[Nota preliminar: O ciclismo no Rio de Janeiro, embora sem a
dimensão do remo e do turfe, era um dos desportos mais populares até ao final
do século XIX. O Botafogo Football Club dispôs, durante muitos anos, com relevo
para a década de 1940, um departamento de ciclismo (cf. Etiqueta ‘z.ciclismo’
do Mundo Botafogo) e participou em inúmeras competições ao longo dos anos.
Acerca da matéria reproduz-se para os nossos leitores o excelente texto de
André Maia Schetino sobre o Rio dos «cavalos de ferro».]
por ANDRÉ MAIA
SCHETINO | Professor de História da Educação Física no Centro Universitário
Metodista Izabela Hendrix, Minas Gerais
A
bicicleta chegou à cidade no século XIX e ficou popular com competições
inusitadas.
As
competições de ciclismo já foram uma das atrações mais divertidas e
prestigiadas pelos cariocas. Mas era tudo bem diferente do esporte que
conhecemos hoje.
No
fim do século XIX e no início do XX, os “cavalos de ferro”, como eram
conhecidas as bicicletas, conquistaram a cidade aristocrática. Se no primeiro
momento foram adotadas como um hábito elegante cultivado pela elite, logo
estariam arrebatando torcidas e movimentando bancas de apostas.
Atualmente,
o Rio de Janeiro dispõe da maior malha cicloviária do país. São 140 quilômetros
de ciclovias, além de centenas de bicicletários.
Nos
tempos do Império, porém, a bicicleta era artefato de luxo – para se adquirir
uma, era necessário viajar até a Europa e desembolsar uma boa quantia. Por
isso, as primeiras pedaladas do Rio ficariam restritas às “melhores famílias
fluminenses”.
Criada
em 1861, em Paris, pelos irmãos Pierre e Ernest Michaux, a bicicleta ganhou
inicialmente o nome de velocípede (velo = veloz; pieds = pés). O nome
“bicicleta” (do francês bicyclette) viria anos mais tarde, com a invenção do
mais famoso modelo, com engrenagens acionadas por correntes.
Antes,
o pedal era fixado no eixo da roda dianteira, e um giro de pedal equivalia a um
giro da roda. Por isso, os modelos de velocípedes tinham a roda dianteira com
diâmetro bem maior que a traseira, com o objetivo de aumentar o deslocamento a
cada giro de pedal. O banco era posicionado praticamente acima da roda
dianteira, o que fazia com que o ciclista se posicionasse assentado, com o
tronco praticamente a 90 graus em relação ao banco.
Pouco
a pouco, o veículo foi sendo incorporado à vida e à paisagem da capital
carioca, tornando-se um meio de transporte eficiente para enfrentar o trânsito
e proporcionar um aprazível passeio à beira-mar.
Logo
foram organizadas as primeiras competições na cidade. Os jornais da época
mostram o papel dos clubes esportivos na promoção da velocipedia, como era
conhecido o ciclismo. No fim do século XIX, a cidade vivia a “febre” das
corridas a pé – os primórdios do atletismo –, realizadas em agremiações como o
Club Athletico Brazileiro e a Real Sociedade Club Gymnastico Portuguez. Alguns
desses clubes começaram a organizar também provas de ciclismo. Em 1885, por
exemplo, o Sport Club Villa Izabel anunciava “grandes corridas a pé e em
velocípedes” em seu prado.
As
bicicletas eram ainda raras na cidade; por isso, reuni-las não era tarefa
fácil. Os melhores momentos para isso eram as festas e quermesses promovidas
pelos clubes, onde se anunciavam páreos de corridas em que qualquer um que
chegasse com uma bicicleta poderia competir, inclusive os não-associados.
O
ciclismo no Brasil recebeu um grande impulso quando, ainda no ano de 1885, foi
criado o Club Athletico Fluminense, situado no bairro da Tijuca e destinado à
elite carioca. A festa de inauguração aconteceu no dia 12 de julho e contou com
a presença de D. Pedro II. As provas, realizadas mensalmente e em festas
especiais, eram destinadas a meninos de até 14 anos, que percorriam entre 500 e
600 metros, e homens adultos, que percorriam entre 1.200 e 1.800 metros.
Os
prêmios para os primeiros colocados nos páreos ciclísticos eram constituídos
basicamente de “brindes” ou “prendas”. As competições promovidas pelo clube
distribuíam prêmios, como uma escrivaninha de prata e um canivete de ouro,
ganhos, respectivamente, pelos meninos Arino do Vabo e Mário de Sá nas
competições de fevereiro de 1886. Ainda não existia a tradição da premiação com
troféus e medalhas, que começa a acontecer alguns anos mais tarde.
Era
importante que todos os sócios que participassem das competições fossem
premiados. Para isso, os clubes promoviam em festas, ou mesmo em competições
regulares, páreos nas modalidades “com vantagens” e “perde-ganha”. No primeiro,
a partir de critérios como diferença de idade, tamanho e força, os competidores
largavam com vantagens de alguns metros sobre os outros. No segundo, como o
próprio nome diz, ganhava o prêmio aquele que perdia o páreo.
Iniciativa
fértil para situações cômicas: os competidores iam o mais devagar possível, não
podendo colocar os pés no chão ou retroceder no percurso. Foi assim na festa
realizada pelo Club Athletico Fluminense em maio de 1886, quando, no quarto
páreo, “corrida de perde-ganha, em velocípedes; depois de engraçados episódios
perdeu, isto é, ganhou o Sr. Campos Júnior”.
