Autor desconhecido (escrito durante o campeonato carioca 2006)I
Na Grécia Antiga, Diógenes de Sínope morava em um barril e vagava pelas ruas com uma lanterna acesa, em plena luz do dia, à procura de um homem que fosse íntegro de caráter. É considerado o maior expoente do Cinismo, escola filosófica fundada por Antístenes de Atenas, discípulo de Sócrates e mestre de Diógenes, e caracterizada pelo desprendimento dos valores ligados à matéria e pela busca da auto-suficiência, o que, com o passar do tempo, erroneamente consagrou à palavra cinismo a conotação que tem atualmente, de indiferença e insensibilidade ao sentir e ao sofrer alheios.
Das muitas histórias que protagonizou, talvez a mais famosa seja a que relata seu encontro com o conquistador macedônio Alexandre, o Grande. Reza a lenda que estava Diógenes a banhar-se da luz natural do dia, quando Alexandre dele se aproximou e, eclipsando o Sol, lhe dirigiu as seguintes palavras: “Sábio Diógenes, me diz o que desejas e teu o farei antes do entardecer”. Descrente do poder que buscava ostentar o conquistador, Diógenes lhe respondeu, com imediata simplicidade: “Máximo general, por certo tens o poder de me dar o que a ti eu pedir, em tempo menor que o estimado. Entretanto, tudo o que peço (esquivando-se da fresta de sombra provocada pela presença de seu interlocutor) é que não tires de mim aquilo que não me podes dar”.
II
Inicialmente prevista para trazer ao leitor a análise das partidas mais belas de 2005, esta crônica mudou seu curso inesperadamente. Um leitor (enfim consegui um) que me escreveu recentemente apontou diversas falhas ocorridas na análise da partida escolhida por mim para ilustrar a crônica anterior à que ora escrevo (intitulada Semente do Xadrez). Na mais gritante delas, exclamei para um lance das brancas após o qual o computador dava ampla vantagem para as pretas.
Reconhecendo a relevância da pluralidade e seguindo na intenção de fazer desta página uma tribuna livre, convidei meu crítico a publicar o texto a mim enviado. O mesmo fora redigido de forma clara e, em minha opinião, só enriqueceria esta coluna. Infelizmente, não pude convencê-lo a mudar de idéia e meu convite foi declinado. Mas já era tarde para retroceder. A crítica sofrida me fez ponderar bastante sobre o tema abordado nesta crônica, e afirmo que, em certa medida, é dela que a mesma se originou.
Há tempos observo a gradual sucumbência do homem diante da máquina em todos os segmentos da vida e, especialmente, no esporte que praticamos. Primeiramente, os computadores se igualaram em desempenho aos melhores jogadores do mundo. Hoje, já nem se fala mais na possibilidade de vitória para o ser humano, em se tratando de um confronto com os melhores chips disponíveis no mercado. Para se ter uma idéia, na estratosfera do xadrez já não é mais possível obter bons resultados em torneios sem conhecer a fundo a “mente” dos programas de computador, como deu a entender o super-GM Viswanathan Anand, quando afirmou, em recente entrevista ao site
www.chessbase.com, que estava “instalando” o Fritz 9.0 em sua memória.
As análises das partidas, antes extensas, se tornaram verdadeiras bíblias, com sub-variantes para todos os lados que os softwares apontam. Entender o que foi jogado em uma partida de xadrez se tornou um verdadeiro desafio para os especialistas e uma impossibilidade para os leigos no assunto. Talvez deste hermetismo, aliado ao fato de não ser visível ao público a constante ebulição interna dos atletas durante uma partida, derive a crença popular de que o xadrez é um jogo monótono, quando nós que o praticamos sabemos o quanto o movimento das peças pode, reciprocamente, movimentar nossas emoções.
Entretanto, alheios a estas emoções, os computadores não se limitam a ignorar nossa autoria nas partidas que analisam. Indo além, fazem desta ignorância parâmetro de análises tecnicamente precisas (por meio da qual desenvolvemos nosso aprendizado, enfatizo antes de passar ao leitor a falsa expectativa de que sou contrário ao uso dos computadores como ferramentas de suporte, imprescindíveis hoje, ao nosso aprimoramento técnico), mas humanamente turvas e incompletas.
Como disse, já faz tempo observo o declínio humano diante do poderio crescente das máquinas. E, sem saber que o fazia, construía em silêncio esta resposta, que ora lhe rompe e lhe dá significado, e que nos resgata o espaço cedido ao Fritz 9.0 e seus afins digitais. Assim, recorrendo à simplicidade profunda de Diógenes, que com seu bom cinismo quebrou a empáfia de Alexandre, afirmo aos caros leitores: - É chegada a hora de dar ao “Friteco” uma lição sobre como analisar humanamente partidas de xadrez.
