terça-feira, 25 de março de 2014

Neném Prancha, o filósofo do futebol

Apesar de já não estar entre nós desde janeiro de 1976, suas frases antológicas se eternizaram no mundo do futebol. Quase 40 anos depois ainda são encontradas em qualquer pesquisa rápida na internet ou ainda podem ser ouvidas saindo da boca de quem um dia leu algo a seu respeito ou teve o privilégio de conhecê-lo.

Se alguém citar seu nome verdadeiro, Antonio Franco de Oliveira, certamente ninguém o conhecerá, mas bastou citar o apelido que o eternizou, Neném Prancha, e pronto, a história do “filósofo” da bola surge aos nossos olhos.

Isso mesmo, um homem simples, torcedor fanático do Botafogo, onde começou a trabalhar como roupeiro no departamento de atletismo, em 1943, é tratado como um filósofo.

E a explicação é muito simples. Neném Prancha tinha sacadas incríveis para tudo que via e ouvia no mundo da bola em que cresceu. Ali, nas areias do extinto posto 4 de Copacabana ele criou com seu olhar atento centenas de frases de efeito, quase todas repletas de ironia.

Até o apelido recebido, Neném Prancha, é de fazer rir. Tinha as mãos grandes – cada uma media 23 centímetros de comprimento – e os pés enormes, calçava (sempre chinelos) o número 44, que pareciam mais com uma prancha.

E o mais incrível neste homem, apesar das sacadas que criava diariamente, era considerado pelos amigos e torcedores uma figura humana estranha. Apesar de se tornar famoso nas areias de Copacabana, nunca foi visto tomando banho de mar. Por ali, jogou como goleiro e zagueiro no Carioca Esporte Clube. Mas a carreira como jogador durou pouco, preferiu trabalhar com o time infanto-juvenil do Botafogo, além de ser o roupeiro do clube no departamento de atletismo. Como vivia com o futebol jogado nas areias do Rio de Janeiro, virou olheiro do clube de coração. Muito mais do que um olheiro... A paixão pelo Botafogo era tanta que Neném Prancha criou um time de praia batizado de Botafoguinho, onde foi treinador e dirigente. Um time das areias de Copacabana que marcou época entre os anos de 1960 e 1970.

Heleno de Freitas, revelado por Neném, no Botafoguinho que ele comandava

Da própria vida, Neném Prancha não gostava de falar. Era filho do “seu” Zeferino, um biscateiro, e de dona Júlia, uma empregada doméstica. Mas os amigos pouco se interessavam pela sua história de vida. Sua vida era o Botafogo e as peladas de praia.

E foi assim que Neném colecionou ironia sobre fatos corriqueiros da vida e da bola. Daí a virar um “filósofo” foi um passo. Costumava dizer aos seus jogadores no futebol das areias para que dormissem abraçados a uma bola, para que “se acostumassem com ela”. A simplicidade o fez revelar às centenas de jovens que um dia comandou que “o futebol é muito simples: quem tem a bola, ataca; quem não tem, defende”. Simplificar, esse era o jeito de Neném Prancha “convencer” seus pupilos de suas teorias, como a de que “o futebol moderno é que nem pelada: todo mundo corre e ninguém sabe para onde”.

Quando morreu, o jornal Folha de S. Paulo publicou um artigo resgatando um pouco da vida de Neném Prancha. Na matéria, uma observação curiosa, além das várias sacadas que lhe tornaram o mais famoso “filósofo” do futebol: durante o enterro o comentário mais ouvido nas rodas de amigos era que Neném teria ficado muito agitado com o lançamento de um livro sobre sua vida. Isso mesmo, Neném Prancha não poderia ter partido sem que alguém deixasse registrado em um livro suas incríveis frases e sacadas. “Assim falou Neném Prancha”, de Pedro Zamora foi lançado em 1975, e no ano seguinte, Neném morreu do coração.

No artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, muitas das histórias, causos e frases de Neném Prancha também eram vistas na obra de Zamora:

«Homem de poucas palavras, mas perfeito observador e muito inteligente, só falava nos momentos oportunos. Lançava com grande humor as suas frases irônicas para definir os fatos. Adepto do futebol simples e objetivo, ele contestava a forma de jogar de Domingos da Guia. Neném repudiava o drible, a firula dentro da área:

"Jogar a bola pra cima, enquanto ela estiver no alto não há perigo de gol." (...)

