sexta-feira, 31 de julho de 2009

Resistência Coral – uma torcida diferente

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Em homenagem a uma torcida desportivamente pacífica e socialmente interventora, abro um parêntesis no Mundo Botafogo e conto hoje a história do Ferroviário Atlético Clube e da Torcida Resistência Coral – que faz hoje quatro anos.

O Ferroviário Atlético Clube é um exemplo paradigmático da passagem de clubes dominados por gente rica no início do século XIX para clubes em que o futebol foi democratizado e popularizado, porque a sua fundação resultou da iniciativa de empregados da ‘Rede de Viação Cearense’ (RVC, depois ‘Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima’, RFFSA, e agora ‘Companhia Ferroviária do Nordeste’, CFN).

Em 1930, a RVC instalou oficinas de manutenção de locomotivas, carros e vagões na então distante região do Urubu, que corresponde à antiga Estrada do Urubu, importante via de comunicação à época. Naquela área foi-se concentrando uma população humilde fugindo das secas, da fome e dos latifundiários do sertão. Tornou-se uma região reservatório de mão-de-obra, através da instalação de várias indústrias, surgindo favelas e bairros operários muito menosprezados pelos poderes públicos.

Em 1933, com vista a recuperar mais locomotivas, carros e vagões, a RVC determinou a realização de horas extraordinárias nas oficinas, entre as 18 e as 20 horas. Como o turno normal encerrava às 16h25m, os operários mais jovens que moravam longe aproveitaram o intervalo para jogarem futebol. Armados de pás e enxadas limparam um terreno vazio dentro das oficinas, fizeram um campo e compraram uma bola, já que as traves foram feitas a partir de tubos retirados de caldeiras de velhas locomotivas.

As ‘peladas’ tornaram-se um sucesso e a 9 de Maio de 1933 nasceu o Ferroviário, forjado pelos trabalhadores da RVC. Em 1938 o clube acedeu à primeira divisão cearense (foto abaixo).

Ferroviário: em pé - José Severiano Almeida (diretor), Oscar Carioca, Procópio, Adelzirio, Dudu, Bitonho, Zeca Pinto (atacantes), Valdemar Caracas (treinador) e Alberto Gaspar de Oliveira (diretor); agachados - Baiano, Zimba, Boinha (médios), Zé Felix e Popó (zagueiros); Sentados - Gumercindo e Puxa-faca (goleiros)

Desde aí o Ferroviário foi diversas vezes campeão e vice campeão do Ceará:

· Campeão: 1945, 1950, 1952, 1968 (invicto), 1970, 1979, 1988, 1994, 1995.
· Vice-campeão: 1940, 1942, 1946, 1947, 1949, 1951, 1953, 1955, 1960, 1963, 1967, 1969, 1982, 1989, 1996, 1998, 2003.

A tradição de equipa operária manteve-se e as movimentações operárias também. Nos anos sessenta (foto abaixo), durante a ditadura, os operários lutaram por dias melhores e a favor da democracia em diversas ocasiões.


O Ferroviário é um clube que possui diversas torcidas organizadas, sendo a Ultras Resistência Coral uma torcida recente e muito interventiva. A torcida foi fundada em 31 de Julho de 2005 por torcedores anarquistas e comunistas e chama a atenção nos estádios devido à sua politização, muito evidente num dos principais lemas utilizados:

Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes


A Resistência Coral se define como uma torcida organizada Ultras, semelhante às que existem no futebol europeu. No caso concreto, trata-se de uma torcida Ultras de esquerda, anti-fascista e anti-racista. O Manifesto de lançamento da torcida proclamava o seguinte:

"Não enxergamos os torcedores de outros times como potenciais inimigos, já que a composição social das torcidas no Brasil é principalmente de trabalhadores ou jovens filhos de trabalhadores."

Mascote da torcida


“A ULTRAS RESISTÊNCIA CORAL nasce da fundição da luta da classe operária com sua paixão pelo futebol, precisamente pelo Ferroviário Atlético Clube. Lutamos arduamente contra todas as mazelas do capitalismo dentro e fora dos estádios. Nossa torcida não é de mero(a)s espectadore(a)s de partidas de futebol e da luta de classes, somos expressão do que há de mais ativo nas arquibancadas e na luta operária.” Eis mais um dos lemas apaixonados da Resistência Coral:

Nada diminui nossa paixão incendiária! Ferroviário, orgulho da classe operária!

