Apesar de já não estar entre nós desde
janeiro de 1976, suas frases antológicas se eternizaram no mundo do futebol.
Quase 40 anos depois ainda são encontradas em qualquer pesquisa rápida na
internet ou ainda podem ser ouvidas saindo da boca de quem um dia leu algo a
seu respeito ou teve o privilégio de conhecê-lo.
Se alguém citar seu nome verdadeiro,
Antonio Franco de Oliveira, certamente ninguém o conhecerá, mas bastou citar o
apelido que o eternizou, Neném Prancha, e pronto, a história do “filósofo” da
bola surge aos nossos olhos.
Isso mesmo, um homem simples, torcedor
fanático do Botafogo, onde começou a trabalhar como roupeiro no departamento de
atletismo, em 1943, é tratado como um filósofo.
E a explicação é muito simples. Neném
Prancha tinha sacadas incríveis para tudo que via e ouvia no mundo da bola em
que cresceu. Ali, nas areias do extinto posto 4 de Copacabana ele criou com seu
olhar atento centenas de frases de efeito, quase todas repletas de ironia.
Até o apelido recebido, Neném Prancha, é
de fazer rir. Tinha as mãos grandes – cada uma media 23 centímetros de
comprimento – e os pés enormes, calçava (sempre chinelos) o número 44, que
pareciam mais com uma prancha.
E o mais incrível neste homem, apesar
das sacadas que criava diariamente, era considerado pelos amigos e torcedores
uma figura humana estranha. Apesar de se tornar famoso nas areias de
Copacabana, nunca foi visto tomando banho de mar. Por ali, jogou como goleiro e
zagueiro no Carioca Esporte Clube. Mas a carreira como jogador durou pouco,
preferiu trabalhar com o time infanto-juvenil do Botafogo, além de ser o
roupeiro do clube no departamento de atletismo. Como vivia com o futebol jogado
nas areias do Rio de Janeiro, virou olheiro do clube de coração. Muito mais do
que um olheiro... A paixão pelo Botafogo era tanta que Neném Prancha criou um
time de praia batizado de Botafoguinho, onde foi
treinador e dirigente. Um time das areias de Copacabana que marcou época entre
os anos de 1960 e 1970.
Heleno de Freitas, revelado por Neném, no Botafoguinho
que ele comandava
Da própria vida, Neném Prancha não
gostava de falar. Era filho do “seu” Zeferino, um biscateiro, e de dona Júlia,
uma empregada doméstica. Mas os amigos pouco se interessavam pela sua história
de vida. Sua vida era o Botafogo e as peladas de praia.
E foi assim que Neném colecionou ironia
sobre fatos corriqueiros da vida e da bola. Daí a virar um “filósofo” foi um
passo. Costumava dizer aos seus jogadores no futebol das areias para que
dormissem abraçados a uma bola, para que “se acostumassem com ela”. A
simplicidade o fez revelar às centenas de jovens que um dia comandou que “o
futebol é muito simples: quem tem a bola, ataca; quem não tem, defende”.
Simplificar, esse era o jeito de Neném Prancha “convencer” seus pupilos de suas
teorias, como a de que “o futebol moderno é que nem pelada: todo mundo corre e
ninguém sabe para onde”.
Quando morreu, o jornal Folha de S.
Paulo publicou um artigo resgatando um pouco da vida de Neném Prancha. Na
matéria, uma observação curiosa, além das várias sacadas que lhe tornaram o
mais famoso “filósofo” do futebol: durante o enterro o comentário mais ouvido
nas rodas de amigos era que Neném teria ficado muito agitado com o lançamento
de um livro sobre sua vida. Isso mesmo, Neném Prancha não poderia ter partido
sem que alguém deixasse registrado em um livro suas incríveis frases e sacadas.
“Assim falou Neném Prancha”, de Pedro Zamora foi lançado em 1975, e no ano
seguinte, Neném morreu do coração.
No artigo publicado pelo jornal Folha de
S. Paulo, muitas das histórias, causos e frases de Neném Prancha também eram
vistas na obra de Zamora:
«Homem de poucas
palavras, mas perfeito observador e muito inteligente, só falava nos momentos
oportunos. Lançava com grande humor as suas frases irônicas para definir os
fatos. Adepto do futebol simples e objetivo, ele contestava a forma de jogar de
Domingos da Guia. Neném repudiava o drible, a firula dentro da área:
"Jogar
a bola pra cima, enquanto ela estiver no alto não há perigo de gol." (...)
