quarta-feira, 5 de junho de 2013

Marcelo Lartigue e ‘O Perú Molhado’


Adaptação de Rui Moura (blogue Mundo Botafogo)

Marcelo Lartigue, nascido em Buenos Aires, fundou, em sociedade, há mais de 30 anos, em Búzios, o jornal ‘O Perú Molhado’, que considera o ‘jornal oficial’ de Búzios.

O fotógrafo Marcelo Lartigue chegou ao Rio de Janeiro no final da década de 1970, com o intuito de entrevistar Garrincha. Lartigue levou Garrincha a São Paulo, de trem, para ver Elza Soares no palco. Fez dezenas de fotos do craque, inclusive na casa de Mané Garrincha em Bangu.

Diz que não liga muito ao futebol, mas apesar de viver no Brasil há mais de trinta anos, torce contra a Seleção Brasileira. Fora do futebol, é um franco-atirador, zombeteiro e anti-nacionalista. Aquando da guerra das Malvinas, em 1982, Lartigue foi visto doando sangue para os soldados ingleses, e recusou-se a ser enganado pelo governo militar argentino.

A sua decisão de viver no Brasil é bastante original. Certa vez, em agosto de 1979, uma criança perguntou ao general e presidente Figueiredo o que ele faria se tivesse que educar um filho ganhando o salário mínimo. O último general do ciclo militar respondeu à maneira Figueiredo: – “Daria um tiro na cabeça, meu filho”. Lartigue - que ainda não tinha decidido onde viver - assistiu à fala presidencial pela televisão e decidiu: – “Vou morar aqui mesmo!”

1º número de O Perú Molhado

Pouco depois, um suicida subiu ao topo de um edifício, no centro do Rio, e durante horas ameaçou se jogar, mas as horas passaram e nada do homem se atirar. Então, a patuléia, lá embaixo, passou a exigir o suicídio: – “Se joga logo, porra!”, “Covarde!”, “Preciso trabalhar, suicida filho da p…!” Quando o ex-suicida foi retirado pelos bombeiros, a polícia teve que salvar o homem de uma multidão capaz de o linchar. E Lartigue teve a confirmação de que o Brasil seria seu novo lar. Somente uma cidade lhe abalou a convicção de viver no Brasil: Nápoles, porque, diz, “lá a confusão é ainda maior.”

Sobre a sua profissão de raiz, ele afirma: – “Faço muita foto falsa, sem filme na máquina. Gosto mais da ação, de preparar a fotografia, do que da própria foto”. Hoje, o que mais gosta é de fazer montagem: Armando Ehrenfreund, secretário de Turismo de Búzios, foi a Moscou e trouxe uma foto. Lartigue, no computador, fez com que Wladimir Putin, líder russo, recebesse o brasileiro no aeroporto. – “As pessoas acreditam piamente. Faço de conta que envio correspondentes à Europa e ao Oriente, monto as fotos e as pessoas perguntam como é que consigo pagar essas viagens.”

No que respeita ao jornal de Búzios, fundado contra ventos e marés, resistente ao tempo e ao conservadorismo, Lartigue conta que nasceu de uma aposta com o artista plástico Ivald Granato.

Aníbal à esquerda e Marcelo à direita

Um dia qualquer de 1981, Aníbal Martinho e Marcel Lartigueo, desempregados por razões diversas, decidiram abrir, com Ivald Granato, a loja Búzios Artes, à rua Manoel Turibe de Farias, em frente ao Bar Nascimento, no Centro da cidade: Aníbal expôs as suas pinturas abstratas, Marcelo suas fotos e o artista plástico Ivald Granato os seus quadros, já de reconhecida aceitação no mercado das artes. Como precisavam de dinheiro, os preços cobrados pelas obras eram muito altos e, por isso, não venderam nada.

Entretanto, Ivald afirmou, numa mesa de bar, que o argentino não conseguiria lançar um jornal em Búzios em curtíssimo espaço de tempo. Lartigue aceitou o repto e, juntamente com Aníbal, colocou o jornal na rua em três dias – onde permanece até hoje.