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A estreia da Resistência nas arquibancadas foi no primeiro jogo coral do Campeonato Brasileiro de 2005, quando o Ferroviário venceu o Serrano (PE) pelo placar de 5x2.

Ferroviário 5x2 Serrano (PE)
Gols: Moré (2), Júnior Cearense, Anderson e Eli (Ferroviário); Claudinho e Rogério (Serrano).
Competição: Campeonato Brasileiro da Série C 2005
Data: 31/07/2005
Estádio: Presidente Vargas (Fortaleza-CE)
Público: 2.964 torcedores.
Preliminar: Ferroviário 11x1 Floresta (Sub/18)

A Resistência Coral é uma torcida que mostra ser possível organizar torcidas interventivas e politizadas desportivamente. Que é possível não deixar os créditos da paixão desportiva por mãos alheias e influenciar as políticas do clube.

Por acréscimo a este posicionamento sui generis da Resistência Coral também se identifica uma forte componente político-ideológica, através de posições de defesa ou de condenação de determinadas ocorrências. Veja-se a simbologia mais importante das posições políticas dessa torcida:

Contra a política das federações cearense e brasileira de futebol

Contra o fascismo


Contra o nazismo


Contra a violência policial




Contra o racismo


Contra o machismo

E, finalmente, a Resistência Coral faz questão de identificar os seus ‘líderes ideológicos’. Curiosamente, a mescla dos políticos de esquerda é muito variada e contraditoriamente livre, fazendo-se apologia de correntes políticas muitas vezes opostas no terreno, designadamente as concepções muito divergentes que configuram as linhas anarquista e comunista e, dentro destes últimos, a apologia de linhas trotskistas e linhas leninistas que se opuseram em concreto. Até mesmo Che Guevara, considerado por alguns como uma espécie de comunista libertário, é mencionado. Curiosamente, a simbologia estalinista, outrora consagrada pela linha marxista-leninista politicamente mais dura, é ignorada pela simbologia da Resistência Coral, bem como a extensão maoísta da revolução proletária.

Eis os líderes gravados simbolicamente por esta torcida do Ferroviário Atlético Clube:

Bakunine, líder anarquista


Marx, líder comunista


Lenin ‘punk’


Lenin no estádio


Trotsky


Trotsky no estádio



Che Guevara, lenda de todas as juventudes


Finalmente, eis um dos cantos da Resistência Coral:

“Ultras Resistência Coral
Nasceu da luta social
Pra combater qualquer discriminação
No nosso futebol e em qualquer canto da nação
Não somos meros torcedores do Ferrão
Somos trabalhadores que engrandecem um país
Não admitindo qualquer forma de exclusão
Igual a que sofre o povão e o Ferrão
História bonita do nosso Ferroviário
Que surgiu da mão do operário
Tal qual a Resistência Coral
Na luta de classes somos revolucionários
A Ultras Resistência Coral
É hoje opção de nossas vidas
Nem paz entre as classes
Nem guerra entre as torcidas
A Ultras Resistência Coral
De esquerda, anti-racista, anti-capitalista
Nada diminui nossa paixão incendiária
Ferroviário orgulho da classe operária!”

Nota pós-artigo: Este artigo não tem nenhuma pretensão político-ideológica, mas o autor e editor do blogue, embora não sendo referencialmente marxista, leninista ou trotskista, não rejeita os manifestos anti-confederação brasileira de futebol (face às suas políticas), anti-fascismo, anti-nazismo, anti-violência policial, anti-racismo e anti-machismo.

Fontes principais
Acervo e pesquisa de Rui Moura
http://www.ferroviario.com.br/
http://www.resistenciacoral.rg3.net/.

11 comentários:

Leonel Ventorim disse...

O Tito é sempre esquecido...
O Rapaz do Chapéu

Ruy Moura disse...

Leonel, comparativamente a Bakunine, Marx, Lenine e Trotsky, e mesmo Mao-Tse-Tung, a doutrina do Tito nunca foi um forte referencial além fronteiras da antiga Iuguslávia. Aliás, o que constituía distinção teria sido a famosa autogestão tentada nas fábricas, mas que nunca funcionou realmente - apenas esporadicamente. Nem na Iuguslávia nem fora dela. Em Portugal, por exemplo, foi um fracasso, porque as massas trabalhadoras não estavam e não estão ainda preparadas para funções de gestão. Porque estes e outros regimes de partido único nunca operaram o desenvolvimento pessoal dos cidadãos, paulatinamente. Ao contrário, impuseram uma burocracia de esquerda absolutamente paralisante. E por isso a esquerda não evloluiu como teoricamente se esperava. Creio que a fusão de uma filosofia anarquista bakuniniana com o modelo social democrático originário do Kautsky teria dado muito melhores resultados...

