domingo, 4 de outubro de 2015

Carta aos filhos

Nota preliminar: Crônicas de ficção da autoria de Paulo Marcelo Sampaio, editor do blogue Arquiba Botafogo, neste caso assumindo a personalidade de João Ignácio Müller, um querido amigo que ambos perdemos e que sempre foi dedicado ao Botafogo, quer como Conselheiro e médico nos tempos dourados quer como colunista na Rede Mundial até aos seus últimos dias de vida.

Caras Karla e Karen, caro Paulo Rubens:

vocês não me conhecem, mas não estranhem essa carta. Fui colega do seu pai. Contemporâneos, muito provavelmente. Talvez tenhamos nos esbarrado em algum desses hospitais públicos da vida. Quem me falava muito dele era o Paulo Marcelo. Com esse sim, querido amigo, convivi por um bom tempo. Ele passava por um momento conturbado. E pra completar… o nosso Botafogo, ah o nosso Botafogo, nada de ajudar. Abro parêntese – Luiz Antônio, um amigo de meu filho Marquinho costuma dizer. ‘Se existe aquela máxima de azar no amor, sorte no jogo, isso não se aplica ao Glorioso’. Fecho parêntese. Pois bem! Depois dessa curta apresentação, quero lhes contar as últimas daqui de cima. Fernando Pompeu, que nos conhece há muito tempo, tratou de nos dar a alcunha de médicos dos países baixos. Por conta das nossas especialidades: eu, procto e ele, uro.

A afinidade era tanta que nem me lembrei de perguntar o nome do colega. Quando soube, fiquei surpreso. Ele achou um tanto estranho meu espanto. Tratei de explicar. Numa de minhas andanças pela Europa – não me perguntem o museu que não me lembro – elegi uma de minhas pinturas preferidas: Hipócrates retratado por Peter Paul Rubens. Não é coincidência que logo a figura do pai da Medicina tenha inspirado um xará seu?, perguntei. Temos conversado muito. Um ano antes de vir pra cá, passei por poucas e boas. Achei que fosse embora. ‘O Marcelinho me dava notícias suas’, me revelou doutor Paulo. Ficava preocupado, me disse ele, que eu não saísse dessa. ‘Você, João Ignácio, estava bem acompanhado. Os ares de Maranguape estavam lá no CTI, com o Chico Anísio, meu conterrâneo”. E continuou: ‘Tenho uma regra. Uma boa conversa numa consulta prolongada é melhor do que qualquer remédio. Às vezes a doença está na cabeça, no coração. E simples palavras podem curar.’ Logo percebi que estava diante de um médico tão ou mais zeloso do que eu. ‘Vamos combinar uma coisa, João Ignácio?”, me perguntou doutor Paulo. ‘Aqui ninguém é doutor. Somos colegas.’ Então me chame de Jim, meu apelido entre os botafoguenses, lhe pedi. ‘Pois, Jim, no meu leito de morte encontrei nossa alma gêmea. A Aline Affonso, manda-chuva do CTI, tão novinha e praticando uma medicina das antigas. Enquanto fazia minha passagem, senti sua mão macia no meu rosto. Vim tranquilo pra cá. Afinal, com todo o respeito, quem não gosta de carinho de mulher bonita?’ Sorri. E, confesso, Karlinha, Paulo Rubens e Karen, que chorei em seguida. Logo eu, explosivo, polêmico, me derretendo como uma manteiga. ‘Somos parecidos, Jim. Explodimos e logo buscamos a conciliação. Nossos filhos entendem isso’.

Não bastasse a rotina puxada tão comum aos médicos, tínhamos mais pontos em comum. Fui diretor médico do Botafogo. E Paulo, me contou ele, pra complementar a renda teve que se virar como médico assistente de um certo clube no Leblon. Até o dia em que deu um pique de 50 metros para atender um jogador. Esbaforido, foi ouvir o gringo. ‘Estoy muy cansado. No hay nada a hacer”. Dali em diante desistiu de prestar serviços a farsas e cinismos. Tive mais sorte. Trabalhei no clube sem sempre amei, como disse acima. De quebra, meu filho ainda era o mascote do time. “Ih, Jim, fiquei devendo essa pro meu filho’. Deve nada, Paulo, deve nada. ‘Mas joguei muito futebol de botão com eles, Jim. E me divertia quando ganhava.’. Não acreditei no que ouvia. Não só fazia isso com meu filho como mantinha um campeonato quase profissional no segundo andar da casa onde morava, na rua Redentor, em Ipanema.

Vimos aqui de cima a bandeira a meio-pau, antes mesmo da chegada do Paulo. Fui comentar com o João Saldanha. Será que morreu mais um cartola, daqueles que só atrapalhavam do que ajudavam? Claro que era uma provocação. Afinal de contas, o clube fizera o mesmo por mim. O que Paulo não contava – ele me contou aqui – era com o minuto do silêncio. Nos últimos tempos, perguntava todos os dias quanto tinha sido o jogo, reflexo do Alzheimer. Mas, quando não sofria do mal, não acompanhava as partidas. Ficava muito nervoso. Lembrou do tricolor Nelson Rodrigues. “Brasileiro vaia até minuto de silêncio”. Não vaiaram, é verdade. Mas a Loucos não abriu mão dos incentivos de praxe. ‘Não importa, Jim. O que importa, veja lá, é o discurso do meu xará’, disse, apontando para Paulo Rubens, o filho, tricolor como Nelson. ‘Este sempre foi bom orador. Tem o raciocínio acostumado a interpretar os grandes filósofos. Já o Marcelinho, Jim, seu amigo, coitado, esse gagueja em público’. E sorriu.

Assistimos tudo. Voz embargada, prendendo o choro, fungando muitas vezes, Paulo Rubens lembrou das vezes em que acompanhou a felicidade do irmão nos grandes momentos do Botafogo. E também, claro, de algumas tristezas, que não são tão algumas assim, como aquele lençol humilhante que Dinamite deu em Osmar, antes do arremate de placa. ‘Eu não merecia isso, Jim, eu não merecia isso’, repetia repetida e obcecadamente. Aqui de cima vimos os quatro gols. Ouvimos até o desejo de você, Karen, que depois do terceiro gol, comentou. “Podia ser quatro gols, um pra cada filho”. Pois saibam que ‘seu’ Carlito mexeu os pauzinhos com Nossa Senhora da Conceição e quem pagou o pato foi o atlético goianiense. Quando o juiz apitou o fim do jogo, Paulo se virou pra mim e disse: – só há uma certeza na vida. A morte?, o interrompi, burramente, tentando adivinhar uma resposta óbvia. ‘Não, Jim! A certeza de que consegui construir a união entre quatro irmãos. E isso é pra sempre’. Meu mais novo amigo, velhinho e magrelo, tentou colocar a mão no meu ombro, mas não conseguiu. Muito mais alto, lhe dei uma gravata carinhosa. ‘Vem comigo, Paulo, a Elena te espera’.

São essas as últimas do lado de cá, como dizia o santo Agostinho.

O abraço cordial do
João Ignácio

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