por NENÉM PRANCHA*
Doutor Jorge Aurélio:
quem
fala a verdade não merece castigo. Já faz tempo que, conversando com o Toucinho
e o Aluísio Birruma, queria notícias daí. Bateu uma saudade do nosso Botafogo.
Procurei então o João Saldanha, ex-zagueiro do Posto Quatro, meu time de praia
lá pelos anos 40 do século passado. É que, apesar de me chamarem de filósofo do
futebol, não sei escrever nada bem. Eu falava as frases e ele tratava de
popularizar. Então resolveu me ajudar a redigir essa carta. Dadas as
explicações necessárias, vamos ao que interessa. Já conhecia o senhor de vista.
Eu treinava o Botafogo, da Divisão de Amadores da Federação Carioca de Futebol
de Praia. Todas as tardes de sábado, depois de caminhar à tardinha no calçadão,
vindo do Leme, o senhor parava pra conversar. Enquanto eu enchia bolas para a
gurizada, conversávamos sobre o Heleno de Freitas, o Carlinhos, o Ronald Alzuguir,
o Haroldo, todos eles saídos das areias para brilhar nos gramados.
Certo
dia vivemos um dia engraçado. Na varanda do palacete de General Severiano, o
senhor e o João conversavam sobre política, assunto que não conheço nadinha. ‘O
Botafogo é mesmo diferente. Dos quatro candidatos a presidente , três têm
apelidos. Teté, Cacá e Tuneca. Só quem escapou foi você, Jorge’, dizia o João
com o candidato da sua preferência. ‘Ôhhh, Neném, ôh Neném, vem aqui’, me
chamou o João. ‘Lembra que o dinheiro andava curto por aqui?’, perguntou.
Lembro sim, João, respondi. Nessa época jogava um rapaz chamado Laranjeira, que
era quem mais chiava com a pouca comida. Um dia perguntaram pra mim: – cadê o
Laranjeira? Foi pro hospital com indigestão, respondi. Quem fez a pergunta se
assustou. Onde teria Laranjeira arranjado o que comer. Expliquei. Ele sonhou
que tinha comido um peru e apanhou uma indigestão. Todos caímos na gargalhada.
Bons aqueles tempos, tempos que eu tinha meu apartamentinho de vinte metros
quadrados debaixo das arquibancadas do nosso estádio. Por que não voltamos pra
lá, presidente?
Senta
aqui, Neném, disse o senhor, puxando uma daquelas cadeiras de vime. E logo me
perguntou. ‘É verdade que o Cao queria ser atacante?’ Queria sim. O Macaé
chegou lá na areia com o garoto. Olhei aquelas mãos enormes e fui logo dizendo
que ele ia pro gol. Acho que fiz bem. Pena que nem sempre me escutaram. Um dia
levei o Junior pra General Severiano. Depois do teste disseram que por aqui
tinha uns quatro iguais a ele. Paciência. Aqui em cima vemos tudo. No nosso
penúltimo jogo, contra o paysandu, vi que o professor Braz Pepe estava a seu
lado, doutor Jorge Aurélio. Ele berrava: “Esse time não corre. Meu Deus, corram
pra chegar”. Sorri aqui e me lembrei daquela minha frase. “Jogador tem que ir
na bola como se fosse um prato de comida”.
Ando
meio sem ânimo pra ver futebol. Mas chegou agora há pouco um senhorzinho,
magro, baixo e cearense como o Chico Anísio. Soube aqui em cima que o Botafogo
tinha colocado a bandeira a meio pau em sua homenagem. Paulo Sampaio, médico
que tinha gosto em atender os humildes, é botafoguense contido. Que não aguenta
ver os jogos até o final, por conta do nervosismo. ‘Ôh Saldanha, disse o
recém-chegado, você sempre falou que quando via a bandeira do Botafogo a meio
pau, pensava: ‘Agora que morreu mais um dirigente, vamos dar certo’. Não é o
meu caso, né, Saldanha?” Saldanha sorriu com o canto da boca, apertou sua mão e
disse. ‘Tenho certeza que seremos grandes amigos. Porque da dona Elena, sua
mulher, já sou amigo. Daqui a pouco vamos vê-la’. Doutor, já ansioso, observou.
‘Não esperava que eu fosse receber tamanha homenagem, Saldanha. A mesma que
você recebeu’, disse Paulo. ‘Esquece isso, doutor. Estamos todos no mesmo
barco. Se éramos iguais lá embaixo, imagina aqui em cima’, emendou o João Sem
Medo. Por aqui é assim. Amizades nascem a toda hora.
Desculpa me alongar, doutor Jorge Aurélio, mas ando preocupado depois do
jogo de ontem contra o crb. Entra goleiro, sai goleiro, de seleção ou não, e
continuamos a tomar gols fáceis. Ah, se Jefferson e Helton Leite tivessem me
conhecido… Teve um jogo na praia que não aguentei. O goleiro sempre se
ajoelhava pra pegar a bola. Enchi o saco e chamei o reserva. ‘Menino, vai pro
gol e diz pro Pitombo que lugar de se ajoelhar é na igreja.’. Faça, caro doutor
Jorge Aurélio, chegar a eles um conselho que dei pro George Leone, um garoto
que treinei na praia. ‘A função do goleiro, garoto, é engolir as menas bolas
possível”.
* Com a colaboração de João Saldanha
PS: Há verdades encaixadas nesse texto, que é peça de ficção.
NOTA do Mundo Botafogo: Estas crônicas ficcionadas são da autoria de Paulo Marcelo Sampaio, editor do blogue Arquiba Botafogo.
Bibliografia: Zamora, P. (1975). Assim
falou Neném Prancha. Editora Crítica.
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