por Flávio Carneiro
Botafoguense, escritor, roteirista e
professor de literatura na UERJ; www.flaviocarneiro.com.br/
Nas crônicas que escrevia semanalmente para a Manchete
Esportiva, Nelson Rodrigues vez ou outra elegia o personagem da semana. Era
quase sempre um jogador o tal personagem, alguém que havia se destacado na
rodada e merecera sua atenção. Pois numa dessas crônicas, Nelson elegeu como
personagem da semana não um jogador mas uma torcida: a do Botafogo.
A certa altura da crônica, o tricolor Nelson afirma
que "nem todo mundo pode imaginar o que é ‘ser Botafogo'. Vejam um
vascaíno, um rubro-negro e um tricolor. Eles se parecem entre si como
soldadinhos de chumbo. Reagem diante da derrota, da vitória e do empate de
maneiras bem parecidas. Suas euforias e depressões são equivalentes. Mas há, no
botafoguense, coisas que só ele tem e que o distinguem de tudo e de
todos".
Numa crônica anterior, Nelson já havia escrito que há
sempre, nas vitórias do Botafogo, "uma pungência, um patético que faltam
às demais". Tanto que ele, naquela semana, passa por cima de uma goleada
do América sobre o Corinthians para falar da vitória de 2x0 do Botafogo sobre a
Portuguesa. O jogo, segundo o cronista, tinha tudo para ser uma festa: o
alvinegro, capitaneado por Didi e Garrincha, passeou em campo, dominando
plenamente o adversário, e poderia, sem exagero, ter ganhado de 10x0. A tal
ponto que Nelson se perguntou, ao final da partida, temendo pela sorte do seu
Fluminense: "o que seria de nós se o Botafogo jogasse sempre assim?"
Foto: Carlito Rocha, presidente do Botafogo (1948/51) e
Biriba, mascote do time.
A partida, no entanto, terminou apenas num dramático,
num suado 2x0. Por quê? Responde o cronista: "tudo é mais difícil para o
Botafogo e o povo, com seu instinto agudo, costuma dizer: ‘Há coisas que só
acontecem ao Botafogo!' Exato". E Nelson decifra o enigma ao dizer que o
problema todo é que o time "tem contra si a fatalidade, mesmo quando
assombra, mesmo quando esmaga, mesmo quando arrebenta."
O botafoguense Arthur Dapieve sabe bem o que é isso.
Numa crônica intitulada Esse nosso amor, Dapieve comenta o espetáculo
dantesco que teve como palco o Estádio dos Aflitos (o nome do estádio: ironia
do destino?), em Recife, na partida Botafogo e Náutico pelo Campeonato
Brasileiro de 2008. Aliás, você por favor me responda, caro leitor: algum
jogador do seu time já foi preso em pleno gramado e levado à força por
policiais pelo meio da torcida adversária? E caso isso tenha acontecido, o
presidente do seu time foi atrás do jogador para protegê-lo e acabou preso
também, como naquele jogo?
Nessa crônica, Dapieve escreve: "tenho dois
amigos jornalistas paulistas e são-paulinos que trabalharam no Rio de Janeiro
durante algum tempo. Ambos se tornaram botafoguenses porque se assombraram com
a nossa incrível concentração dramática. Eles dizem que em um ano de Botafogo
acontece o suficiente para encher cinco anos do São Paulo. Sem os títulos, infelizmente".
Se torcer para um time de futebol é sempre uma
aventura, torcer para o Botafogo é um pouco mais do que isso. Nunca se sabe
como vai acabar a partida, se é que vai acabar. Aliás, não se sabe exatamente
nem como é que vai começar. Quer um exemplo? Essa aconteceu comigo. Em 1996, o
time estava disputando a Taça Teresa Herrera, na Espanha, e ia jogar contra o
Juventus, da Itália. Só consegui chegar em casa no início do segundo tempo e
quando liguei a televisão vi o Juventus com sua camisa tradicional (com listras
verticais, brancas e pretas) e o adversário (supostamente o Botafogo) de camisa
azul!
Levei um tempo até entender aquilo. Parecia outro
time. Mas não, lá estava o figuraça Túlio Maravilha, na sua vistosa camisa cor
de anil. O que aconteceu: o árbitro achou que as camisas do Juventus e do
Botafogo eram parecidas e fez um sorteio para ver quem mudava. O Botafogo foi o
escolhido. Como não tinha levado uniforme reserva, pegou emprestadas as camisas
do... La Coruña!
