por João Moreira Salles, 05.dez.2002
Me lembro até hoje do dia em que o Tutty Vasques deixou de ser Botafogo. Coincidiu de ser o dia mais feliz da minha vida: 21 de junho de 1989.
Nessa data, o Botafogo tornou-se campeão depois de passar vinte e um anos sem ganhar absolutamente nada. Era o fim do desterro. Saí do Maracanã feito um possesso, chorei enrolado na bandeira, dancei pela Tijuca, atravessei o túnel Rebouças a pé, arrombei com um amigo o portão da sede do Flamengo e, lá de dentro, gritei pro mundo inteiro escutar “É cam-peão! É cam-peão!”. Entrei na churrascaria Plataforma e fui de mesa em mesa abraçando as pessoas, conhecidas e desconhecidas, mas aquela noite foi tão estupenda que até hoje tenho certeza de que ninguém me achou chato. Acabei abraçado ao Manequinho. Já não tinha mais voz, mas quem chegasse perto podia ouvir um “foste herói em cada jogo” saindo feito um fiapo da minha boca. Se alguém apertasse o olho era capaz de ver o hino do Botafogo flutuando em cima da minha cabeça, como um balão de quadrinho.
A partir daquela data gloriosa, ninguém podia mais ter pena da gente. Éramos tão campeões quanto os outros times grandes. Numa noite de inverno de 1989, ficamos igual aos outros.
Foi disso que o Tutty não gostou. Ainda guardo o artigo indignado que ele escreveu para o JB. A manchete esperneava: “Quero meu Botafogo de volta!”, com ponto de exclamação e tudo. Tutty sustentava a tese de que o Botafogo era as suas derrotas, ou melhor, os seus não-títulos. Sem isso, sobrava apenas a banalidade de um time ocasionalmente vitorioso, correndo o sério risco de se acostumar à vulgaridade do sucesso. Com aquela vitória, já podíamos ser oficialmente chamados de emergentes do futebol - um time que, a moda do Flamengo, ainda acabaria treinando na Barra da Tijuca. O horror, o horror. Tutty concluía afirmando que, após vinte e um anos forjando a duras penas uma personalidade bela e audaz, o Botafogo pusera tudo a perder em menos de quarenta e cinco minutos. Assim não era possível. Ele queria o seu Botafogo de volta.
Sem medo de ser emergente
Eu não. Eu estava feliz da vida com o meu Botafogo. Até então, eu nunca havia comemorado um título do meu time. Da última vez em que ele ganhara algum mísero campeonato, eu mal sabia balbuciar General Severiano. Como todo mundo que põe a mão no dinheiro depois de uma vida de penúria, eu não me importava em ser emergente. Muito pelo contrário. Se meu time estava com cara de Pajero e de home theatre, ótimo. Era tudo que eu queria.
Mas essa história já faz tempo. De lá pra cá, o Botafogo ganhou mais alguns títulos e perdeu outros tantos. Nos últimos cinco anos, porém, o meu clube não passou de um grande embaraço; na melhor das hipóteses, de um time absolutamente irrelevante. Nenhum jogador minimamente funcionante pensa mais de dois segundos antes de recusar uma proposta para vestir a camisa alvinegra, pela simples razão de que gente com futuro não costuma se suicidar. No primeiro dia do Brasileirão de 2002, um jornal descreveu o nosso elenco como o “Abrigo dos Desesperados”. Era o estágio terminal de uma história velha de pelo menos três décadas.
A medida que os anos foram se passando, o Botafogo foi ficando cada vez mais parecido com aqueles filmes-catástrofe dos anos 70. Aos poucos, nos tornamos uma espécie de time-Inferno-na-Torre, de time-Terremoto. Nosso elenco vivia apinhado de estrelas cadentes (Bebeto, Galeano, Túlio na sua segunda encarnação), nosso enredo era tristemente previsível (lutar desesperadamente contra o rebaixamento), e a história terminava sempre com a intervenção milagreira de um herói-de-última-hora (geralmente, Carlos Alberto Torres).
O time-catástrofe
Mas como tudo neste Botafogo medíocre, não conseguíamos sequer ser um time-catástrofe decente. Nos faltava o essencial: a catástrofe propriamente dita. Aquela onda gigante de O Destino do Poseidon que virava o navio e matava três quintos da tripulação chegava perto, lambia o costado, mas acabava passando por cima do convés sem fazer muito estrago. Até este ano. No dia 17 do mês passado, fomos simultaneamente inundados, pegamos fogo e viemos abaixo. Aquela data tornou de direito o que já era de fato: o único time do planeta com dois jogadores na seleção de todos os tempos já não faz parte da elite do futebol brasileiro.
