futebol.
Deixe eu lhe contar minhas relações com futebol, que justificam
o coitada do título.
Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior
porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao
excessivo. É o seguinte: não me é fácil tomar partido em futebol – mas como
poderia eu me isentar a tal ponto da vida do Brasil? – porque tenho um filho
Botafogo e outro Flamengo. E sinto que estou traindo o filho Flamengo. Embora a
culpa não seja toda minha, e aí vem uma queixa contra meu filho: ele também era
Botafogo, e sem mais nem menos, talvez só para agradar o pai, resolveu um dia
passar para o Flamengo. Já então era tarde demais para eu resolver, mesmo com
esforço, não ser de nenhum partido: eu tinha me dado toda ao Botafogo,
inclusive dado a ele minha ignorância apaixonada por futebol. Digo “ignorância
apaixonada” porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente a entender
de futebol.
E agora vou contar o pior: fora as vezes que vi por
televisão, só assisti a um jogo de futebol na vida, quero dizer, de corpo presente.
Sinto que isso é tão errado como se eu fosse uma brasileira errada.
O jogo qual era? Sei que era Botafogo, mas não me
lembro contra quem. Quem estava comigo não despregava os olhos do campo, como
eu, mas entendia tudo. E eu de vez em quando, mesmo sentindo que estava
incomodando, não me continha e fazia perguntas. As quais eram respondidas com a
maior pressa e resumo para eu não continuar a interromper.
Não, não imagine que vou dizer que futebol é um
verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte, como de
gladiadores. E eu – provavelmente coitada de novo – tinha a impressão de que a
luta só não saía das regras do jogo e se tornava sangrenta porque um juiz
vigiava, não deixava, e mandaria para fora de campo quem como eu faria, se
jogasse (!). Bem, por mais amor que eu tivesse por futebol, jamais me ocorreria
jogar...Ia preferir balé mesmo. Mas futebol parecer-se com balé? O futebol tem
uma beleza própria dos movimentos que não precisa de comparações.
Quanto a assistir por televisão, meu filho
botafoguense assiste comigo. E quando faço perguntas, provavelmente bem tolas
como leiga que sou, ele responde com uma mistura de impaciência piedosa que se
transforma depois em paciência quase mal controlada, e alguma ternura pela mãe
que, se sabe outras coisas, é obrigada a valer-se do filho para essas lições.
Também ele responde bem rápido, para não perder os lances do jogo. E se
continuo de vez em quando a perguntar, termina dizendo embora sem cólera: ah,
mamãe, você não entende mesmo disso, não adianta.
O que me humilha. Então, na minha avidez por
participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou entender jamais? E
quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com
minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir com tranqüilidade uma
não participação do que representa vida. Mas sinto que não desisti. Quanto a
futebol, um dia entenderei mais. Nem que seja, se eu viver até lá, quando eu
for velhinha e já andando devagar. Ou você acha que não vale a pena ser uma velhinha
dessas modernas que tantas vezes, por puro preconceito imperdoável nosso, chega
à beira do ridículo por se interessar pelo que já devia ser um passado? É que,
e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um
passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha do futuro.
E agora repito meu desafio amigável: escreva sobre a
vida, o que significaria você na vida. (Se não fosse cronista de futebol, você
de qualquer modo seria escritor.) Não importa que, nessa coluna que peço, você
inicie pela porta do futebol: facilitaria você quebrar o pudor de falar
diretamente. E mais, para facilitar: deixo você escrever uma crônica
inteira sobre o que o futebol
significa para você, pessoalmente, e não só como esporte, o que terminaria
revelando o que você sente em relação à vida.
O tema é geral demais, para quem está habituado a uma
especialização? Mas é que me parece que você não conhece suas próprias
habilidades: seu modo de escrever me garante que você poderia escrever sobre
inúmeras coisas. Avise-me quando você resolver responder a meu desafio, pois,
como lhe disse, não é todos os dias que leio você, apesar de ter um verdadeiro
gosto em ser sua colega no mesmo jornal. Estou esperando.
Fontes da crônica: http://www.literaturanaarquibancada.com e http://cronicasdaestrelasolitaria.blogspot.com/search/label/Botafogo%201968
5 comentários:
Olá Rui,
Tenho estado bem atarefado, mas certamente escolhi o momento certo em lhe fazer uma visita.
Que texto maravilhoso, sinto falta dos bons jogadores até mesmo os que não vi. Mas sinto ainda mais falta de textos geniais como esse sobre o futebol, texto lindo e maravilhoso.
Existe uma crise de talentos no campo, mas existe uma muito maior na imprensa. Temos pencas e pencas de jornalistas que confundem mau humor com erudição e deixam cinza o colorido do futebol.
Que prazer em ler o texto, de quem não sabe provavelmente explicar um impedimento mas entende e respeita o futebol com muito mais profundidade que a maioria dos jornalistas que arrogantemente se denominam "especialistas".
Que prazer foi ler a Clarice, ler o Armando, ler o Nelson, é pra mim uma uma falta do Zico, deve ser pra ti um drible do Garrincha.
Um enorme abraço e tô sempre por aqui!
Olá, companheiro!
Realmente o texto é muito bom e profundo e com boas pitadas de alegria. Concordo sobre os péssimos jornalistas (desportivos e não só) que temos hoje. Não sou saudosista, mas antigamente havia grandes e memoráveis jornalistas/escritores, com enorme sensibilidade e capacidade de interpretar e comunicar emoções, de uma qualidade literária extraordinária (Armando Nogueira, Sandro Moreira, Nelson Rodrigues, Mário Filho, Ruy Castro e tantos outros que escreveram sobre futebol) e que hoje é muito difícil de encontrar. O jornalismo é raso, não sabe voar, desconhece a utpopia e a criação. Confesso que evito programas de debate desportivo de tão parcos que são quer em termos de emoções tocantes como de racionalidades objetivas.
O Leymie escreve/escreveu em algum lugar?
Grande abraço!
Não, nunca!
Mas admiro muito quem escreve!
É pena, para mim. Gostaria muito de ler um texto seu. Quem sabe um dia?...
Grande Abraço.
Oh Rui,
Fiquei muito feliz, vindo de vc diz muito pra mim.
Abração!
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