Foto: No início da década de 1960, o grande time do
Botafogo, por superstição, jogou várias partidas com camisas de mangas
compridas, mesmo em dias de muito calor.
No início da década de 1960, o grande time do
Botafogo, por superstição, jogou várias partidas com camisas de mangas
compridas, mesmo em dias de muito calor.
Agora me responda com sinceridade: é normal isso? E o
Botafogo ainda foi o campeão do torneio! A valer a superstição - outro traço
típico da torcida botafoguense - o time só deveria jogar de camisa azul, ou
pelo menos só deveria disputar outras vezes esse torneio com camisa dessa cor.
Por curiosidade, resolvi investigar se isso já havia
acontecido antes. Claro que não me surpreendi quando descobri que sim, várias
vezes.
Alguns exemplos. Contra o Americano de Campos, em
1923, o time usou – repare bem – o segundo uniforme do Andarahy Athletico Club!
Cor da camisa? Verde! Dez anos depois, mesma confusão de uniforme e o Botafogo
novamente joga com camisas emprestadas, agora contra o Engenho de Dentro,
entrando em campo com camisas vermelhas (dessa vez sequer se tem registro de
quem emprestou o uniforme).
Em 1968, em pleno Maracanã (portanto com mando de
campo naquela partida), o time entra com a tradicional camisa listrada, o
Grêmio também (com a sua de cores preta, branca e azul) e quem é que vai mudar
de uniforme? Adivinha. O Botafogo pega emprestadas as camisas azuis da Adeg (a
associação desportiva do antigo estado da Guanabara).
Já na década de 70, o episódio se repete. O estádio é
o mesmo Maracanã, o jogo é contra o Paissandu, de Belém. A Adeg agora virou
Suderj, quer dizer, o nome é diferente mas a função continua a mesma: emprestar
camisa para o Botafogo - dessa feita, amarelas!
Foto: Biriba, mascote do Botafogo, em campo com os
jogadores.
Talvez por isso, por essa absoluta imprevisibilidade,
o Botafogo seja, até prova em contrário, o time que mais combina com quem lida
com literatura. Se você, meu amigo ou minha amiga, é poeta, contista,
romancista ou exerce a crítica literária e ainda não tem time, não se acanhe:
as portas estão abertas. Entre, aperte os cintos e se prepare para embarcar na
nave louca!
Não era assim que pensava, por exemplo, o Paulo Mendes
Campos? É dele a frase: "Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto
tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma
estrela solitária".
E o Vinicius de Moraes? Diz ele que escolheu torcer
pelo alvinegro por um muito nobre motivo: alguns nomes de ruas do bairro de
Botafogo. Nomes sublimes, sugerindo belas senhoras: Bambina, Mariana, Clarisse.
Dizem que o poeta, em seus tempos de diplomata,
conheceu em Los Angeles o magnata Mr. Buster, arquimilionário que se espantou
quando o brasileiro decidiu abandonar o poder e a grana que lhe oferecia o
cargo e voltar para o Rio. Mais tarde, Vinicius escreveria um poema criticando
a vida de luxo de Mr. Buster e afirmando os motivos de sua decisão. Entre eles:
torcer para o Botafogo.
E aí estão escritores contemporâneos que não me deixam
mentir. De estilos e gerações variados, eles se espalham pelo país e até pelo
exterior, como a Adriana Lisboa, botafoguense por herança paterna, materna e o
que mais possa existir, e que hoje espalha a glória do clube no país em que
futebol se chama soccer.
Agora, nem a Adriana nem o Luís Fernando Veríssimo têm
manias de torcedor, o que é digno de nota em se tratando de botafoguenses. Quer
dizer, o Veríssimo só não gosta de falar durante o jogo, mas o Veríssimo não
querer falar não chega a ser, convenhamos, uma grande novidade. O que é
diferente, no caso, é que ele também não gosta que falem com ele enquanto o
Botafogo (ou o seu Internacional) está jogando.
Foto: João Saldanha, ateu convicto, autor da célebre
máxima "se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava
emptado", só dirigia o Botafogo e a seleção brasileira com camisas
brancas. Saldanha sempre negou ser supersticioso. Na foto, João Saldanha é
carregado em comemoração à conquista de campeão carioca de 1957 (com camisa
branca, claro), após o Botafogo golear o Fluminense por 6x2 no Maracanã.
