domingo, 20 de novembro de 2011

O oráculo de ‘Caius’

por Arnaldo Bloch, jornal O Globo

A primeira vez que notei a figura de Caio Júnior foi na temporada que ele passou no Flamengo. Logo percebi, como num oráculo, que aquela franjinha caótica, a expressão compungida e o gestual nervoso — contrastando com uma delicadeza fidalgal, quase feminina, nas palavras — escondiam um ego monumental e uma histeria reprimida que, um dia, eclodiria, numa saga de ascensão e queda de fim deplorável.

Essa saga foi a campanha do Botafogo no Brasileirão, prestes a terminar, e que teve nele, Caio Júnior, seu protagonista trágico. A construção de “Caius”, herói alvinegro, iludiu não só os incautos das novas gerações ou os eternos profetas do autoengano, mas os botafoguenses mais escolados e céticos.

Eu mesmo, que vislumbrara o monstro no oráculo, esqueci-me daquelas visões terríveis e curvei-me diante de “Caius”, o líder ponderado, o estrategista moderno, o homem culto, que sabe falar, que sabe pensar, que tem caráter e sentimentos nobres. Um titã que vingaria o futebol do estigma do técnico-ogro, tirano, atravessador, desonesto, estuprador de almas, desintegrador de espíritos, desagregador do Olimpo desportivo, enfim, essas lendas que costumam habitar o imaginário alvinegro sempre que algo de bom parece acenar no fim do túnel sem fim da desesperança.

No início da saga, as palavras de “Caius” (só vou chamá-lo assim a partir deste parágrafo) eram só modéstia: o Botafogo, dizia ele, tinha como objetivo único classificar-se para a Libertadores de 2012. Mais tarde, lá pelo fim do primeiro turno, a palavra “título” surgiu no panorama discursivo, mas num tom de grande cautela e até de despiste: o objetivo continuava a ser a Libertadores; se, nas últimas cinco rodadas, os cálculos permitissem, poder-se-ia ambicionar, por que não?, a taça. Esse pensamento, porém, naquele instante, não deveria, de modo algum, estar na pauta ou nortear as ações, sob pena de perdição.

Até que, num belo dia, umas dez rodadas atrás, Caius, provavelmente após uma noite maldormida em que confrontou-se com as forças malignas da ambição desmedida, confessou que sonhava com o título dia e noite. Que sua odisseia à Arábia Saudita tivera como único norte a conquista do Campeonato Brasileiro, quando voltasse ao Sul. E que chegara a hora de esse sonho se concretizar. A partir daquele dia, tudo começou a desandar.

A obsessão de Caius por tal conquista imediata o levou a desprezar outros horizontes: a Sul-Americana foi tratada não como secundária, mas qual fosse um torneiozinho de várzea, ou como se Glorioso não estivesse representando suas cores no cenário internacional. A humilhante capitulação na Colômbia com uma tropa de desesperados jogada aos leões covardemente fazia parte desses planos: poupar-se-iam os melhores homens para, lá adiante, vencer-se a guerra de Caius, por Caius, em nome de Caius, o sonho de Caius: aquele que veio, viu e, enfim, venceria.

E a elite de Caius descansou, dormiu, acordou, treinou e todos abençoaram as decisões de Caius. Nem tanto quando começou a testar novas estratégias, diferentes das que haviam sido vitoriosas até então, e que tinham o apoio do povo. As batalhas sob essa nova égide se sucederam, de fiasco em fiasco. Caius, em vez de assumir seus equívocos, parecia um Hitler no bunker de “A queda”: adicionou mais delírio ao que já era insano, ante os olhares pasmos de seus comandados, do povo, dos analistas e dos dirigentes (sim, Caius estaria sob ordens superiores, mas suas fabulações jamais foram contestadas pelos financiadores de sua empreitada).

Então, diante das críticas, emergiu, enfim, aquela criatura que eu decifrara numas poucas imagens de Caius em sua passagem pelo Flamengo, com a ajuda do oráculo traumatizado de meus olhos alvinegros: Caius esbravejou contra o povo. Chamou-o de inculto. Evocou estudos que fizera dos modos de guerra do Barcelona, coisa muito sofisticada. Bagunçou ainda mais o coreto, deslocando de suas posições seus melhores cavaleiros, semeando, no seio desses bravos homens, a insegurança, o medo e a revolta.

Aquele vulto meigo, educado, aquele herói que viria reafirmar glórias imemoriais, era agora um ser hesitante que se deixava fotografar ao lado de uma perplexa psicóloga, e que atribuía ao “Botafogo em si”, um Botafogo do terreno simbólico, de atributos indizíveis, os motivos do fracasso: uma bile alvinegra, uma substância maldita, teria se abatido sobre todos, levando o exército a entregar as armas cada vez que a vitória se anunciava.

Não terá ocorrido, ao menos uma vez, que a tal substância destruidora seria a loucura que dele se apossava, transformando-o num Quixote ao avesso, que transmuta em quimeras aquilo que é palpável, em monstros os deuses, em pesadelo a realidade promissora? A mania de grandeza de Caius levou-o a devorar o sonho de um povo, tomando-o para si e arrancando-o dos que mais mereciam sonhá-lo: os atletas e os torcedores, a quem ele, Caius, deveria ter servido. Tomado pela ânsia cega, não soube cumprir o que havia traçado: evocar os cumes só quando (e se) estes se avizinhassem para, então, dividir a glória com todos, ainda que fosse apenas a conquista de uma vaga na Libertadores, que agora se anuncia improvável.

A megalomania de Caius é das piores: é aquela que acomete os que nunca venceram. Não é o caso de um Luxemburgo, um vencedor que se afigura gagá e tem todo o direito de mandar e desmandar. Caius, é duro dizer, traiu a Estrela com Narciso.

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