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por LÚCIA SENNA
Escritora e cantora
Cronista do Mundo Botafogo
Se há uma
palavra que continua em alta é o desapego. Nas conversas informais, no papo da
esquina e nas reuniões sociais, só se fala na importância da prática do
desprendimento, do altruísmo e da filantropia. Todos parecem ser discípulos de
Buda. Deixaram de ser consumistas, de acumular objetos, andam praticamente com
a roupa do corpo e sentimento de posse é coisa do passado. Quanto aos
relacionamentos afetivos, filosofam que ninguém é de ninguém e, portanto, nada
de sofrer com o fim de um romance. Haverá sempre, dizem eles, um novo amor a
cada novo amanhecer.
Não acredito em
tanta abnegação. A verdade é que as pessoas mentem demais em reuniões
sociais. Eu mesma já me peguei dizendo
em uma roda de amigos que me desfaço com tranquilidade de tudo o que não faz
mais sentido em minha vida. Que mentira deslavada! Logo eu que padeço até
quando perco uma ideia, um pensamento, uma imagem ou ainda quando já não me recordo
do sonho da noite passada. Logo eu que sofro com despedidas e vivo com as
emoções em estado de ebulição, tive a desfaçatez de afirmar que é da minha
natureza descartar-me do entulho emocional pra ficar leve, livre dos escombros. Que cara de
pau a minha!
E já que estou
com a mão na massa confesso, despudoradamente, o meu alto nível de apego até
mesmo a objetos carcomidos pelo tempo. Minha alma é antiga, o que se há de
fazer?... Dia desses, realizando umas escavações arqueológicas no quartinho de
serviço, deparei-me com vários fósseis soterrados, aparelhos eletrônicos
obsoletos que fizeram parte da minha pré-história. Nem por um instante pensei em me desfazer
deles. Ao contrário: uma saudade de emoções passadas tomou conta de mim. Lá
estava a máquina de escrever Olivette, que ganhei aos 15 anos. Não era o
presente que sonhara, mas ser uma boa datilógrafa, segundo mamãe, dava um
brilho em qualquer currículo.
Em seguida apareceram
o gravador de voz, a vitrola, o toca-fitas e um radinho de pilha bem fuleiro,
comprado de segunda mão de uma colega do colégio. Mas foi com o coração acelerado que vi surgir
a coleção de vinil. Não é possível explicar uma paixão. O que sei é que sempre
tive uma forte relação emocional com as bolachonas. Enquanto o CD tem aspecto
descartável, o vinil tem classe, tem arte gráfica, tem ficha técnica e uma bela
biografia começada lá na década de 1950. A bolachona é estilosa.
Apegada sou
também ao telefone fixo, esse belo exemplar de ébano que, altivo e majestoso, repousa
no criado mudo. Não, por favor, não riam de mim. Tenho-o como um membro da
família pois pertenceu ao meu avô e à minha mãe. Já teve seus momentos de
glória. Com a chegada dos celulares vive no ostracismo, o pobrezinho. Quando toca, entro em pânico pois já sei o
que me espera. São as insuportáveis empresas de telemarketing a me pedir: “por
favor, não desligue, a sua ligação é muito importante para nós”. Ou as não
menos irritantes instituições bancárias a oferecer cartões de crédito quando a
estrela d’Alva ainda pode ser vista a olho nu. Ou ainda as entidades filantrópicas, com as
suas vozes arrastadas e piedosas, solicitando 3 vezes por dia / 8 dias por
semana, uma caridade para o “Lar de Maria”, para os “Pequeninos de
Jesus”, para as “Criancinhas de Nossa Senhora”... CARAMBA!!!
Livro-me da
filantropia e dou com a voz de milicianos a tentar me aplicar o último golpe da
praça. Ah, isso sem falar no agora ex-querido cantor Moacir Franco que, aos 85
anos, virou garoto propaganda de um produto capaz de curar 150 doenças, além de
fazer emagrecer. Poxa, Moacir, francamente...
Estou irritadíssima!
Apesar do sofrimento que isso me causa, vou
cancelar a linha do meu pretinho de estimação e deixá-lo pra sempre em ponto
morto. Não suporto mais ouvir vozes querendo
empurrar produtos que não me interessam, abusando da minha paciência com
enquetes sobre se ainda utilizo canudos de plástico, se vou viajar no feriado
de São Damião, se concordo com o fim do horário de verão, se sofro de depressão,
de dor de cotovelo, ou se...
Opa, o telefone
está tocando, e dessa vez, sei lá, vai que, né?
Não
acredito!!!! Era uma gravação da funerária “Boa Morte” oferecendo-me planos
funerais com direito a promoção de caixão de madeira de excelente qualidade.
Incluso no pacote, música ao vivo, buffet, efeitos especiais e
lembrancinhas para todos os que participarem do meu... EPÍLOGO?!!! Estou
espumando de ódio!!! Como assim? Eu, em pleno prefácio da vida, e esse cidadão
falando em EPÍLOGO?!!! Em FINITUDE?!!!! Só faltou pedir para que eu agilizasse o meu
epitáfio.
Preciso me
acalmar, tomar um Lexotan, respirar fundo porque essa história de EPÍLOGO mexeu
comigo. Deito-me na rede e ponho-me a meditar sobre essa tal de finitude. E
sabe do que mais? Daqui pra frente só vou mesmo me apegar ao desapego. Buda
acaba de ganhar mais uma discípula.
Até que esse
negócio de pensar no próprio epitáfio tem sua graça. Pensei, pensei e já escolhi
o meu:
DESAPEGUEI
GERAL. SAIO DE SENNA.