Quando encontrava um menino habilidoso, com jeito de seguir a carreira, "Neném Prancha" o aconselhava:

"Jogador de futebol, tem que ir na bola com a mesma disposição com que vai num prato de comida. Com fome, para estraçalhar."

Talvez por passar praticamente toda a sua vida entre a praia e o seu pequeno quarto na própria sede do Botafogo, assim definia as concentrações:

"Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma partida".

Foi também inimigo das superstições que dominam a maioria dos jogadores e dirigentes do futebol brasileiro. Ele sempre dizia que sem talento não adiantavam as promessas:

"Se macumba resolvesse, o campeonato baiano terminava sempre empatado".

Um conselho paternal para os goleiros:

"O goleiro deve andar sempre com a bola, mesmo quando vai dormir. Se tiver mulher, dorme abraçado com as duas".

Admirador do futebol clássico, "Neném Prancha" encarava Didi como um dos maiores armadores de futebol do mundo. Sua resposta era a mesma quando solicitado para comentar o talento de Didi:

"O Didi joga bola como quem chupa laranja, com muito carinho". (...)

A exemplo dos demais funcionários do Botafogo, passou por privações com os frequentes atrasos dos salários. Mas nunca pensou em largar o clube de seu coração. Foi há muito custo que ele concordou em se internar numa casa de saúde.

"Neném Prancha" jamais pensou em casamento, porque o pouco dinheiro que ganhava servia apenas para "Manter o estômago em dia" além disso,  não confiava muito na história da Amélia, a mulher de verdade, porque lia diariamente nos jornais as notícias sobre briga de casais:

"Casamento é coisa muito séria para terminar nas manchetes de jornais".

Quando jogador no futebol de praia, Neném Prancha evitava a cobrança de pênaltis. Depois que passou à condição de treinador de juvenis e torcedor do Botafogo, ele lançou uma de suas mais famosas frases:

"Penalti é uma coisa tão importante, que quem devia bater é o presidente do clube".»


Mas as histórias de Neném não ficariam registradas apenas no livro de Zamora. Duas figuras também lendárias foram responsáveis por perpetuar as frases e as sacadas dele. O primeiro, o jornalista Sandro Moreira, que em sua coluna nos jornais cariocas não deixava de sempre lembrar as tiradas do velho amigo. O outro, o ex-técnico da seleção brasileira e do Botafogo, João Saldanha.

É de Saldanha o texto abaixo e que revela claramente porque Neném Prancha tornou-se tão famoso. Basta ver os personagens com quem ele convivia nas areias de Copacabana, nas peladas infindáveis que ele tanto adorava, e pelas ruas do Rio de Janeiro.

O time de Neném Prancha

por João Saldanha

Já faz muito tempo, acho que durante a guerra, os jogadores do Posto 4 FC, campeoníssimo da praia, dirigido pelo "Trenier" mais famoso da Costa do Atlântico, Neném Pé de Prancha, tinham resolvido dar uma festa de fim de ano, na garagem da casa de um tio do Renato Estelita. O Lá Vai Bola FC aderiu ao baile e compraram três barris de chope.

Eu não topei e disse na esquina do Café do Baltazar: "Não vou. Na festa do ano passado, na garagem do Pé de Chumbo, quebraram tudo e até hoje o clube não pagou a cristaleira da avó dele que estava guardada lá. Não vou mesmo. Chega de encrenca."

Meu irmão Aristides, o Hélio Caveira-de-Burro e o Orlando Cuíca me acompanharam na idéia de não ir ao baile e fomos tomar um chope, sossegados, num bar vazio, na esquina da Avenida Atlântica com Rua Cons­tante Ramos. A noite estava boa e o papo também. Mais tarde, passou por ali o Jaime Botina e disse: "Caí fora do baile. Tem gente demais e muito nego bêbado. Vai dar galho." E eu emendei: "Não disse?"

Lá pelas duas horas da manhã, parou um táxi daqueles grandes e sal­tou o doutor A. Coruja, esfregando os óculos, nervoso. O doutor Coruja era um impetuoso lateral direito. Só dava bico na bola de borracha e Neném Prancha decretou: "Só joga se cortar as unhas. Uma bola está custando cinco pratas." Seu controle de bola não era dos melhores, mas quebrava o galho na lateral direita. O galho ou o ponta-esquerda adversário.

