sexta-feira, 24 de julho de 2009

Charlie Brown é Botafogo

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por Arnaldo Bloch
11 de Julho de 2009


“Noite dessas, dias atrás, sonhei que o Botafogo ganhou um jogo. Não me lembro contra quem. O acontecimento era esse: ganhar um jogo, só isso. Um chute meio cruzado, estou no alto das arquibancadas (lá onde passavam antigamente os fusquinhas da PM), prestando atenção em alguma outra coisa, alguém num quarto, essas estranhezas de sonho, um quarto com uma mulher no alto do Maracanã, uma alcova de concreto, de forma que não presto atenção ao jogo. De repente, ouço uma zoeira tremenda e, de um pulo, já estou no fundo do gramado, como se o quarto com a mulher estivesse agora localizado na geral, e corro como louco, vou ver o que é, e é todo o povo que está lá no fundo do campo, atrás do gol, abraçando a trave, o tento, aliás, marcado aos 40 do segundo tempo, anunciando a vitória, um advento tão importante, relativamente, quanto a perspectiva da vinda de um messias.

No alto vejo o telão que vai passar o replay, mas a dinâmica do sonho já voltou para o quarto, a mulher, na geral, no alto, quem é?, Sonja? Mamãe? Simone de Beauvoir? Bovary? Beth Carvalho? Michael Jackson?, e daí acordo e vou fazer aquele pipi difícil que sucede aos sonhos confusos, testosterona existencialista. Sorte que na cozinha há ainda umas castanhas do Pará no reservatório, aquela overdose de selênio, diz Gregory House que se comer demais descama toda a pele e daí para a tumba é um pas de deux.

No meio do caminho da cozinha para o quarto, numa das mesas da sala, junto ao tabuleiro de xadrez, está a edição luxuosa com o primeiro volume da integral de Charles M. Schulz com seus Peanuts, desde os primeiros traços, quando Charlie Brown é ainda um personagem rabiscado, sádico, cínico, ora sorridente, ora raivoso. No decorrer do volume vamos percebendo a evolução do traço para um maior refinamento, e da personalidade, quando a amargura de Charlie Brown, filtrada por uma precoce intuição humanista, transmuta-se em amargura salomônica, consciência de que tudo é transitório, de que a vaidade impera e de que o fracasso é o default da humanidade, daí toda tese hegemônica, nos esportes, nas guerras, nos negócios, nos projetos de marketing, desaguar sempre numa variação de fascismo. Charlie Brown, de seu montinho de lançamento, cujo time de baseball nunca ganhou um jogo, Charlie Brown, presa fácil das traquinagens de Lucy, Charlie Brown, com seu sorriso vacilante crivado de esperança de que um dia algo dará certo, Charlie Brown, amigo triste de Benito di Paula.

“Charlie Brown é Botafogo”, reflito, a caminho do quarto. Ele sabe que a vitória não é o padrão, que nenhuma hegemonia dura por toda a eternidade, ele sabe da vocação decisiva da humanidade para a derrota. Charlie Brown sabe que a ideia civilizacional, no sentido do triunfo de uma certa evolução, é uma farsa, uma perversão, um desvio da natureza na direção do caos, a beleza que não passa de ilusão antropocêntrica.

Como diz o Hugo Sukman, nosso negócio não é ganhar. Queremos ganhar, mas ganhar não é o sentido primeiro da vida, perder faz parte dela, se eu perder não vou me atirar pela janela, não vou alvejar as janelas de General Severiano. A nação alvinegra (no sentido inverso daquela outra) é a nação que passou pela guerra, que sabe do frio, dos tempos de vacas magras, do medo da tirania, a nação alvinegra sabe o que é ser minoria, a nação alvinegra é nação de formigas, que poupam no inverno para colher no verão, ainda que o verão seja a redenção de um juízo final.

Charlie Brown é Botafogo, meu amigo de primeira, segunda, terceira, quarta, quinta divisão, meu amigo de clube que nem time mais tem, aqueles aficionados que guardam a flâmula debaixo do travesseiro para lembrar de uma glória que passou nos tempos do avô, mas ainda assim uma glória, glória de quem guerreou e venceu aquela batalha ínfima, que atravessou um fio de correguinho e reconquistou o galinheiro usurpado pelo vizinho.

É com este sentimento que volto para a cama, reconciliado com minha humanidade. O Dapieve me disse, na Flip, que o Botafogo vai cair, que não tem o pathos, o pathos era o Maicosuel, o ídolo mais fugaz da história alvinegra, talvez de toda a história do futebol mundial, quiçá dos desportos mundiais de todos os tempos. E o Reinaldo está bichado, como disse o Casagrande no SporTV: não se pode montar um time contando com o Reinaldo, um atleta de qualidade mas que, a cada temporada, passa três meses fora de combate.

Mas fujamos às especificidades, fujamos aos nomes, às explicações, que são meras aproximações de algo longe de se assemelhar à realidade. A realidade é que o Ronaldo, a cada gol que faz, fica mais gordo, aquela barriga obscena é quase um discurso, a barriga de Ronaldo diz: “Eu, barriga, aqui alheia aos gols com os quais ninguém sonha mais, gols do arco-da-velha, gols que não demandam força bruta, gols que se fazem com o cérebro, gols que, amanhã, serão descritos num pergaminho sem necessariamente realizarem-se num campo de futebol”.

Tenho ainda esperança de que Ronaldo, com 150 quilos, venha marcar seu milésimo gol vestindo a camisa do Botafogo, e dali saia diretamente para o hospital, mas ele voltará na rodada seguinte, carregado numa bandeja como Abracurcix, para levantar a taça.”

Imagem:
Ilustração de A.B. em homenagem a Charles Schulz
Fonte:
Blogue do Arnaldo Bloch
http://oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/posts/2009/07/11/charlie-brown-botafogo-204057.asp

4 comentários:

Anónimo disse...

Que maravilha de texto do Arnaldo Bloch! fiquei arrepiado só de ler... Se Charle Brown é Botafogo o Snoopy é o Biriba, agora quem será o Woodstock?

Sergio Di Sabbato disse...

Eu acho que o Woodstock é o nosso querido Garrincha. Abs e SB!

snoopy em p/b disse...

puts, terminei a leitura deste texto arrepiado.
impressionante a identificação que tive com ele.
só não gostei do final, mas isso é o de menos.
sérgio, tudo a ver com o garrincha, leve e solto.
bruno, meu apelido, snoopy, nasceu por causa das orelhas do cachorrinha. não porque tenho orelhas grandes, não é. mas porque, quando eu corria, meus cabelos pulavam muito, assim como as orelhas do snoopy. daí, imagina só a coincidência de torcer para o botafogo e ver o snoopy ser preto e branco e uma caricatura absolutamente simpática!!!
daí, me tornei fã do desenho.

valeu, amigos!
abraços

Ruy Moura disse...

Queridos amigos, um grande abraço para cada um de vós. Ao Bruno. Ao Sérgio. Ao Fábio snoopy.

Queremos o nosso Botafogo de volta!

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