As
provas naquele clube duraram até 1887, quando foi decretada sua falência.
Sócios ligados ao ciclismo formam então o Veloce-Club, primeiro dedicado
exclusivamente ao esporte. Como o Veloce não tinha sede própria, as corridas
inaugurais aconteceram na raia do Rio Cricket Club, na Rua Payssandu, bairro do
Flamengo, pela segunda e última vez com a presença de Suas Altezas Imperiais.
Quando
o Rio se torna a capital da República – especialmente a partir do final de 1892
–, as bicicletas e o ciclismo vivem um período de prosperidade. Era de
interesse dos republicanos mostrar que o Rio era uma capital moderna, e por
isso o apoio ao mais moderno dos esportes da época: o ciclismo. Nesse período,
surgem os primeiros espaços dedicados exclusivamente a competições de
bicicletas: os velódromos. O primeiro e mais importante foi o Vellodromo
Nacional, situado na Rua do Lavradio, centro do Rio.
Inaugurado em 1892, tinha infraestrutura completa para o esporte: luz elétrica (grande novidade da época), casa de apostas e um mecânico contratado na Europa para a manutenção e os reparos nas bicicletas. Além disso, oferecia serviço de aluguel e lições de ciclismo com um professor que prometia ensinar a andar de bicicleta em apenas oito lições.
As
corridas no Bellodromo eram um sucesso. Durante muito tempo, foram realizadas
diariamente. Um ano depois surgia o Bellodromo Guanabara, no bairro de
Botafogo, e em 1897, o Frontão Velocipédico Fluminense. As corridas eram
marcadas por acontecimentos inusitados. Assim como na maioria das modalidades
da época, um dos atrativos do ciclismo eram as apostas. Com elas vinham alguns
problemas, os chamados “tribofes”: confusões entre torcedores nas corridas.
Trapaças
e discussões eram frequentes, e a presença da polícia era requisitada para
conter os ânimos dos mais agressivos. Torcedores (e apostadores), digamos,
menos éticos, não tinham pudor em esticar ou lançar suas bengalas em direção às
rodas das bicicletas para derrubar os ciclistas nas corridas do Velódromo
Nacional, em 1893.
O apogeu dos velódromos era apenas um dos indícios do desenvolvimento do
esporte. Ao mesmo tempo, surgiram clubes e associações que, além de participar
das competições, organizavam passeios ciclísticos pela cidade. Entre eles
destacavam-se o Velo Club (de 1897), o Bicyclette Club (de 1897) e o Club
Athletico Major Dias Jacaré (de 1901).
As
competições eram disputadas não só nos velódromos, mas também nos parques
públicos. A Praça da República e a Quinta da Boa Vista eram locais constantes
de corridas e passeios. Também se promoviam excursões aos então distantes
extremos da cidade, como a Gávea e Copacabana.
As
competições tinham se desenvolvido bastante. Os ciclistas exploravam cada vez
mais os limites de seus corpos e de suas máquinas. A maioria das provas ainda
era de curta distância, mas surgiam também desafios de 10, 16 e até de 30
quilômetros. As premiações também mudaram: agora predominavam as medalhas e, em
ocasiões especiais, como datas comemorativas, objetos de arte ou dinheiro.
As
corridas femininas não chegaram a emplacar. A presença das mulheres era
exaltada apenas nas arquibancadas e nos camarotes, com “suas belas toilettes
que abrilhantavam o espetáculo”. Mesmo não competindo, elas também pedalavam –
o passeio de bicicleta era uma oportunidade para mostrarem sua graça,
delicadeza e elegância.
No
ano de 1897, várias lojas já importavam as principais marcas europeias e
norte-americanas, como Clement, Peugeot e Monarch. Adquirir uma bicicleta ainda
era caro, porém bem mais fácil do que nos tempos do Império. A maioria das
lojas oferecia o serviço de vendas a prestações, por consórcio. Paralelamente
crescia também o mercado de bicicletas usadas, mais acessíveis, contribuindo para
que pessoas de camadas sociais mais baixas pudessem ter acesso ao que antes era
um luxo. Outra maneira barata de adquirir uma bicicleta dependia da sorte:
adquirir um bilhete das famosas “ações entre amigos”, rifas que eram extraídas
pelos números das loterias da época.
O
ciclismo não chegou a ser um esporte popular no Brasil, mas durante algumas
décadas foi um espetáculo que trouxe para o Rio uma das últimas invenções
europeias. Em pouco tempo, a bicicleta deixaria de ser novidade e a cidade se acostumaria
a ver suas ruas lotadas de “cavalos de ferro”.
“Os que não aprendem com a História vão cometer sempre os mesmos
erros.”
Bibliografia:
PREFEITURA
DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Ciclovias cariocas. Rio de Janeiro: Instituto
Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2005.
Saiba
mais em WEBER, Eugene. “Le Petit Reine”. In: França
Fin de Siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
2 comentários:
Ótimo texto. Parabéns ao autor.
Verdade, Vanilson. E eu sou fã de ciclismo, um dos desportos em que o/a atleta enfrenta a profunda solidão de escalar montanhas pedalada a pedalada em pleno esforço ou os contrarrelógios ainda mais solitários na luta contra o tempo.
Abraços Gloriosos.
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