por TEIXEIRA MENDES | Cronista, crítico e historiador
desportivo
in https://bonifacio.net.br | 31.10.2020
«O futebol brasileiro possui a
vocação para a consagração pela beleza, pela exuberância daquilo que oferece ao
olhar contemplativo um instante descomunal e sublime. Garrincha é a encarnação
do gênio estético do Povo. Um homem barroco, definitivo e plástico. Garrincha é
o Aleijadinho da finta, o Antônio Francisco Lisboa da jogada entusiasmada, o
brasileiro que reverbera a sinuosidade perfeita da expressão dramática.
Em síntese: o maior driblador da história esculpiu com
gestos de perna, talhou e inventou tensões estéticas com os pés – Garrincha é o
segundo nome do Barroco Mineiro. Para Mário de Andrade, a originalidade de
Aleijadinho foi o primeiro gesto de independência da antiga colônia de
Portugal. Ao seu modo, Garrincha proclamou a Independência Brasileira ao
inventar a alegria do povo, o sorriso das massas, o gargalhar das multidões.
Antes de Garrincha, o futebol era uma Idade Média. O
gramado era o pasto perfeito para o tédio bovino dos acontecimentos triviais.
Além de gênio plástico, Garrincha foi um Copérnico e um Galileu da bola. O
nosso Mané tirou o mundo do sedentarismo confortável e monástico e, ao mesmo
tempo, fez com que todos percebessem que o sol estava no lugar errado – o
craque colocava o mundo em movimento. Antes de Garrincha, a bola ainda não
havia se tornado bola. A bola possuía a coerência geométrica dos objetos
esféricos; contudo, antes dos pés sublimes de Mané, a pelota ainda não havia
nascido para si mesma.
Quando o craque nasceu, a medicina pronunciou o que
parecia ser uma triste e desoladora sentença: o menino Manoel Francisco dos
Santos não seria capaz de andar, de exercer sobre o mundo um único e modesto
passo. Para a razão, o craque era um aleijado. Dito e feito. Mané jamais
caminhou sobre o mundo. Com seu nome de Pássaro, o camisa 7 foi para o futebol
um ser mitológico – possuía asas e ostentava pernas retorcidas! Garrincha
era um curupira que aprendeu a voar! O verdadeiro mito, um folclore autêntico,
uma lenda brasileira!
Insisto, leitor: Garrincha foi o inventor do futebol
Barroco. O craque dos dribles infinitos tornou o estádio do Maracanã um templo,
o lugar da fé e da devoção popular, onde a geral e a arquibancada se convertiam
na igreja de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto. A fé que o gênio despertava
era, entretanto, uma fé alegre – um tipo de crença que destoa da fé dos tempos
atuais. Na capital do Brasil, não por acaso, um majestoso templo foi erguido em
sua homenagem – o estádio Mané Garrincha!
Garrincha era a encarnação da alegria do Povo, o inventor da gargalhada das massas. No gramado e espontaneamente, como uma metamorfose alada, com o mistério do casulo convertido em aquarela voadora, o artista desfilava um repertório imodesto de ilusões fantásticas. Da geral, como numa procissão inútil e fadada ao fracasso, o povo tentava acompanhar a sequência de milagres inventados pelas arrancadas do portentoso driblador – o maior dos milagres era a alegria do Povo!
No patrimônio eterno da sagrada memória dos feitos
impossíveis, consta dos fatos inesquecíveis, o acontecimento dos ‘’três minutos
mais incríveis da história do futebol’’. Repito: Garrincha ensina a crer pelo
incrível, inspira um tipo de fé na alegria. Contra o chamado ‘’futebol
científico’’ praticado pelos soviéticos, nosso Mané iniciava a trinca eterna
dos minutos futebolísticos. Gavril Katchalin, o técnico da URSS, era uma
espécie de engenheiro da computação. O estrategista russo possuía um grande
banco de dados, um imenso pátio de informações técnicas e relatórios completos
sobre os seus adversários. Outra vez, diante do Gênio barroco, tudo se
converteria num esforço inútil e débil na tentativa de marcar o Sátiro
Brasileiro.
