por Jacinto de Thormes (Maneco Muller)
Isso aconteceu lá pelo ano de 1962. Naquele tempo em
que os homens pensavam que os animais não pensavam. Aconteceu em 1962, naquele
tempo em que o homem tinha que pagar para comer. Era naquele tempo em que em
troca de trabalho, força de vontade, horário, memória, se ganhava dinheiro,
cheque, vale. Era no curioso tempo em que até quem ganhava mais dinheiro, podia
ter mais coisas do que quem ganhava menos dinheiro. Pior ainda. Quem acumulasse
muito dinheiro, mais do que a sua sede, mais do que a sua fome, o preço de seu
sono, os livros dos seus filhos, os sonhos de sua mulher, quem possuísse mais
do que podia gastar era importante, muito importante. Era no tempo em que
existia paixão, polícia, pincel, pediatra, curativo, assassinato. Era no tempo
em que se levava nove meses para ter um bebê. Havia, é verdade, sol e chuva,
ambos incontroláveis. Maré e lua cheia, ambos incontroláveis. E alguma
incontrolável poesia também. As canções ainda eram de amor, as horas tinham
ponteiros. Muitas religiões para explicar um Deus só, muitas dívidas para um só
ordenado. E de repente, a maçaneta enguiçava.
Naquele tempo de 1962, a maior conquista coletiva era
o direito de fazer nada, para conseguir alguma coisa: greves de obediência,
greves de advertência, greves de solidariedade. Os salários aumentavam, porque
os preços aumentavam, porque os salários aumentavam, porque os preços
aumentavam, porque os salários aumentavam. O coração morria com frequência e as
células adoeciam no ato de sobreviver. Era no tempo em que existia Alfândega,
língua de porco, soutien, holofote, Pátria, conjuntura econômica, canguru,
hipoteca e pílula para dormir.
O Velho chamava-se Nilton Santos. Era alto e
brasileiro. Falava com voz rouca, era calmo e às vezes usava bigode. O Velho
era modesto e famoso.
Tinha um modo engraçado de encabular quando alguém
dizia: “Você é o maior”. O Velho estava preocupado com seu futuro. Tinha mulher
bonita e filho garoto.
Preocupava-se porque estava ficando velho. De que
adiantava chegar onde chegou, fazer tudo o que fez, se enrugava a testa ao
pensar no futuro? Dentro de algum tempo não poderia mais trabalhar no seu
ofício. O Velho era velho porque tinha 37 anos.
Alguns ficam moços aos 80, como Picasso, que pinta
cada vez mais menino. Outros têm filhos aos 70, como Chaplin. Usam o físico e a
saúde para acordar cedo, para deitar tarde, para casar muito, mas o que vale na
arte deles é a emoção do homem parado e pensando.
O Velho de que falo, esse Nilton Santos, era velho aos
37 porque sua arte era movimento. Dependia de correr e não corria sozinho,
corria com outros e corria contra outros. Quanto mais velho ele corria, mais
moços ficavam os outros. Se Chaplin e Picasso eram intelectuais musculosos, ou
pelo menos saudáveis, ele era um corredor com sentimento, com sensibilidade,
com coisas de grande artista. Só que o Velho não podia correr parado. Essa era
a dificuldade do velho Santos: não poder correr parado.
Se pudesse, ele faria 80 anos de pintura e 70 anos
de filhos, e não teria que pensar no futuro que viria aos 40.
Era irônico, brincalhão, às vezes desconfiado, e
jogava futebol.
Jogar futebol. O ato de chutar a bola. 22 homens
crescidos e um juiz de preto, correndo num campo de grama, enquanto centenas,
milhares, às vezes milhões sofrem os caprichos do jogo. A bola cheia de ar,
macia no couro, veloz como um tiro, bonita na cor, redondinha como certas
mulheres.
Em volta da bola, em torno do jogo, um mundo de
sentimentos, amores, superstições, negócios, intrigas.
Como a rosa, um jogador de futebol é um jogador de
futebol, a menos que seja um Nilton Santos. Num país onde 70 milhões de pessoas
chutam ou já chutaram ou vão chutar, ele era chamado de “Mestre”,
“Enciclopédia” e “Professor”. Pessoas o cumprimentavam na rua, davam-lhe lugar
no elevador, tiravam o chapéu quando ele passava. Neste país da bola, ele deu
mais prazeres, durante mais tempo, a mais gente do que alguém poderia sonhar. O
Presidente da República o abraçava carinhosamente e dizia: “Meu bom amigo”.
Existia em relação a ele uma admiração nacional, que não era somente pelo
jogador, pelo artista. Era o homem tranquilo.
Era o camarada quieto e bom. Alguns jornalistas o
chamavam de “Premiê”, como se no país da bola não pudesse existir melhor
escolha para um Primeiro Ministro.
Quero lembrar que foi preciso muita gente boa escrever
sobre touros, toureiros e touradas para que os que não tinham sangue espanhol
começassem a entender o fenômeno, a admirar a coragem do homem, a beleza do
animal, o colorido da arena em tarde de sol. Foi preciso “traduzir” loucamente
aquela arte muito especial e popular, para que o homem de fora da Espanha, o
forasteiro, o marinheiro e, depois, o turista compreendessem aquele animal, que
aquele animal matando aquele homem era mais do que um simples ato de matar em
público. Quantas páginas foram escritas, de Blasco Ibañez a Hemingway, quantas
cores foram necessárias, de Goya a Garcia Lorca, para explicar, aos de sangue
não espanhol, que aquilo tinha sutilezas de poema, tinha luzes de mil canções,
tinha todo o selvagem pressentimento do homem espanhol e do homem mouro.
Os tempos são outros, o sentido de coragem ou
heroísmo mudou muito e na própria Espanha a “corrida” vai sofrendo a
concorrência de outras emoções coletivas como o próprio futebol. No Brasil,
entretanto, a bola é como o touro – uma questão nacional.
Será preciso muita gente “traduzir” esse amor pela
bola para que os de fora, o forasteiro, o marinheiro, o turista percebam o que
representa um simples jogo de futebol para todos nós.
O Velho, a bola, isso acontecia no tempo em que os
homens pensavam que os animais não pensavam.
[Notas de Mundo Botafogo: A ‘Redondinha
como certas mulheres’ segue-se à apresentação da sinopse do livro 'O Velho e a Bola' pela
Literatura na Arquibancada e é um texto do livro. O texto e as imagens reproduzem fielmente a apresentação feita pela Literatura na Arquibancada.]
4 comentários:
Rui,
Deveria ser proibido envelhecer! Principalmente os ídolos!
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
É verdade, gil, cuata muito vê-los e3nvelhecer, mas pior mesmo é quando partem.
Com tantas religiões, seitas e afins, até que alguma podia fazer uma exceção aos ídolos...
Abraços Gloriosos!
Maravilhoso comentário sobre o velho, lembrei do Prestes que tinha o mesmo apelido, deu água na boca... Já sei que é maravilhoso escrito sobre a verdadeira natureza do esporte e claro, do nosso glorioso. Não sei se vou conferir ao vivo, mas que este em breve estará na minha estante, com certeza.
José Gonçalves, o nosso Glorioso é uma fonte inesgotável de histórias, façanhas e outras coisas fenomenais. E os protagonistas são sempre do melhor nível. É um grande orgulho, não é?
Abraços Gloriosos!
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