De manias o Jorge Viveiros de Castro diz que se
livrou, depois de tantos anos e várias mandingas fracassadas. Continua roendo
unha, xingando juiz, mandando algum jogador para aquele lugar, coisas assim,
normais. Agora, mania não tem mais não. Cansou. Quer dizer, dia desses ele foi
flagrado assistindo a um jogo do Botafogo, na televisão, encostado na parede e
plantando bananeira. Jorge explicou que era apenas um exercício de ioga, para
amenizar a tensão. Sei.
Fernando Molica é um botafoguense autêntico, o que
equivale a dizer que não regula muito bem da bola (com o perdão do trocadilho).
Repetir (ou não) determinada camisa, rezar para que, depois de um primeiro
tempo ruim, algo o obrigue a mudar de lugar no estádio (não pode ser por
vontade própria, tem que acontecer alguma coisa), variar (ou não) de amigos na
arquibancada, pedir aos céus para ver, no dia do jogo, alguém com a camisa do
Botafogo antes que apareça alguém com a camisa do adversário são algumas de
suas, digamos, estratégias.
O historiador Raul Milliet Filho, autor de Vida
que segue: João Saldanha e as Copas de 1996 e 1970, não gosta de ver jogo
do Botafogo na televisão. Diz que prefere o estádio porque dali pode ter uma
ampla visão do campo e analisar taticamente a partida. "Na televisão você
o lance, mas não vê o jogo", justifica. Faz sentido, sem dúvida, mas que
pode haver algo estranho por trás disso, pode. Para alguém que jamais cruza as
pernas quando está vendo jogo do Botafogo, tudo é possível.
Essas histórias todas levam a crer que, se dependesse
de manias, o Botafogo seria campeão mundial todos os anos, com folga. E por que
não é? Porque se trata de tolice, mera superstição, dirá você, leitor
incrédulo. Pois tenho outra hipótese para a explicação do fenômeno: uma
esquisitice atrapalha a outra. Isso mesmo, uma está anulando a outra. E são
tantas que, claro, nos perdemos.
Faço aqui, portanto, nesse momento histórico, uma
proposta que pode devolver ao alvinegro seus dias de glória: uma uniformização
das manias. Se até a língua portuguesa resolveram uniformizar, que façamos
também isso, nós que na história já trocamos tantas vezes de uniforme: uma
gramática das manias botafoguenses. Sentar bem no meio do sofá: certo ou
errado? Vestir a meia do avesso na véspera do clássico: certo ou errado? Entrar
de lado na catraca do Maracanã: certo ou errado? Quem sabe funciona.
Notas da fonte:
1) Crônicas publicadas no livro Passe de
Letra (Futebol & Literatura), editora Rocco – 2009.
2) No prefácio, Luís Fernando Veríssimo
escreveu: “Já fizeram bons poemas e tratados
sociológicos e ensaios profundos sobre o futebol, claro, nada contra, mas acho
que a melhor maneira de escrever sobre ele é como faz o Flávio neste livro,
misturando memória e reflexão, o puro gosto pela bola rolando e sua experiência
como jogador, torcedor e observador – e nem por isso sendo menos literário.”
4 comentários:
Rui,
No meio de histórias tão peculiares encontra-se também uma definição de João Moreira Salles que se encaixa como uma luva no perfil dos nossos torcedores: "o botafoguense é o único que, quando o time perde (ou ganha), sai do estádio achando que ele teve alguma coisa a ver com isso".
abraços, Roma
Eu penso que não conhecia essa. Vai para o rol das publicações. Obrigado.
Abraços Gçoriosos!
Caro Rui. Embora eu não seja nenhum literato, mas sou botafoguense e durante muitos anos, na era do rádio, só ouvia jogos do Botafogo em pé com o pé esquerdo sobre o pé direito, encostado a um móvel da sala. Felizmente hoje, isto já terminou e só vejo jogos do Botafogo na televisão sentado no lado direito do sofá . O sofá branco. Ah! ia me esquecendo. Para provar que não tenho mais superstição, no sofá branco, tem que ter uma almofada preta. Coisa de quem não é literato e muito menos supersticioso. Abraços. Loris
Aí está uma declaração verdadeiramente anti-superstições. Assino por baixo...
Abraços Gloriosos!
Enviar um comentário