Nem que seja por uma questão de clareza – ah, sim: o Botafogo é de fato um clube medíocre, dirigido nos últimos anos por senhores (na melhor das hipóteses) cronicamente incompetentes – o ano de 2002 já pode ser considerado um sucesso para o torcedor alvinegro. Ninguém nos ludibria mais. Da próxima vez que um presidente anunciar que basta o Romário passar no clube para assinar o contrato (junho de 2002), ou que o Petkovic já é nosso (agosto de 2002), a gente já sabe que é pra dar uma gargalhada gostosa e espalhar a piada. (Nos últimos anos, os presidentes do Botafogo contaram várias piadas: teve aquela que dizia que o Edmundo já tinha assinado contrato, teve a outra sobre o Juninho estar prestes a vir para Caio Martins, teve a do Parreira como novo técnico, e aquela sobre o Rivaldo estar de saco cheio do Barcelona e preferir jogar no Botafogo. Mas de todas as travessuras perpetradas pelos homens que administraram meu time nos últimos tempos, a melhor de todas ocorreu este ano: na mesma hora – aliás, no mesmíssimo instante – em que Mauro Ney-Palmeiro anunciava pela Rádio Globo que Petkovic era o grande reforço do time para o Brasileirão de 2002, Petkovic se apresentava com a camisa do Vasco para a torcida cruzmaltina no estádio de São Januário. Bastou ao repórter cortar da voz toda prosa do meu presidente para o bramido ensurdecedor da torcida do Vasco gritando “Petkovic! Petkovic!” para me convencer - a mim e a qualquer marciano desavisado - que o Botafogo não chegaria muito longe esse ano.)
Portanto, estamos mais sóbrios. Sabemos quem somos. Ou pelo menos, o que fizeram da gente. Mas não é essa a razão que fez o Tutty voltar a ser Botafogo. (Sim, porque pra quem não sabe ou não leu, o Tutty fez as pazes com seu velho clube.) Dessa vez eu compreendo ele. Estou com o Tutty e não abro. Aliás, antes de continuar: Fooooo-go!!! Pronto. Há muito tempo eu não gritava com tanto gosto o nome do meu time.
Precisamos do desespero
Por que voltar a gostar do Botafogo? Em primeiro lugar, como mostra o Tutty, por causa da torcida. Não tenho muito a acrescentar à coluna em que ele descreve a fina ironia de que somos capazes em tempos de desespero. Se é verdade que somos meio sem graça em condições normais de temperatura e pressão, quando a vaca vai pro brejo ninguém é melhor do que a gente. Em 1995, numa partida contra um time de São Paulo (não me lembro mais qual), o Botafogo estava ganhando de 4x0, em Caio Martins. Ao meu lado, pai e filho comemoravam cada gol como se fosse o último da história. Aos 32 minutos do segundo tempo, numa jogada de sorte, o time adversário bateu a defesa botafoguense e conseguiu marcar seu golzinho de honra: 4x1. O pai ficou lívido, meteu o rosto nas mãos e proclamou com voz funda: “Já era” (na verdade, preferiu usar um verbo). Trêmulo, o menino se agarrou à perna do pai e ambos esticaram o rosto em direção ao céu. Começaram a rezar a Ave Maria, baixinho baixinho. Em matéria de fé, pelo menos durante aqueles últimos minutos de jogo, estavam pau a pau com irmã Dulce. É muito difícil não admirar uma torcida assim.
II e última parte amanhã.
2 comentários:
Rui,
E pensar que Ney Palmeiro e Rolim voltaram, pelos braços do digníssimo Assumpção. Quem sabe não é para concluirem sua obra de exterminar o Glorioso...
Agora, achei muita "coincidência" os burburinhos sobre grandes contratações: naquela época eram Edmundo, Rivaldo, Petkovic. Hoje, Deco, Seedorf, Diego.
Tomara que o fim de ano não seja o mesmo...
Sem comentários, Émerson... acho que essa coisa de 'fechar aeroporto' só se for ao estilo do 'último a sair que apague a luz..."
Receio, sinceramente, que o descomunal défice do Botafogo nos leve à falência técnica num curto espaço de tempo. Desejo muito que essa eventual realidade jamais se concretize.
Abraços Gloriosos!
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