Quando encontrava um
menino habilidoso, com jeito de seguir a carreira, "Neném Prancha" o
aconselhava:
"Jogador de futebol, tem que ir na bola com a
mesma disposição com que vai num prato de comida. Com fome, para estraçalhar."
Talvez por passar
praticamente toda a sua vida entre a praia e o seu pequeno quarto na própria
sede do Botafogo, assim definia as concentrações:
"Se
concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma partida".
Foi também inimigo das
superstições que dominam a maioria dos jogadores e dirigentes do futebol
brasileiro. Ele sempre dizia que sem talento não adiantavam as promessas:
"Se macumba
resolvesse, o campeonato baiano terminava sempre empatado".
Um conselho paternal
para os goleiros:
"O
goleiro deve andar sempre com a bola, mesmo quando vai dormir. Se tiver mulher,
dorme abraçado com as duas".
Admirador do futebol
clássico, "Neném Prancha" encarava Didi como um dos maiores armadores
de futebol do mundo. Sua resposta era a mesma quando solicitado para comentar o
talento de Didi:
"O
Didi joga bola como quem chupa laranja, com muito carinho". (...)
A exemplo dos demais funcionários
do Botafogo, passou por privações com os frequentes atrasos dos salários. Mas
nunca pensou em largar o clube de seu coração. Foi há muito custo que ele
concordou em se internar numa casa de saúde.
"Neném
Prancha" jamais pensou em casamento, porque o pouco dinheiro que ganhava
servia apenas para "Manter o estômago em dia" além disso, não
confiava muito na história da Amélia, a mulher de verdade, porque lia
diariamente nos jornais as notícias sobre briga de casais:
"Casamento
é coisa muito séria para terminar nas manchetes de jornais".
Quando jogador no
futebol de praia, Neném Prancha evitava a cobrança de pênaltis. Depois que
passou à condição de treinador de juvenis e torcedor do Botafogo, ele lançou
uma de suas mais famosas frases:
"Penalti
é uma coisa tão importante, que quem devia bater é o presidente do clube".»
Mas as histórias de Neném não ficariam
registradas apenas no livro de Zamora. Duas figuras também lendárias foram
responsáveis por perpetuar as frases e as sacadas dele. O primeiro, o
jornalista Sandro Moreira, que em sua coluna nos jornais cariocas não deixava
de sempre lembrar as tiradas do velho amigo. O outro, o ex-técnico da seleção
brasileira e do Botafogo, João Saldanha.
É de Saldanha o texto abaixo e que
revela claramente porque Neném Prancha tornou-se tão famoso. Basta ver os
personagens com quem ele convivia nas areias de Copacabana, nas peladas
infindáveis que ele tanto adorava, e pelas ruas do Rio de Janeiro.
O time de Neném Prancha
por João Saldanha
Já faz muito tempo, acho que durante a
guerra, os jogadores do Posto 4 FC, campeoníssimo da praia, dirigido pelo
"Trenier" mais famoso da Costa do Atlântico, Neném Pé de Prancha,
tinham resolvido dar uma festa de fim de ano, na garagem da casa de um tio do
Renato Estelita. O Lá Vai Bola FC aderiu ao baile e compraram três barris de
chope.
Eu não topei e disse na esquina do Café
do Baltazar: "Não vou. Na festa do ano passado, na garagem do Pé de
Chumbo, quebraram tudo e até hoje o clube não pagou a cristaleira da avó dele
que estava guardada lá. Não vou mesmo. Chega de encrenca."
Meu irmão Aristides, o Hélio
Caveira-de-Burro e o Orlando Cuíca me acompanharam na idéia de não ir ao baile
e fomos tomar um chope, sossegados, num bar vazio, na esquina da Avenida
Atlântica com Rua Constante Ramos. A noite estava boa e o papo também. Mais
tarde, passou por ali o Jaime Botina e disse: "Caí fora do baile. Tem
gente demais e muito nego bêbado. Vai dar galho." E eu emendei: "Não
disse?"
Lá pelas duas horas da manhã, parou um
táxi daqueles grandes e saltou o doutor A. Coruja, esfregando os óculos, nervoso.
O doutor Coruja era um impetuoso lateral direito. Só dava bico na bola de
borracha e Neném Prancha decretou: "Só joga se cortar as unhas. Uma bola
está custando cinco pratas." Seu controle de bola não era dos melhores,
mas quebrava o galho na lateral direita. O galho ou o ponta-esquerda
adversário.
Mas chegou e foi falando incisivo: "Se
vocês são machos e meus amigos, têm de ir lá comigo. Fui desacatado mas eram
muitos." E foi logo dando ordens: "Entrem aqui no táxi e vamos
lá."