Mas chegou e foi falando incisivo: "Se vocês são machos e meus amigos, têm de ir lá comigo. Fui desacatado mas eram muitos." E foi logo dando ordens: "Entrem aqui no táxi e vamos lá."

Lá aonde?" disse o Hélio. Coruja explicou: "E na Rua Joaquim Silva. A mulher me desacatou, ofendeu minha mãe e não pude reagir porque ela estava com três caras na mesa. Vocês têm de ir comigo ou não são meus amigos." Repetiu isto umas cinco vezes e completou: "Como é, poetas? Vamos ou não vamos? Vocês agora deram para medrar?"

Eu cochichei para o Cuíca: "O Coruja está de porre. Não vou me meter nisto." O Cuíca respondeu: "Ele vai chatear a gente o ano inteiro por causa disso. O Coruja quando bebe é assim. Fica remoendo os troços. Olha, ele veio de lá até aqui e gastou meia hora. Para voltar, outra meia hora. Os caras já não estão mais lá, a pensão já deve estar fechada e a mulher dormindo com alguém." E virando-se para o doutor Coruja: "Tá bem, nós vamos, mas vem tomar um chopinho com a gente." Coruja topou e mandou o português do táxi esperar.

Tomamos o chope bem devagarinho e fomos, ainda devagar, para a Rua Joaquim Silva. O táxi "disse" que não esperava mais e foi embora. Subimos a escada de madeira, comprida e estreitinha, e demos numa sala de uns três metros por quatro, se tanto. Quatro mesinhas, só duas ocupadas por fregueses, e, nas outras, umas três mulheres com cara de sono. O diabo é que numa das mesas estava a tal mulher papeando com os três caras. Doutor Coruja partiu direto e foi dizendo: "Repete agora, sua vaca."

Os homens levantaram, o que estava mais perto levou um soco do doutor e o pau comeu solto. O lugar era apertado e eu me lembrei da cristaleira da avó do Renato. Um dos caras era uma parada, brigava bem. O garçom não parecia homem mas era e as mulheres fizeram uma gritaria dos diabos. As mesas e as cadeiras foram para o vinagre, um dos caras se man­dou escada abaixo, quando alguém apagou a luz. Escutei a voz de Hélio Caveira-de-Burro, que era muito experiente: "Vamos dar o fora."

Saímos rápido e ainda levei com uns detritos atirados pelas mulheres da janela. Um guarda apitou e saímos pelas ruas da Lapa. Uns se mandaram pela Conde Laje e outros pela Glória. Eu fui parar no Passeio Público, arrumei um táxi e voltei para o ponto de saída. Quando cheguei, Orlando Cuíca já estava e disse: "O guarda começou a dar tiro e quase me pega. Tive sorte."

Depois chegaram Hélio e meu irmão, que vieram noutro táxi. Hélio falou: "O grande era uma parada. Mas peguei ele bem com a perna da cadeira. Senão a gente não ganhava." Meu irmão estava com a camisa rasgada e disse que foi a mulher que se atracou nele. "Não bati mas tive de dar uma 'banda' nela. Juntou pé com cabeça. Depois que Hélio dominou o grandalhão, foi barbada. Dei uma no de terno marrom que ele se mandou pela escada." E eu disse: "Ficou tudo quebrado e a mulher que o Coruja bateu não levantou, mas eu não vi sangue."

E ficamos relaxando um pouco quando chegou um táxi e o doutor Coruja saltou esfregando os óculos com um lanho no rosto. Hélio pergun­tou: "Como é doutor, se machucou?" "Nada, um arranhãozinho à toa." E prosseguiu: "Puxa, agora estou satisfeito. Há mais de três meses que eu estava para ir a esta forra."

"O quê?" — berramos em coro — "O negócio foi há três meses!?" E Coruja explicou, calmamente: "Foi sim e eu não bati nela porque estava acompanhada." Então meu irmão perguntou: "Quer dizer que os caras que apanharam não eram os mesmos?" Coruja respondeu: "Claro que não, meus poetas, mas o que tem isto demais?"

Nesta altura, o sol já estava aparecendo lá na Ponta do Boi, iluminan­do o primeiro dia do ano e desejando boas entradas para a excelentíssima senhora mãe do doutor A. Coruja.” (http://www.releituras.com/jsaldanha_nenem.asp)

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