[Paulo
Marcelo Sampaio é o autor destas crônicas, interpretando os protagonistas pelos
quais assina; as crônicas publicadas no Mundo Botafogo são uma gentileza do
autor.]
por Jorge Kaiuca*
Eram tempos de trânsito mais amistoso, menos linhas de ônibus, nenhum
‘frade’ nas calçadas. As fachadas dos prédios eram fachadas de prédios, sem
grades a encobrir portarias. Os Gordinis davam lugar para os Corcéis. Os
Itamaratys começavam a se render aos Galaxies. Não entendi muito bem essa onda
de nostalgia. Sempre fui homem prático, de acordar cedo, puxar os halteres
antes mesmo do sol raiar. Gostava da sensação de ter feito muita coisa até
abrir a minha lojinha, uma papelaria no início de Botafogo. Sim, havia muitas
papelarias no bairro, antes de ele ser invadido pelos shoppings, estes vilões
do pequeno comércio. Livrarias tradicionais também foram pra cucuias.
Não sei
o que me deu, mas bateu uma saudade de tudo isso. Talvez a nostalgia possa ter
sido alimentada pela visita de João Carlos Quaresma, nosso craque do voleibol,
do time que começou a campanha do undecacampeonato. Isso mesmo, onze vezes
seguidas campeão carioca. Sempre que alguém chega por aqui, traz uma novidade.
E, claro, o calendário dos jogos. Soube pelo Quaresma que dois dias depois
haveria jogo no Maracanã, contra o flamengo. Não tínhamos mais chances, mas me
deu vontade de descer à terra.
Poucos
segundos antes de deixar meu apartamento, que divido com Valtencir – aquele
mesmo que foi nosso lateral-esquerdo – ouço a campainha tocar. Olhei para o
amigo e fiz como aqueles cartazes que costumam decorar paredes de hospital. A
enfermeira de toquinha branca, dedo indicador sobre a boca fechada e a frase
“Psiu!”. Estava com pressa. Era uma sexta-feira. Valtencir preferiu não descer.
Mas me pediu para passar um fio para Niterói. Queria mandar beijos para Teca,
Ticiana e Igor. Bem eles estão, tenho certeza, me disse o lateral.
Quando Nilton Santos abriu a loja ali quase no Humaitá, no lado oposto onde
fica a Kaiuca, nos encontrávamos muito. Ele vinha a pé, três quilômetros e
meio. Era sua ginástica diária. Queria ouvir histórias de quem acompanhava as
partidas do lado de cá, a visão do alto das arquibancadas. Eu era conhecido dos
jogadores. Nas grandes ocasiões eu vestia o Manequinho, fincado ali no
Mourisco. No basquete, no vôlei, no remo, no aeromodelismo, lá estava a pequena
estátua vestida de preto e branco. Eu esperava a oportunidade, a hora
apropriada para botar em prática meu talento de alfaiate. E o tecido – ou
melhor, as camisas – tinham uma nobre procedência: a loja da Enciclopédia. Eu
usava tudo com muita parcimônia.
Ao chegar ao bairro, tive dificuldade de me locomover. Porque não
identificava as lojas da vizinhança. Onde está o Supermercado Oceano, onde
comprava litros de leite, do tipo A, daqueles em garrafa, para acalmar minha
úlcera? As pífias atuações do Botafogo na década de 80 provocavam isso. Estava
mergulhado nas lembranças, nos doces gordurosos árabes que a família,
tradicionalmente, degustava nos almoços de domingo, quando alguém puxou meu
braço. Era um senhor, esguio para seus 90 anos, que me reconheceu. Queria
comprar cartolinas para o neto. O negrinho, magro como o avô, tinha que fazer
um trabalho para a escola. Não tenho mais papelaria, senhor Bené. Passei dessa
para melhor. O crioulo deu um pulo pra trás, assustado. Calma, não faço mal a
ninguém, lhe disse.
Peguei
o menino pela mão e fui tratar de comprar o que ele queria. Tanta atenção tinha
um motivo. Ele era aluno da Escola Municipal João Saldanha, que também tive a
honra de conhecer. Dava gosto de ajudar. Compras feitas, ele quis me agradecer;
deu-me uma garrafa de Mineirinho, já pela metade. Recusei. Mas não disse o
motivo. Não poderia beber um refrigerante criado em Ubá, mesma terra de Ary
Barroso, aquele flamenguista mal-humorado que cruzo vez por outra lá no céu.
Era hora de me recolher.
Imaginei onde era o quartinho de Neném Prancha e me desmaterializei. Só até
domingo. Antes de partir para o Maracanã, passei pela capelinha com a imagem de
Nossa Senhora da Conceição. O jogo não valia nada pra gente, mas nunca é demais
pedir proteção. Mas o rival poderia levantar o título. “Que mistério! Que
mistério!”, eu repetia em voz alta. Como assim? Levantar uma taça sem final? Um
vizinho explicou. “Coisas do Rubinho. E o pior é que os clubes concordam. Nosso
presidente é até aliado dele!”. Rubinho é Rubens Lopes, presidente da
Federação. Notei o descaso do time com o jogo. Por que tanto desinteresse? O
torcedor, depois da revolta, deu de ombros. “Nosso negócio é a Libertadores!” A
vantagem dos fantasmas é que não dependemos de avião. Até Quito!
* Jorge Kaiuca era comerciante.
Notas do editor:
1. O texto acima mistura realidade e ficção.
2. Meu muito obrigado a Flamínio Lobo, que me sugeriu ‘psicografar’ o
Kaiuca.
4. Videografia: TV Manchete, Manchete Esportiva, reportagem de Ricardo
Incarnação.
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