segunda-feira, 24 de março de 2014

O alfaiate do Manequinho

[Paulo Marcelo Sampaio é o autor destas crônicas, interpretando os protagonistas pelos quais assina; as crônicas publicadas no Mundo Botafogo são uma gentileza do autor.]

por Jorge Kaiuca*

Eram tempos de trânsito mais amistoso, menos linhas de ônibus, nenhum ‘frade’ nas calçadas. As fachadas dos prédios eram fachadas de prédios, sem grades a encobrir portarias. Os Gordinis davam lugar para os Corcéis. Os Itamaratys começavam a se render aos Galaxies. Não entendi muito bem essa onda de nostalgia. Sempre fui homem prático, de acordar cedo, puxar os halteres antes mesmo do sol raiar. Gostava da sensação de ter feito muita coisa até abrir a minha lojinha, uma papelaria no início de Botafogo. Sim, havia muitas papelarias no bairro, antes de ele ser invadido pelos shoppings, estes vilões do pequeno comércio. Livrarias tradicionais também foram pra cucuias.

Não sei o que me deu, mas bateu uma saudade de tudo isso. Talvez a nostalgia possa ter sido alimentada pela visita de João Carlos Quaresma, nosso craque do voleibol, do time que começou a campanha do undecacampeonato. Isso mesmo, onze vezes seguidas campeão carioca. Sempre que alguém chega por aqui, traz uma novidade. E, claro, o calendário dos jogos. Soube pelo Quaresma que dois dias depois haveria jogo no Maracanã, contra o flamengo. Não tínhamos mais chances, mas me deu vontade de descer à terra.

Poucos segundos antes de deixar meu apartamento, que divido com Valtencir – aquele mesmo que foi nosso lateral-esquerdo – ouço a campainha tocar. Olhei para o amigo e fiz como aqueles cartazes que costumam decorar paredes de hospital. A enfermeira de toquinha branca, dedo indicador sobre a boca fechada e a frase “Psiu!”. Estava com pressa. Era uma sexta-feira. Valtencir preferiu não descer. Mas me pediu para passar um fio para Niterói. Queria mandar beijos para Teca, Ticiana e Igor. Bem eles estão, tenho certeza, me disse o lateral.

Quando Nilton Santos abriu a loja ali quase no Humaitá, no lado oposto onde fica a Kaiuca, nos encontrávamos muito. Ele vinha a pé, três quilômetros e meio. Era sua ginástica diária. Queria ouvir histórias de quem acompanhava as partidas do lado de cá, a visão do alto das arquibancadas. Eu era conhecido dos jogadores. Nas grandes ocasiões eu vestia o Manequinho, fincado ali no Mourisco. No basquete, no vôlei, no remo, no aeromodelismo, lá estava a pequena estátua vestida de preto e branco. Eu esperava a oportunidade, a hora apropriada para botar em prática meu talento de alfaiate. E o tecido – ou melhor, as camisas – tinham uma nobre procedência: a loja da Enciclopédia. Eu usava tudo com muita parcimônia.

Ao chegar ao bairro, tive dificuldade de me locomover. Porque não identificava as lojas da vizinhança. Onde está o Supermercado Oceano, onde comprava litros de leite, do tipo A, daqueles em garrafa, para acalmar minha úlcera? As pífias atuações do Botafogo na década de 80 provocavam isso. Estava mergulhado nas lembranças, nos doces gordurosos árabes que a família, tradicionalmente, degustava nos almoços de domingo, quando alguém puxou meu braço. Era um senhor, esguio para seus 90 anos, que me reconheceu. Queria comprar cartolinas para o neto. O negrinho, magro como o avô, tinha que fazer um trabalho para a escola. Não tenho mais papelaria, senhor Bené. Passei dessa para melhor. O crioulo deu um pulo pra trás, assustado. Calma, não faço mal a ninguém, lhe disse.

Peguei o menino pela mão e fui tratar de comprar o que ele queria. Tanta atenção tinha um motivo. Ele era aluno da Escola Municipal João Saldanha, que também tive a honra de conhecer. Dava gosto de ajudar. Compras feitas, ele quis me agradecer; deu-me uma garrafa de Mineirinho, já pela metade. Recusei. Mas não disse o motivo. Não poderia beber um refrigerante criado em Ubá, mesma terra de Ary Barroso, aquele flamenguista mal-humorado que cruzo vez por outra lá no céu. Era hora de me recolher.

Imaginei onde era o quartinho de Neném Prancha e me desmaterializei. Só até domingo. Antes de partir para o Maracanã, passei pela capelinha com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. O jogo não valia nada pra gente, mas nunca é demais pedir proteção. Mas o rival poderia levantar o título. “Que mistério! Que mistério!”, eu repetia em voz alta. Como assim? Levantar uma taça sem final? Um vizinho explicou. “Coisas do Rubinho. E o pior é que os clubes concordam. Nosso presidente é até aliado dele!”. Rubinho é Rubens Lopes, presidente da Federação. Notei o descaso do time com o jogo. Por que tanto desinteresse? O torcedor, depois da revolta, deu de ombros. “Nosso negócio é a Libertadores!” A vantagem dos fantasmas é que não dependemos de avião. Até Quito!

* Jorge Kaiuca era comerciante.

Notas do editor:
1. O texto acima mistura realidade e ficção.
2. Meu muito obrigado a Flamínio Lobo, que me sugeriu ‘psicografar’ o Kaiuca.
4. Videografia: TV Manchete, Manchete Esportiva, reportagem de Ricardo Incarnação.

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