sábado, 30 de março de 2019

Sofrer pelo Botafogo

por NELSON RODRIGUES
In Manchete Esportiva, 04.08.1956
Crônica sobre Botafogo 0x0 Vasco da Gama, 29.07.1956

Todos os torcedores de futebol se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Têm o mesmo comportamento e xingam, com a mesma exuberância e os mesmos nomes feios, o juiz, os bandeirinhas, os adversários e os jogadores do próprio time. Há, porém, um torcedor, entre tantos, entre todos, que não se parece com ninguém e que apresenta uma forte, crespa e irresistível personalidade. Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por quê?

Pelo seguinte: - há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto eu: - por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os 90 minutos. E, no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso time esteja perdendo de 15 a 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a virada, ainda esperamos a reação.

Pois bem: - o torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera precisamente a derrota. Os outros comparecem na esperança de saborear como um chicabom o triunfo do seu clube. Mas o torcedor do Botafogo é diferente: - ele compra o seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer. Eis a verdade: - ele não vai a campo ver futebol.

O futebol é um detalhe secundário e, mesmo, desprezível. Ele quer, acima de tudo, desgrenhar-se, esganiçar-se, enfurecer-se e rugir contra Zezé Moreira. No dia em que retirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e, sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino.

Tudo na vida é uma questão de hábito. E o cidadão que padece todos os dias acaba se afeiçoando ao próprio martírio ou mais do que isso: - o martírio torna-se insubstituível como um vício funesto. É o caso da torcida alvinegra que, desde 1910, sofre e, ao mesmo tempo, xinga Zezé Moreira. Conclusão: - já não pode viver sem uma coisa e outra.

Por exemplo: - o clássico de ontem, no Maracanã, foi o que se chama de jogo ideal para o torcedor do Botafogo. Já durante a semana, ele vivera mergulhado no pessimismo como um peixinho no seu aquário. E, ontem, finalmente chegou o grande dia: - a torcida alvinegra sofreu como nunca e rugiu, como nunca, contra Zezé Moreira. De fato, o Vasco exerceu um feroz, um maciço domínio de 80 minutos.

E mais: - o Vasco deu show, jogou bonito, brilhou escandalosamente como um Sol. No intervalo do primeiro para o segundo tempo, encontro um amigo botafoguense. Exultante com o próprio sofrimento e com o próprio furor, ele veio, para mim, de braços abertos. Do lábio, pendia-lhe a saliva pesada e elástica de uma cólera sagrada. Agarra-me e rosna-me, ao ouvido: - Esse Zezé Moreira é um tarado! E repetia, atirando patadas ao chão: - Tarado.

A princípio, pensei num crime sexual ainda impune, praticado nalgum terreno baldio. Pálido, quero saber por que tarado. Então, o amigo explica-me: - porque pusera o Bauer no lugar de Pampolini! E essa substituição parecia, ao meu conhecido, o sintoma inconfundível de uma tara tenebrosa. O diabo é que todo o esforço e todo o brilho do Vasco não renderam mais que um franciscano empate de 0 a 0. Acresce que, nos 10 minutos finais, o Alvinegro reage dramaticamente e quase ganha o jogo.

2 comentários:

Carlos Eduardo disse...

Mário Filho e Nelson Rodrigues,mesmo não sendo botafoguenses,descreviam tão perfeitamente o BOTAFOGO,o que é ser Botafogo,que fica díficil quem também não é discordar de algo dito por eles.
E digo mais o botafoguense vai ao jogo pelo Botafogo e por isso a vitória se torna um mero detalhe.Os torcedores de outros clubes são o inverso.
A nossa torcida já tinha esse perfil de passionalidade disfarçada de pessimismo desde sempre a meu ver pelo simples fato de ser um clube fundado por garotos.
Quem em sã consciencia teria um otimismo vendo meninos x velhos jogando futebol no inicio dos anos 1900(no seu blog tem um post sobre como se portava a nossa torcida) com favoritismo obvio dos mais velhos.
E quem era Botafoguense naqueles tempos iam pra ver aquela agremiação rodeada de meninos que querendo ou não,era o mesmo que ir para ver o Botafogo,então se os meninos mostrassem amor ao clube que fundaram,certamente a torcida seguiria esse mesmo caminho.
É só ver o perfil de um Dinorah,Carlito Rocha(como jogador),Abelardo de Lamare(em 1911),ou seja,nossa torcida não podia ser menos passional que a vontade de vencer dos jogadores nesse período,entende???
Paulo Mendes Campos já dizia que o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol.

Ps.: Não conheço outro clube com tamanha devoção quanto o Botafogo desde os seus primórdios,tanto no Regatas quanto Futebol.
Acredito que o Botafogo precisa olhar pra dentro de si e entender seu real tamanho,e parar de olhar pra fora e acreditar no que a mídia diz a nosso respeito(que se apequenou). Só assim teremos um Botafogo verdadeiramente no seu lugar de direito,e não ser alçado a outro patamar caso volte aos tempos de glória.

Desculpa o comentario gigante,mas ele vai de acordo com o que o Botafogo É.
Abraços!!!!


Ruy Moura disse...

Mário Filho e Nelson Rodrigues foram os únicos excelentes jornalistas desportivos não botafoguenses. Devem ser lidos por todos, embora admita que N. Rodrigues exagerou, e muito, quando nos caricaturou. Fico com Paulo Mendes Campos.

Acertou, Carlos Eduardo. A nossa formação, considerando o período pós 1904, é marcada, em minha opinião, por marcos de acontecimentos: a rebeldia típica dos garotos da fundação que redundou no abandono da Liga em 1911, os pessimismos iniciados com o drama da 'Tragédia da Piedade' em 1909, as superstições da década de 1940. Portanto, rezingões como o Pato Donald, rebeldes como o Manequinho, pessimistas como o Cri-Cri e supersticiosos como Carlito Rocha.

Somos Botafogo! (rsrs)

Abraços Gloriosamente Estrelados!

Neto: o goleiro-reserva

Crédito: Botafogo de Futebol e Regatas. por RUY MOURA | Editor do Mundo Botafogo Norberto Murara Neto nasceu no dia 19 de julho de 1989,...