Lá aonde?" disse o Hélio. Coruja
explicou: "E na Rua Joaquim Silva. A mulher me desacatou, ofendeu minha
mãe e não pude reagir porque ela estava com três caras na mesa. Vocês têm de ir
comigo ou não são meus amigos." Repetiu isto umas cinco vezes e completou:
"Como é, poetas? Vamos ou não vamos? Vocês agora deram para medrar?"
Eu cochichei para o Cuíca: "O
Coruja está de porre. Não vou me meter nisto." O Cuíca respondeu:
"Ele vai chatear a gente o ano inteiro por causa disso. O Coruja quando
bebe é assim. Fica remoendo os troços. Olha, ele veio de lá até aqui e gastou
meia hora. Para voltar, outra meia hora. Os caras já não estão mais lá, a
pensão já deve estar fechada e a mulher dormindo com alguém." E virando-se
para o doutor Coruja: "Tá bem, nós vamos, mas vem tomar um chopinho com a
gente." Coruja topou e mandou o português do táxi esperar.
Tomamos o chope bem devagarinho e fomos,
ainda devagar, para a Rua Joaquim Silva. O táxi "disse" que não
esperava mais e foi embora. Subimos a escada de madeira, comprida e estreitinha,
e demos numa sala de uns três metros por quatro, se tanto. Quatro mesinhas, só
duas ocupadas por fregueses, e, nas outras, umas três mulheres com cara de
sono. O diabo é que numa das mesas estava a tal mulher papeando com os três
caras. Doutor Coruja partiu direto e foi dizendo: "Repete agora, sua
vaca."
Os homens levantaram, o que estava mais
perto levou um soco do doutor e o pau comeu solto. O lugar era apertado e eu me
lembrei da cristaleira da avó do Renato. Um dos caras era uma parada, brigava
bem. O garçom não parecia homem mas era e as mulheres fizeram uma gritaria dos
diabos. As mesas e as cadeiras foram para o vinagre, um dos caras se mandou
escada abaixo, quando alguém apagou a luz. Escutei a voz de Hélio
Caveira-de-Burro, que era muito experiente: "Vamos dar o fora."
Saímos rápido e ainda levei com uns
detritos atirados pelas mulheres da janela. Um guarda apitou e saímos pelas
ruas da Lapa. Uns se mandaram pela Conde Laje e outros pela Glória. Eu fui
parar no Passeio Público, arrumei um táxi e voltei para o ponto de saída.
Quando cheguei, Orlando Cuíca já estava e disse: "O guarda começou a dar
tiro e quase me pega. Tive sorte."
Depois chegaram Hélio e meu irmão, que
vieram noutro táxi. Hélio falou: "O grande era uma parada. Mas peguei ele
bem com a perna da cadeira. Senão a gente não ganhava." Meu irmão estava
com a camisa rasgada e disse que foi a mulher que se atracou nele. "Não
bati mas tive de dar uma 'banda' nela. Juntou pé com cabeça. Depois que Hélio
dominou o grandalhão, foi barbada. Dei uma no de terno marrom que ele se mandou
pela escada." E eu disse: "Ficou tudo quebrado e a mulher que o
Coruja bateu não levantou, mas eu não vi sangue."
E ficamos relaxando um pouco quando
chegou um táxi e o doutor Coruja saltou esfregando os óculos com um lanho no
rosto. Hélio perguntou: "Como é doutor, se machucou?" "Nada, um
arranhãozinho à toa." E prosseguiu: "Puxa, agora estou satisfeito. Há
mais de três meses que eu estava para ir a esta forra."
"O quê?" — berramos em coro —
"O negócio foi há três meses!?" E Coruja explicou, calmamente:
"Foi sim e eu não bati nela porque estava acompanhada." Então meu
irmão perguntou: "Quer dizer que os caras que apanharam não eram os
mesmos?" Coruja respondeu: "Claro que não, meus poetas, mas o que tem
isto demais?"
Nesta altura, o sol já estava aparecendo
lá na Ponta do Boi, iluminando o primeiro dia do ano e desejando boas entradas
para a excelentíssima senhora mãe do doutor A. Coruja.” (http://www.releituras.com/jsaldanha_nenem.asp)
Fonte: http://www.literaturanaarquibancada.com/
Leia aqui a bibliografia de Neném Prancha:
http://mundobotafogo.blogspot.pt/2008/01/nenm-prancha-o-filsofo-da-bola.html
http://mundobotafogo.blogspot.pt/2008/01/nenm-prancha-o-filsofo-da-bola.html
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