Por ironia da numerologia da bola, na Copa de 1958, o
camisa 7 vestiu a 11. A maior ironia de todos os tempos, todavia, ainda
esperava para acontecer. Redimindo a blasfêmia de ter um Garrincha no banco, o
técnico Vicente Feola deu a titularidade ao Gênio Brasileiro. Iniciada a
partida, Garrincha recebe a bola e avança pela direita e, com a leveza
irresponsável da probabilidade negativa da graça divina, o ponta direita
driblou João Kuznetsov. Pobre russo, pobre João. Kuznetsov caiu de forma
patética no chão. O marcador russo parecia um devoto dobrado diante da imagem
do Santo Milagreiro. Desmoralizado o conjunto defensivo do adversário, o craque
fez a bola explodir na trave. Yashin, aclamado melhor goleiro do mundo, sentia
no peito a impotência retumbante de todos os mortais.
Uma segunda explosão foi ouvida. Era Pelé quem
implodia o travessão do Aranha Negra. A pressão absoluta, por fim, resultaria
em gol. Na sequência, Didi faria um passe magistral e, com a precisão dos seres
impiedosos, o artilheiro Vavá abriria o placar. A jogada que deu início ao
primeiro gol brasileiro na partida nascia das possibilidades tortas das penas
de Garrincha. Sofrendo de labirintite, a defesa adversária sabia da inocuidade
de seus esforços. O Craque havia desnorteado a defesa do futebol científico. Um
time inteiro despencava tonto de humilhação. Tudo que aconteceu depois era como
um eco e um reflexo da ilusão criadora do Pássaro Driblador. O trio de minutos
eternos da história do futebol era mais uma escultura do Aleijadinho dos
gramados.
Como qualquer herói, como qualquer ser forjado pelo
princípio de diferenciação, o Craque possuía seu ponto de vulnerabilidade. Como
um Aquiles do futebol brasileiro, a anatomia dos grandes mitos fez do joelho de
Garrincha um calcanhar. O calcanhar de Aquiles, o joelho do Craque. É
impossível que em nossa língua ainda não tenhamos inventado uma expressão, uma
frase para traduzir o ponto fraco de um ser invencível, implacável e heroico –
o joelho de Garrincha. Talvez o nosso idioma também tenha caído nas miragens
produzidas pelo Pássaro, nas ilusões fabricadas pela ludibriosa cinesia do
Craque.
Consumido pela dor, Garrincha teve de abandonar os
gramados. O joelho, o ponto de vulnerabilidade do Gênio, foi a estação terminal
de sua trajetória nos campos. E foi assim, derrotado em seu ponto fraco, que o
Mané abandonou o futebol. Com razão, um grande poeta havia afirmado: as tristezas voltam, e não há outro
Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho. O
Brasil atual, tornado triste e desesperado, precisa de um novo Garrincha. O
Brasil precisa de alguém que possa nutrir a dimensão onírica de seu Povo. O
Povo Brasileiro precisa de alguém que mate a sua fome de alegria e de sonho.»
Fonte: https://bonifacio.net.br/garrincha-o-inventor-do-futebol-barroco/
3 comentários:
Que texto lindo!
O grande poeta, se não me engano é o Carlos Drumond de Andrade, definiu com precisão o que foi o Garrincha para o povo brasileiro: " Alegria do Povo".
Eu penso que Garrincha deveria ser mais valorizado pelo que realizou no futebol brasileiro, mas as razões dele ser sempre preterido em relação a outros jogadores nós já sabemos. Uma pena que seja assim.
O comentário anterior foi meu! Abs e SB!
Sim, creio que foi Carlos Drummond de Andrade que assim o apelidou. A menorização de Garrincha para favorecer o engrandecimento do Santos e de Pelé (que não sendo de clube do Rio não fazia rivalidade com o Flamengo, e a mídia carioca tratou de diminuir Garrincha). A estupidez não tem tamanho e Pelé nunca precisou dessa proteção para mostrar a sua grandeza. Por outro lado, o Botafogo foi muito mais importante do que Santos no tricampenato mundial, o Flamengo não teve protagonismo e portanto havia que diminuir também o Botafogo. Mas a história registra e não perdoa.
Abraços Gloriosos.
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