por NELSON RODRIGUES
In Manchete Esportiva, 04.08.1956
Crônica sobre Botafogo 0x0 Vasco da Gama, 29.07.1956
Todos os torcedores
de futebol se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Têm o mesmo
comportamento e xingam, com a mesma exuberância e os mesmos nomes feios, o
juiz, os bandeirinhas, os adversários e os jogadores do próprio time. Há,
porém, um torcedor, entre tantos, entre todos, que não se parece com ninguém e
que apresenta uma forte, crespa e irresistível personalidade. Ponham uma barba
postiça num torcedor do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as
impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por quê?
Pelo seguinte: - há,
no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto eu: -
por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é
o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os 90 minutos. E,
no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso
time esteja perdendo de 15 a 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a
virada, ainda esperamos a reação.
Pois bem: - o
torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera
precisamente a derrota. Os outros comparecem na esperança de saborear como um
chicabom o triunfo do seu clube. Mas o torcedor do Botafogo é diferente: - ele
compra o seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e
inalienável, de sofrer. Eis a verdade: - ele não vai a campo ver futebol.
O futebol é um
detalhe secundário e, mesmo, desprezível. Ele quer, acima de tudo,
desgrenhar-se, esganiçar-se, enfurecer-se e rugir contra Zezé Moreira. No dia
em que retirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e,
sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará
inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino.
Tudo na vida é uma
questão de hábito. E o cidadão que padece todos os dias acaba se afeiçoando ao
próprio martírio ou mais do que isso: - o martírio torna-se insubstituível como
um vício funesto. É o caso da torcida alvinegra que, desde 1910, sofre e, ao
mesmo tempo, xinga Zezé Moreira. Conclusão: - já não pode viver sem uma coisa e
outra.
Por exemplo: - o
clássico de ontem, no Maracanã, foi o que se chama de jogo ideal para o
torcedor do Botafogo. Já durante a semana, ele vivera mergulhado no pessimismo
como um peixinho no seu aquário. E, ontem, finalmente chegou o grande dia: - a
torcida alvinegra sofreu como nunca e rugiu, como nunca, contra Zezé Moreira.
De fato, o Vasco exerceu um feroz, um maciço domínio de 80 minutos.
E mais: - o Vasco deu
show, jogou bonito, brilhou escandalosamente como um Sol. No intervalo do
primeiro para o segundo tempo, encontro um amigo botafoguense. Exultante com o
próprio sofrimento e com o próprio furor, ele veio, para mim, de braços
abertos. Do lábio, pendia-lhe a saliva pesada e elástica de uma cólera sagrada.
Agarra-me e rosna-me, ao ouvido: - Esse Zezé Moreira é um tarado! E repetia,
atirando patadas ao chão: - Tarado.
A princípio, pensei
num crime sexual ainda impune, praticado nalgum terreno baldio. Pálido, quero
saber por que tarado. Então, o amigo explica-me: - porque pusera o Bauer no
lugar de Pampolini! E essa substituição parecia, ao meu conhecido, o sintoma
inconfundível de uma tara tenebrosa. O diabo é que todo o esforço e todo o
brilho do Vasco não renderam mais que um franciscano empate de 0 a 0. Acresce
que, nos 10 minutos finais, o Alvinegro reage dramaticamente e quase ganha o
jogo.
Fonte secundária: http://blogdorobertoporto.blogspot.com.br
2 comentários:
Mário Filho e Nelson Rodrigues,mesmo não sendo botafoguenses,descreviam tão perfeitamente o BOTAFOGO,o que é ser Botafogo,que fica díficil quem também não é discordar de algo dito por eles.
E digo mais o botafoguense vai ao jogo pelo Botafogo e por isso a vitória se torna um mero detalhe.Os torcedores de outros clubes são o inverso.
A nossa torcida já tinha esse perfil de passionalidade disfarçada de pessimismo desde sempre a meu ver pelo simples fato de ser um clube fundado por garotos.
Quem em sã consciencia teria um otimismo vendo meninos x velhos jogando futebol no inicio dos anos 1900(no seu blog tem um post sobre como se portava a nossa torcida) com favoritismo obvio dos mais velhos.
E quem era Botafoguense naqueles tempos iam pra ver aquela agremiação rodeada de meninos que querendo ou não,era o mesmo que ir para ver o Botafogo,então se os meninos mostrassem amor ao clube que fundaram,certamente a torcida seguiria esse mesmo caminho.
É só ver o perfil de um Dinorah,Carlito Rocha(como jogador),Abelardo de Lamare(em 1911),ou seja,nossa torcida não podia ser menos passional que a vontade de vencer dos jogadores nesse período,entende???
Paulo Mendes Campos já dizia que o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol.
Ps.: Não conheço outro clube com tamanha devoção quanto o Botafogo desde os seus primórdios,tanto no Regatas quanto Futebol.
Acredito que o Botafogo precisa olhar pra dentro de si e entender seu real tamanho,e parar de olhar pra fora e acreditar no que a mídia diz a nosso respeito(que se apequenou). Só assim teremos um Botafogo verdadeiramente no seu lugar de direito,e não ser alçado a outro patamar caso volte aos tempos de glória.
Desculpa o comentario gigante,mas ele vai de acordo com o que o Botafogo É.
Abraços!!!!
Mário Filho e Nelson Rodrigues foram os únicos excelentes jornalistas desportivos não botafoguenses. Devem ser lidos por todos, embora admita que N. Rodrigues exagerou, e muito, quando nos caricaturou. Fico com Paulo Mendes Campos.
Acertou, Carlos Eduardo. A nossa formação, considerando o período pós 1904, é marcada, em minha opinião, por marcos de acontecimentos: a rebeldia típica dos garotos da fundação que redundou no abandono da Liga em 1911, os pessimismos iniciados com o drama da 'Tragédia da Piedade' em 1909, as superstições da década de 1940. Portanto, rezingões como o Pato Donald, rebeldes como o Manequinho, pessimistas como o Cri-Cri e supersticiosos como Carlito Rocha.
Somos Botafogo! (rsrs)
Abraços Gloriosamente Estrelados!
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