por Silvana Goellner
28 de Janeiro de 2012
A história das
mulheres no universo cultural do esporte brasileiro é marcada por rupturas,
persistências, transgressões, avanços e recuos. Desde meados do século XIX,
elas se fazem presentes nas arenas esportivas como espectadoras e praticantes.
No entanto, é a partir das primeiras décadas do século XX que essa
participação se ampliou e consolidou.
Com
a independência do Brasil, a chegada de imigrantes europeus e a
propagação dos ideais higienistas, esse contexto
gradativamente começou a se alterar, em especial para as mulheres da
elite, visto que tinham maior acesso aos bens culturais, à
escolarização e às novidades advindas do continente europeu, dentre
as quais, a prática da ginástica e de algumas modalidades
esportivas tais como o turfe, o remo, a natação, a esgrima, o
tênis, o arco e flecha e o ciclismo.
Ciclista, Porto Alegre, 1896. Fonte: Centro de
Memória do Esporte – UFRGS
Por certo que a
presença de mulheres exercitando-se fisicamente se traduzia como uma
novidade nesse tempo, pois sob a égide do romantismo na literatura, as imagens
associadas às mulheres brasileiras eram imagens românticas. Mulheres lânguidas
e gráceis, portadoras de gestualidades comedidas e delicadas, cuja educação
estava voltada, prioritariamente, para o casamento e a maternidade.
Essa imagem, mesmo que fosse bastante divulgada na literatura e em outros
espaços sociais, não perdurou por muito tempo. Os médicos, em especial,
os higienistas, iniciaram a proclamar os benefícios que o exercício físico trazia
para as mulheres proporcionando-lhes melhores condições orgânicas não só
para enfrentar a maternidade mas, inclusive, para embelezá-las. A
prática esportiva passou a ser identificada, também, como um espaço de
exercício de sociabilidade, cuja adesão colocava em evidência
atitudes e hábitos pertinentes a um modo moderno e civilizado de
ser.
É necessário lembrar,
ainda, que nos primeiros anos do século XX a população brasileira era composta,
majoritariamente, por negros escravos ou descendentes. Essa
composição étnica se tornou alvo de diferentes intervenções em nível nacional
cujos objetivos estavam direcionados para o refinamento da raça visto que
os negros eram considerados como seres inferiores. Baseados na teorização
darwinista de que a atividade física atuava no robustecimento orgânico e,
portanto, no aprimoramento da espécie, buscava-se uma educação
corporal e esportiva que, pautada por um estatuto científico e ao
mesmo tempo moral, estivesse articulada à medicina e às normas jurídicas fortalecendo
a raça branca – ideal imaginário de um povo ameaçado pela mestiçagem.
Partida de Tênis – Clube Atlético Paulistano, 1918.
Fonte: Museu da Imagem e do Som.
Médicos,
intelectuais, militares, dirigentes políticos, professores, instrutores de atividades
físicas se integraram a esse projeto e, através da especificidade de sua
intervenção no plano social e educacional, não pouparam esforços para
consolidá-lo. Das várias ações desenvolvidas em prol deste
fortalecimento, destaca-se uma delas: o fortalecimento do corpo feminino,
pois acreditava-se que a regeneração físico-moral de uma população só se
completaria se o aprimoramento físico também se estendesse à mulher,
identificada então como “a célula-mater da nação”.
Esse argumento figura
no primeiro livro escrito por um autor brasileiro sobre educação
física e esporte para mulheres, publicado no ano de 1930, no qual
se lê:
Nunca será
demasiado encarar a importância do esporte para a mulher. Quanto mais nos
aprofundarmos nos estudos tendentes a efetivar a eugenia da raça, nas pesquisas
destinadas a solucionar os problemas relativos à saúde humana, a dar ao homem e
à mulher o máximo de sua eficiência física para a vida, mais nos compenetramos
da importância capital da Educação Física feminina. É mister que nos
convençamos da verdade irrefutável desse dogma – a mulher precisa de
esporte! Precisamos identificar a mulher com a prática racional dos exercícios
físicos, educá-la para uma compreensão elevada dessa forma salutar de atividade
que, tanto contribui para a conservação de sua saúde e de sua beleza, para a
manutenção de sua mocidade e de sua eficiência (RANGEL SOBRINHO, 1930, p. 21).
Nesse contexto
a imagem da mulher maternal, bela e feminina revela um desejo
produzido e expresso pelo imaginário social de um país que identificava na
mulher um elemento importante para a sua modernização. Juventude,
beleza, ousadia, disposição, saúde, perseverança, dedicação, prudência,
representavam virtudes possíveis de serem conquistadas diante a
participação das mulheres em diferentes espaços sociais, dentre eles, aqueles
nos quais se realizavam as atividades físicas e esportivas.
Essa “nova mulher”
ao mesmo tempo que mostrava-se como uma figura inovadora era, também, observada
como alguém que desestabilizava a representação da mulher romântica voltada
para a família, o recato e a honra. A prática esportiva, o cuidado com a
aparência, a mudança de atitude, o desnudamento do corpo, o uso de artifícios
estéticos, conferiam a essa imagem novos contornos externando, como possíveis,
outras experiências que não apenas aquelas valorizadas como integrantes de sua
“natureza”.
Uma delas: não sei como ela tem coragem de usar um
malliot tão indecente. Fonte: Revista de Ed. Physica, n. 45, agosto de 1940.
Enfim, para
além das questões nacionalistas de fortalecimento do corpo feminino, a inserção
da mulher no esporte não resulta apenas desse investimento. Deve ser observada
não como uma concessão mas como uma conquista de diferentes mulheres para as
quais o esporte representava, também, um espaço de visibilidade não apenas como
espectadora ou co-participe de uma aparição, mas, fundamentalmente, como sua
principal protagonista. Ainda que o discurso da maternidade sadia e do
aprimoramento da raça fosse marcadamente produzido e reproduzido não foi apenas
em seu favor que as mulheres aderiram à sua prática: ele sinalizava novos
tempos diante dos quais o arcaico confinamento das mulheres no interior do
espaço privado simbolizava falta de cultura e de civilização. O esporte
modernizou a mulher!
Para refletir:
Se nos primórdios da
história do esporte no Brasil a participação das mulheres restringia-se
quase que predominantemente a assistência e ao acompanhamento de seus
maridos e familiares, na atualidade, ela é infinitamente mais
ampla e diversificada: as mulheres deixaram de ocupar apenas o espaço de
espectadoras para tornarem-se, também, praticantes, atletas,
técnicas, gestoras, árbitras, comentadoras…
Jogadoras de basquetebol - Década de 1930. Fonte:
Clube Esperia – São Paulo.
Todavia, isso não
significa afirmar que homens e mulheres tenham as mesmas oportunidades no campo
esportivo ou que preconceitos quanto à participação feminina inexistam. Não é
raro, ainda hoje, encontrar nas escolas de primeiro e segundo graus disparidades
relevantes no que se refere ao acesso de meninas e meninos nas atividades
esportivas realizadas nas aulas de educação física. Essa mesma situação pode
ser observada nos espaços de lazer, na gestão esportiva, no investimento de
clubes, enfim, em diversos instâncias nas quais o esporte se desenvolve.
Ainda assim é
extremamente relevante enfatizar: entre rupturas e conformismos, as mulheres há
muito estão presentes no esporte brasileiro ainda que, muitas vezes, o discurso
oficial as tenha deixado nas zonas de sombra.
Referências
bibliográficas:
RANGEL SOBRINHO,
O. Educação Physica Feminina. Rio de Janeiro:
Typografica do Patronato, 1930.
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