III
Para tanto, estabelecerei dois paradigmas necessários, dentre os quais começo pelo que considero mais simples.
Certa vez, em conversa com o Fabrício Hupp, perguntei-lhe qual a diferença que ele percebia entre um bom software de xadrez e um programa top de linha. Com a típica serenidade com a qual tenta ocultar o animal feroz que é sobre o tabuleiro, ele respondeu: é como a diferença entre lutar contra um gigante de 20 metros e um de 21. Com esta mesma metáfora, estabeleço o primeiro paradigma: o de justificar porque utilizarei o Chessmaster 7.0, e não o Fritz 9.0, como anunciado acima, para contra-analisar a partida que ilustra esta crônica. (No caso, a diferença entre os gigantes pode até ser de mais de 1 metro, mas a supremacia técnica de ambos sobre mim é tão evidente que pouco importa com qual dos dois discutirei linhas de jogo).
O segundo paradigma, pelo qual inicio a discussão que terei com o [em referência à figura criada para humanizar a máquina] barbudo eletrônico, se propõe a desmistificar o conflito-tema desta crônica. Jamais, desde os tempos do Kaissa (primeiro computador campeão mundial em sua categoria, em 1974), o homem jogou contra a máquina. Tal impossível duelo não é outra coisa que não uma forma travestida da ilusão humana em triunfar sobre a perfeição, representada pelo computador: um “ser” construído para ser infalível, ou, quando pouco, para andar próximo à infalibilidade.
Assim, derrotar o computador significa para nós, em certa medida, ser mais-que-perfeito, ou, se preferirem, mais real que o próprio rei. Todavia, esta primeira roupagem sob a qual apresento o problema ainda o caracteriza muito superficialmente. A questão em si é muito mais profunda e é a estes níveis subterrâneos que quero descer. Mais do que um ideal de perfeição, o computador simboliza o trabalho coletivo contra o esforço solitário, a espécie contra o indivíduo, no contínuo processo evolutivo de ambos.
Porém, alheia às mazelas de cada um, a evolução privilegia sempre a espécie, sem que a contrapartida alcance a cada indivíduo isoladamente, senão aos mais capacitados para o desempenho de dada atividade, por meio da qual se compete. Daí porque, mais do que para a evolução da espécie (considerando que esta não depende nem de nossos esforços em lhe dar sentido, nem do que sonha nossa vã filosofia), estes indivíduos são importantes para os seus pares. Pois personificam uma falha no rito opressor da espécie, promovem a recriação de valores e estabelecem uma ruptura temporal.
Assim foi quando Bobby Fischer implodiu a muralha soviética e se sagrou campeão mundial, bem como foi da mesma natureza a frustração causada pela derrota de Garry Kasparov em seu rematch contra o computador Deep Blue. Aliás, se quiserem um exemplo caseiro, e considerando que para os atuais padrões do xadrez capixaba o tetracampeão Jorge Bittencourt pode ser equiparado a uma máquina quase imbatível, o mesmo ocorreu quando Tenilson Alves surfou a pororoca (vide crônica “A Pororoca do Tenilson”, nesta mesma página).
Outra perspectiva sobre a qual considero importante abordar esta mesma questão é a da fragmentação que uma análise feita em computador opera na alma de cada partida. Desconsiderando o elemento humano, a máquina tenta suprir logicamente a base de dados que lhe falta: nossas emoções, lembranças, vitórias e frustrações pessoais. Vale dizer, estas lacunas de programação que só a diversidade de fatores que compõe nossas vidas, e, amiúde, uma partida de xadrez, pode preencher. É sob esta perspectiva humana, mistura de técnica, emoções e uns quantos parangolés, que baseio a análise a seguir.
IV
Bonfim, Hudson x Knoblauch, Walter – Final do CEAX 2005 – A40
1. d4 Cf6; 2. c4 e6; 3. a3 c6; 4. Cc3 d5; 5. Bg5 Be7; 6. e3 b6; 7. cxd5 cxd5; 8. Cf3 O-O; 9. Bd3 Cbd7; 10. Tc1 Bb7; 11. O-O Tc8
Após este lance, que anuncia o meio-jogo, o Chessmaster acusa vantagem de +0.41, com breve pico de +0.50, indicando, a seguir, 12. Db3.
12. Cb5!...
Eis a primeira divergência! Com um avarento +0.02, o computador procura desqualificar este lance, que traz em si profunda identificação com seu autor.
Conheci o Hudson no início de 2003, durante o 1º Aberto do Parque das Gaivotas (atual CEAX de Vila Velha), quando jogamos pela última rodada do torneio. Cansado pelo intenso ritmo da estréia (aquela fora minha primeira competição com mais de dois participantes), confesso que se meu adversário me propusesse empate logo nos primeiros movimentos da partida, eu pensaria seriamente em aceitá-lo. Entretanto, quando o vi cravar sobre a mesa, disfarçado de relógio, o escudo do Botafogo, logo soube que aquela partida não terminaria antes dos 48 do segundo tempo, como sói acontecer àquele time.
