Fragmentos ‘futebol do botafogo 1966-1970’: Garrincha depois do Botafogo… Parte I [11]

por CARLOS FERREIRA VILARINHO

especialmente para o Mundo Botafogo

sócio-proprietário e historiador do Botafogo de Futebol e Regatas

 [A narração que se segue antecipa o III Volume da coleção, a editar em 2022, e reporta-se ao ano de 1966]

Em sua edição de 29 de outubro de 1966, a sucursal paulista da Última Hora, publicou que o técnico Filpo Nuñez vinha perseguindo Garrincha e, por isso, a cantora vinha tentando, há dias, convencer o Flamengo a propor ao Corinthians o seu empréstimo até dezembro. Pena que o presidente interino, Marcus Vinícius de Carvalho, não tenha visto a ideia com bons olhos, tanto que, na quarta-feira (dia 26 de outubro), partiu para a galhofa: “Deve ter havido um engano. Não, não é para o Flamengo que o Garrincha virá. Podem crer, o Sr. Gunnar Göransson vai é trazê-lo para o time da Facit, que disputa o campeonato do Departamento Autônomo. Também tenho uma vontade doida de contratar o Zizinho, o Perácio e o Pirilo. Ah, também o Patesko para a ponta esquerda. Aí, sim, compraria o Garrincha para jogar na ponta direita. Já pensou uma linha com Garrincha, Zizinho, Pirilo, Perácio e Patesko? O Flamengo não é mais museu. Pode ter sido, mas não é. Mais tarde, sim, talvez possa voltar a ser. Garrincha saiu do Botafogo para o Corinthians muito bem vendido, depois de operar menisco, jogou algumas partidas lá em São Paulo e depois, na Seleção, foi aquilo que se viu”.

Na quinta-feira (dia 27), Veiga Brito declarou a Geraldo Romualdo da Silva (Jornal dos Sports – edição de 28/10/1966): “Eu li. E ouvi do Marcus sua opinião. No meu entender, porém, o Flamengo precisa examinar as condições da oferta do jogador e a opinião do Corinthians. Estou convencido que Garrincha representa uma grande atração internacional e uma excepcional promoção. Sobretudo, em jogos internacionais. Mas vamos aguardar os acontecimentos. No próximo dia 16, estarei de volta à presidência”.

No sábado (dia 29), Luiz Bayer insistiu no assunto, em sua coluna do Jornal dos Sports: “Numa conversa informal, ontem, na sede da Federação Carioca de Futebol, o grande benemérito do Flamengo, Sr. Hilton Santos, declarou que a resposta do Sr. Marcus Vinícius de Carvalho sobre Garrincha representou realmente o ponto de vista dos interesses do clube: De fato, seria um ato prejudicial aos interesses do Flamengo a contratação daquele profissional, uma vez que as suas condições atuais não admitiriam o seu aproveitamento nem nos amistosos no exterior”. O Sr. Hilton Santos preferiu não comentar as palavras do engenheiro Veiga Brito, mas lamentou que houvesse dentro do seu clube um clima de divergência, justamente de dirigentes que deveriam estar sempre perfeitamente entrosados”.

Filpo Nuñez não demorará a colocar Garrincha no time, deslocando o titular (Marcos) para o miolo. Em troca, Mané terá de acompanhar o presidente Wadih Helu (ARENA) nos comícios finais da campanha por uma cadeira na Assembleia Legislativa. Em 15 de novembro, Wadih Helu será eleito deputado e Garrincha perderá sua utilidade. No dia 15 de dezembro, o Correio da Manhã informou que, na véspera, o Corinthians decidira colocar o passe de Garrincha à venda, “por ter o jogador desaparecido sem dar satisfação e ser considerado dispensável do elenco”. E acrescentou: “A iniciativa visa facilitar ao máximo a saída de Garrincha, que, com suas sucessivas atitudes de indisciplina, abre precedente perigoso no clube”. Mas a cantora não havia dito que o Corinthians era o clube ideal para o Neném?

Dois meses depois (14 de fevereiro), o TJD autorizou o Corinthians a suspender o contrato de Garrincha. Então, ele e a cantora passaram a sonhar com contratos nos EUA. Mas em 13 de abril, autorizado pelo Corinthians, Mané começou a treinar no Fluminense para voltar ao peso. Na outra semana, o Corinthians irá oferecê-lo ao Flamengo, por empréstimo (por 20 mil), até o final do ano. “Só de graça” – será a resposta.

Em 26 de julho, por encargo de Ricardo Cravo Albin, diretor do Museu da Imagem e do Som, a chamada Comissão Executiva do Esporte Brasileiro selecionou os 38 maiores atletas, em todos os tempos, cujos depoimentos seriam gravados para a posteridade. No futebol, foram escolhidos 18 nomes, cinco deles por unanimidade (17 votos): Friedenreich, Domingos da Guia, Nilton Santos, Garrincha e Pelé. Didi veio logo atrás (16 votos), seguido de Leônidas da Silva (15 votos), Zagalo (11 votos) e Danilo (6 votos). Na categoria de “outros esportes”, seriam ouvidos 13 atletas. Dos cinco dirigentes, dois eram botafoguenses: Carlito Rocha e João Lyra Filho.

Na noite de 19 de setembro, o Brasil – representado pelo escrete carioca treinado por Zagalo – enfrentou amistosamente o Chile, em Santiago. Alejandro Scopelli (técnico chileno) apontava a sua seleção como a melhor que o Chile pôde reunir desde a Copa do Mundo de 1962. A propósito, na segunda-feira, ele declarou: “Acho Pelé extraordinário, mas confesso que, nas duas Copas do Mundo que o Brasil conquistou, entusiasmei-me muito mais com Garrincha. Numa seleção minha, se tivesse que escolher, ficaria com Garrincha”.