Abraços Gloriosos!

Leonel Ventorim disse...

Kautsky? Não sei não...vou estudar melhor.
É claro que Tito teve erros, são públicos, mas foi o que mais se tentou aproximar de um verdadeiro socialismo. Bem mais do que por exemplo Mao, que tanto é falado ou ainda cultuado por alguns partidos.
Como dizes e bem algumas pessoas, não todas, não estavam preparadas para aquele modelo, que lembro, era experimental, não dogmático, não final. Tentativa falhada? sim e não.
É curioso como o comunismo oficial branqueou em Portugal livros sobre o Titoismo. Só encontras União Soviética, China e Cuba. Esclarecedor não? hehehe

Leonel.

Ruy Moura disse...

É assim em todo o mundo, Leonel. Na verdade nunca houve 'Titoismo' porque nunca se consolidou. Como, aliás, se procurou sempre fazer com o anarquismo, porque o Bakunine e o Marx eram inimigos e o anarquismo tinha que ser destruído segundo a cartilha dos 'socialistas'. O marxismo-leninismo e o maoísmo venceram mais claramente e fizeram a limpeza 'bibliográfica'. A 'limpeza' também foi feita aos milhões de pessoas massacradas pelo regime soviético e chinês; ao contrário, os judeus pagam filmes, documentários e campanhas para que persista na memória de todas as gerações o 'holocausto'. Ganha quem ganha. Por isso é que as histórias oficiais são pouco válidas. Por exemplo, famoso Nero 'incendiário e cruel' nunca foi incendiário nem cruel, mas um culto romano que a amava a cultura grega - e por isso os historiadores como Tácito e Suetónio inventaram tudo aquilo que ele não fez... Nos 30 anos seguintes à morte de Nero ele ainda era estimado pelos cidadãos e pelos políticos, mas depois foi estrategicamente condenado...

Mas haja o que houver, enquanto existirem as injustiças que grassam pelo mundo, a esquerda democrática terá sempre razão e será a única esperança de um mundo melhor!

Abraços Gloriosos!

Anónimo disse...

Muito Grato ao Rui Moura pelo espaço dado a RESISTENCIA CORAL e ao nosso FERRÃO!!!

Ruy Moura disse...

Não tens de quê, amigo. Sempre na luta!

Abraços Gloriosos!

Anónimo disse...

Meu Deus.
Vida neurônica em meio a um blog de futebol! Parabéns, Rui.
E ainda por cima num blog do meu time.
Para cúmulo, um pequeno debate político `a margem da imbecilização direitista do homem proposta pela gran mídia Brasileira e suas 4 ou 5 famílias eternamente (?) hegemônicas e seu novo sonho macartista.
Cuidade Rui e Leonel, com eventuais neo-procuradores de comedores de criancinhas.

Ruy Moura disse...

Obrigado, amigo.

O blogue tem por missão divulgar toda a vida do Botafogo nos seus inúmeros esportes, mas foi sempre variado e inclui assuntos vários, porque penso que entre o desporto e a cultura não existe rigorosamente nehuma barreira.

Abraços Gloriosos!

Ruy Moura disse...

O mundo ocidental, desde os alicerces lançados por Ronald Reagan e Margareth Tatcher, caminhou para um neo-liberalismo que impõe a opinião imbecil, a escolha imbecil e uma vida imbecil dependente de um mundo financeiro que quando os magnatas querem vai abaixo para limpar a concorrência. Volta depois rearrumado. E mais monopolista. E com mamis fossos sociais.

Do mundo moderno Reagan e Tatcher são as figuras de um moderno macartismo de índole financiera e implacável. Já nem é preciso procurar comedores de crianças, porque os especuladores que dominam o mundo já engoliram quer os pseudos-comedores quer as criancinhas.

Abraços Gloriosos.

Leo disse...

Muito bom! Parabéns pela pesquisa curti muito conhecer um pouco mais do futebol brasileiro

Ruy Moura disse...

Fico contente por o blogue continuar a servir o Botafogo e o futebol brasileiro para todos os nossos leitores. Obrigado!
Abraços Gloriosos.

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