E, de fato, não só conheci o estilo aguerrido de meu oponente, como, durante a partida, percebi a presença de vultos ariscos se movendo constantemente entre as peças, que, juro ao leitor, acredito eram de antigos craques do alvinegro carioca. Didi, Mané, Quarentinha, todos estavam ali correndo, driblando sobre a grama quadriculada do tabuleiro, me deixando completamente zonzo diante de um sem fim de escaramuças táticas habilmente urdidas contra mim. É assim que este cavalo Canhoteiro em b5 começa a dar vida ao jogo, caindo de alguma ponta esquerda celestial e seguindo em direção à linha de fundo do tabuleiro.
12. ... a6; 13. Ca7!!...
Junto à bandeira de córner, como fora no princípio de tudo, antes dos brucutus da bola lotearem entre si o campo de jogo. Já não importa mais ao condutor das brancas vitória outra que não dentro da tradição botafoguense de, saindo em desvantagem, depositar até a última gota de sangue em busca da reação. É isto que ele pretende, ainda que não o perceba, com esta entrega inconsciente de cavalo, para a qual o computador, que nunca viu o Botafogo jogar, registra um pífio -1.35. Pífio é ele de não ter um coração alvinegro batendo no peito!
13. ... Txc1; 14. Dxc1 Da8; 15. Cb5 axb5; 16. Bxb5 Dc8; 17. Dxc8 Bxc8; 18. Ce5 h6; 19. Cxd7 Bxd7; 20. Bxf6 Bxb5; 21. Bxe7 Te8; 22. Bb4 Bxf1; 23. Rxf1 Tc8; 24. Bc3 Rf8
Faz-se necessário o registro: exceção feita a 18. ... h6, do 12º ao 23º lances Walter jogou exatos 11 lances de computador. Seu último lance, porém, embora não possa ser considerado ruim, indica a presença de novos fatores em seu comportamento. Café, tabaco, a emoção pela vitória que se aproxima e o nervosismo pela queda contínua e angustiante do tempo são alguns deles.
A partida começa a ganhar contornos eminentemente humanos, tornando imprecisos não só os movimentos das peças sobre o tabuleiro, mas, sobretudo, a capacidade de análise do computador. Se preferirem por um poema, então digo que “Navegar é preciso / Viver não é preciso”, sobretudo quando o termo “preciso” significa “exato”, como quis o escritor F. Pessoa ao colocá-lo no papel, e não “indispensável”, como muitos pensam. E, depois de certo tempo sob a constante pressão de mover a peça certa para o lugar certo, jogar xadrez, definitivamente, não é nem um pouco preciso. Além disto, do outro lado do tabuleiro, Hudson encontrou a melhor estratégia de defesa, mantendo seu bispo em lugar da torre. Ou será que, a pretexto de se defender, ele prepara novo ataque contra seu adversário?
25. Re2 f5
Walter resolve partir com tudo para o campo contrário. Ao que o guerreiro da Serra responderá no melhor estilo Mané Garrincha...
26. Rf3…
Um pra lá...
26. ... Rf7; 27. Re2 g5; 28. Rd2…
Dois pra cá.
E, com esta ginga de corpo, Hudson se decide a atacar pelo flanco em que concentra suas forças, e que escolhera desde o início da partida, ao lançar seu cavalo Canhoteiro ao ataque.
28. ... Rg6; 29. Bb4!!...
Obviamente, o computador dá a este lance das brancas a mesma desvantagem (-0.91) que daria para qualquer outro. O que ele não percebe, porém, é que Hudson está construindo uma verdadeira ode ao seu amado Botafogo!!
No final dos anos 70 e início dos 80, surgiu na lateral-direita do alvinegro carioca um jogador que fez história no clube. Seu nome, Perivaldo. Como um búfalo em disparada, o Peri da Pituba (apelido que ganhou por sua assídua frequência a um certo inferninho daquele bairro da capital baiana), costumava partir com a bola dominada do meio-campo e só parava a poucos metros do bico da grande área, quando, à procura de um companheiro bem colocado para marcar o gol, estufava o peito e alçava a bola... na geral do estádio (seu preferido, o Maracanã). Lembro-me bem de um colega de escola que, em dias de jogos importantes do Botafogo, ia para o fundo da sala de aula e ligava um radinho de pilha, bem baixinho, para a professora não escutar. De onde eu estava, entretanto, dava sempre para ouvi-lo dar vazão a sua paixão pelo clube, sobretudo quando, empolgado com as arrancadas do Perivaldo, ele o incentivava a conduzir a bola: “Vai Peri! Vai Peri!”, dizia ele. Todavia, quando o lateral alvinegro chegava à linha de fundo e, executando a jogada que o tornou imortal, fazia a alegria dos geraldinos (que se amontoavam atrás da meta atacada pelo Botafogo em busca das bolas cruzadas pelo Perivaldo), dava para ver meu colega franzir o rosto e fechar os olhos, antes de dizer, desapontado: “Não Peri...”.