No final de junho, o sonho de Garrincha de jogar nos EUA (ou no México) havia se transformado em poeira. Na segunda semana de julho, ele passou a treinar em São Januário. Chegou a brilhar no time misto, em Cordeiro. Iludido com o Vasco, em meados de agosto, recusou 10 mil por um contrato (três meses) oferecido pelo Araxá. O campeão da segunda divisão de Minas Gerais foi reprovado pela cantora. No dia 17 de setembro, um domingo, contra o Santos, na Fonte Nova, Mané jogaria como convidado do Bahia, ganhando 1 mil cruzeiros livres de despesas. Dependendo da sua atuação, assinaria até dezembro (por 2,5 mil mensais), mas na Hora H, ele apresentou um atestado assinado pelo Dr. Mário Tourinho (o mesmo funcionário do América que o operou em 1964), proibindo-o de entrar em campo. Na sexta-feira (dia 22), o São Cristóvão embarcou para a Bolívia, onde faria dois amistosos. Mané jogaria por 2 mil dólares (pagos pelo empresário), porém, por causa do “joelho”, ficou por aqui dando atenção ao controvertido “samba” de Sérgio Ricardo (Beto Bom de Bola), que tanto furor causará no III Festival da TV Record.

No dia 21 de novembro, João Havelange, presidente da CBD, recebeu uma delegação da Associação de Cronistas Esportivos da Guanabara, que decidira, há duas semanas, promover uma partida da seleção brasileira cuja renda reverteria em favor de Garrincha e suas oito filhas. Nair e as meninas (todas menores) vinham sobrevivendo com a ajuda dos irmãos e amigos, pois Mané havia deixado de pagar a pensão, alegando estar desempregado. Havelange não só apoiou a iniciativa da ACEG como determinou que o jogo fosse oficial, provavelmente em disputa da Taça Rio Branco 1968, antes do embarque do escrete para a Europa. Em 6 de dezembro, em Corumbá, num intervalo da excursão da Portuguesa (que prosseguiria na Bolívia), Garrincha demonstrou vivo interesse pelo jogo promovido pela ACEG, o gesto de reconhecimento de um bicampeão mundial. Além disso, o futuro das oito filhas estava em jogo. Frisou, no entanto, que o jogo seria a sua despedida apenas do escrete.

Em 11 de janeiro de 1968, uma quinta-feira, Garrincha apareceu no Botafogo e pediu para se exercitar (fez apenas sauna e massagem), pois defenderia a seleção de Goiás, como convidado, no amistoso contra o Bangu, na noite de sábado. Garrincha marcou presença no bate-bola do dia 23 e participou do coletivo do dia seguinte, atuando quase todo o segundo tempo (meia hora) pelo time reserva. No domingo (dia 28), em Fortaleza, ele defenderia o Fortaleza no amistoso contra o Fluminense.

Então explodiu a bomba! Em fins de janeiro, o titular da 6ª Vara de Família, intimara Garrincha a regularizar o pagamento da pensão. Pelos três jogos que disputou em janeiro, Mané recebeu 4,5 mil limpos, mas não deu bola. Ele e a cantora residiam num palacete (com 3 salas e 5 quartos), em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas. Expirado o prazo fixado no início de fevereiro, o juiz ordenou que Garrincha efetuasse, em 24 horas, o depósito de 2,6 mil na conta aberta no BEG em nome de Nair. Sem o apoio dos irmãos, ela passaria fome. Não o fazendo, Garrincha passaria 90 dias na prisão. No dia 7 de março, os advogados do banqueiro José Luiz de Magalhães Lins (Banco Nacional) depositaram o dinheiro.

Em 10 de março, em sua coluna no Jornal do Brasil, Armando Nogueira lançou um apelo para o governador nomear Garrincha funcionário do Maracanã. Mas a FUGAP só empregava jogadores aposentados. Além disso, Negrão de Lima não correria tal risco. Em 21 de novembro, Havelange informou que iria oferecer a Garrincha o emprego de chefe de portaria da sede da CBD, pagando 500,00 por uma jornada de 6 horas. A cantora teve um troço: “É o cúmulo alguém se lembrar do maior jogador que o Brasil já teve para oferecer-lhe um humilde emprego de porteiro. Deviam humilhar a vovozinha, não o Neném, um coitado que deu para o Brasil duas Copas do Mundo”. Havelange esqueceu o assunto. Era fato que Garrincha precisava de um emprego estável, de uma remuneração fixa, certa. Disto dependia a sobrevivência da família que ele abandonou. A renda do jogo contra o Uruguai daria a tranquilidade necessária para Mané tomar suas próprias decisões. Mas isto não estava nos planos da cantora. Pressentindo o perigo, Armando Nogueira escreveu em 30 de março: “Ninguém entende: a cantora Elza Soares resolveu resistir à ideia de fazer-se a despedida de Garrincha em jogo de gala da seleção, com renda dividida entre ele e as oito filhas. Argumento de Elza: ainda não soou a hora da aposentadoria para Garrincha. O Neném ainda jogará a Copa de 70”. Sem comentários.

Em entrevista publicada na Última Hora, em 11 de abril, a cantora anunciou que estava de malas prontas para os EUA. Lá fixaria residência. Alegou que Garrincha fora forçado a deixar o Brasil, pois aqui não havia “mais ambiente” para ele. Por isso, ela vetara o jogo-despedida. E frisou: “Agora, podem fazer o jogo-despedida se quiserem, mas despedida do Brasil, porque Neném vai jogar nos Estados Unidos”. Pobre Mané!

Extraído do livro “O Futebol do Botafogo – 1966-1970” (a lançar em 2022).

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