Os fundadores Aníbal Martinho e Marcelo Lartigue não podiam ser mais diferentes entre si: um é português, o outro argentino; um é filho de juiz de futebol, o outro de um psiquiatra; um é alto e magro, o outro é baixo e gordo; um escreve, o outro fotografa. Afinal, o que teriam em comum essas duas figuras tão diferentes, além da barba que por coincidência usam? Ambos são irreverentes, e mantiveram essa irreverência por duas décadas na publicação de O Perú Molhado, no qual Aníbal era o redator-chefe. Mas então Martinho perdeu a sua quota de sócio-proprietário, por conta de arranjos financeiros, e Lartigue logo se incompatibilou com ele e Aníbal foi para a concorrência. Aníbal faleceu em 2010 após vários tratamentos durante vários anos.


Embora Lartigue dirija o jornal, é a sua esposa Alessandra, acreana de nascença, que faz quase tudo. Lartigue afirma que “O Perú sai quando pode”. E como se faz o jornal? O artista da fotografia e do jornalismo explica o seu método de trabalho: – “Fico sentado aqui, em frente ao Cigalon. As pessoas passam e me contam coisas. A notícia vem ao jornal, o jornal não corre atrás da notícia”.

Marcelo Lartigue, ao contrário dos jornais que se pretendem imparciais e sérios, deixa claro que é “um mercenário: se pagar um espaço no jornal, pode falar o que quiser. Somos éticos, mas nossa ética dura uma semana. O Perú Molhado é um jornal de moral variável”. Essa, afirma, é a “cara de Búzios. Quero que a irreverência volte. A cidade está muito careta, muito religiosa. Por isso faço essas barbaridades”.


Nem todos gostam do desrespeito que o jornal dedica a todos e a tudo: – “Já sofri ataques violentos. Quebraram meu nariz, apanhei, fui processado”. Combate o cinzentismo e a submissão. Reage “ao costume das prefeituras de inventar jornalistas e jornais, o que gera uma péssima qualidade de jornalismo: eles se tornam funcionários públicos”. Lartigue não poderia ser um deles: fuma charuto e faz questão de fazer humor com seu Perú. Há mais de 30 anos.

‘O Perú Molhado’ tem um humorismo mordaz, é a favor dos gays e Búzios recebe 2.500 gays por ano em eventos, declara-se ateu e combatente das igrejas – assumindo que é uma das suas loucuras –, é alvo de quatro processos semanais, em média. E como sobrevive há tanto tempo sendo um jornal tão desrespeitoso? Antes de tudo, com o apoio dos mecenas, sejam eles empresários ou políticos, que nem por isso estão livres de uma ou outra zombaria nas páginas do jornal que patrocinam.


Na verdade, somente na sua 1ª edição a expressão ‘Peru’ foi escrita sem acento – daí até à atualidade passou a O Perú Molhado.

Em suma, quando se trata de O Perú Molhado não importa a pergunta que você vai fazer. É sempre ‘sim’ a resposta que você recebe. Afinal, O Perú é o único jornal do mundo em que o editor diz para o seu repórter: – “Vai lá e faz o que você quiser”.

Marcelo Lartigue tem uma máxima: – “Os governos caem, e o Perú continua de pé.”

Há uma última grande, maior e decisiva diferença entre Aníbal Martinho e Marcelo Lartigue, que justifica a minúcia dada pelo Mundo Botafogo ao argentino e que me faz inclinar mais a favor do seu ‘gosto artístico’: Aníbal tornou-se torcedor do Fluminense e Marcelo torcedor do Botafogo – como não podia deixar de ser.

[Nota final de Mundo Botafogo: As fontes principais são citadas, mas a parte mais significativa do artigo foi buscar trechos ao primeiro endereço citado abaixo, que inclui um texto originalmente publicado na edição nº 07 da Revista CIDADE, em novembro de 2006, e da autoria de Marco Antônio de Carvalho, ex-editor da Revista CIDADE e vencedor do prêmio máximo da literatura brasileira, o 52º Prêmio Jabuti (em 2007), com o livro “Um Caminho Cigano Fazendeiro”, onde narra a trajetória de Ruben Braga. Marco Antônio faleceu em 2007 pouco antes de ser agraciado com o Jabuti.]

Fontes:
http://www.buzioselparador.com.br/por/blog/perumolhado.php

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