Pois bem, com este bispo aí em b4, Hudson inicia uma sequência que dará à partida o toque de dramaticidade que falta para legitimá-la obra digna do glorioso alvinegro. E, fazendo coro com o meu colega de escola, que jamais perdia a fé nas arrancadas do Peri da Pituba, eu digo para este botafoguense valente: “Vai Peri! Vai Peri!”.
29. ... h5!
Em resposta, Walter libera todas as suas linhas de homens!
30. Bd6 h4; 31. a4 Tc6; 32. Be7 Rh5; 33. b4 g4; 34. b5 Tc8; 35. a5 bxa5; 36. Bd6 a4; 37. b6 a3; 38. Bxa3 Tb8; 39. Bc5 Rg6
Percebendo que não há como progredir sem resolver o impasse criado na ala da dama, Walter migra com seu rei para lá. A esta altura, seus óculos já lhe incomodavam tanto sobre os olhos quanto sobre a mesa de jogo, o que talvez justifique suas constantes idas e vindas entre aqueles e esta.
40. Rc3 Rf7; 41. Rb4 Re8; 42. Rb5 Rd7; 43. Bb4...
Após este lance, o computador registra absoluta igualdade entre os jogadores: 0.00.
43. ... Tb7; 44. Ra6 Rc6; 45. Bc5 Tb8
E mesmo com a vantagem já pendendo levemente para as brancas (0.34), a partida continua empatada. (Não dá para promover o peão sem passar por b7, casa fraca do bispo das brancas). Mas eis que...
46. Ra5??...
Não Peri... Fazendo valer a máxima de que “há coisas que só acontecem ao Botafogo”, Hudson entrega pela segunda vez a partida.
46. ... Ta8!
Com ou sem o par de óculos, Walter retoma o controle do jogo, para não mais perdê-lo. A propósito, sabendo da amizade que os une fora do tabuleiro, não hesito em dizer deste lance, do ponto de vista de quem o jogou: “Meu coração tem um sereno jeito / E as minhas mãos um golpe duro e presto / De tal maneira, que depois de feito / Desencontrado, eu mesmo me contesto / Se trago as mãos distantes do meu peito, é que há distância entre intenção e gesto / E se meu coração nas mãos estreito, me assombra a súbita impressão do incesto / Quando me encontro no calor da luta, ostento a aguda empunhadura à proa / Mas o meu peito se desabotoa / E se a sentença se anuncia, abrupta / Mais que depressa a mão, cega, executa / Pois que, senão, o coração perdoa”.
47. Rb4 Ta2; 48. Be7 Txf2; 49. Bxh4 Txg2; 50. Bg3 Rxb6; 51. Rc3 Rc6; 52. Bf4 Tg1; 53. Rd2 Rb5; 54. Rc3 Ta1; 55. Bg3 Ta3+; 56. Rd2 Rc4; 57. Re2 Ta2+; 58. Rf1...
Prestes a levar uma Knoblauchada, Hudson tenta resistir até o fim. Parece querer dizer a si mesmo algo que o computador jamais compreenderá, em seus frios -8.96 de vantagem para as pretas: “Tu és o Glorioso, não podes perder, perder pra ninguém!”.
58. ... Rd3; 59. Bf2 Re4; 60. Rg2! e5!
Sessenta lances de luta! Completamente esgotados, debruçados em profundas meditações e humanas incertezas, vejo estes dois guerreiros se combaterem e se irmanarem numa mesma fé-arte-ciência-insanidade, chamada xadrez. A areia que escorre pela ampulheta dá a medida do tempo que ainda lhes resta, da vida que ainda lhes resta sobre o tabuleiro. Perdido em milhões de cálculos que, ao final, lhe darão a soma de sua própria frieza, o computador não encontra o caminho que leva à humanidade. Por isto, fecho o programa e analiso sozinho o final desta partida. O desfecho da análise, porém, não aponta para um vencedor. Ao contrário, paralisa a ação e mantém os seus protagonistas eternamente a jogá-la, na memória do tempo...
61. dxe5 Rxe5; 62. Rg3 Re4; 63. Bg1 Te2
0-1. Ou melhor, 1-1, aos 48 do segundo tempo, gol de Perivaldo!
(Colaboração na escolha do título: Leonardo Fernandes; Trecho extraído da música “Fado Tropical”, de Chico Buarque; Hino do Botafogo, por Lamartine Babo)Fonte
www.fesx.com.br