sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Pelo menos fomos péssimos (II)

por João Moreira Salles, 05.dez.2002

"Farsante, farsante"

Li outro dia num artigo de jornal uma frase do Nietzsche muito boa. Dizia assim: “Nunca confie em um Deus que não sabe dançar”. (Nietzsche torcia pelos gregos e achava o cristianismo o fim da picada. De fato, quem você convidaria pra tomar um chope, Zeus ou Jesus Cristo? Com qual dos dois você ficaria mais à vontade pra confessar os pecadinhos cometidos?) Suponho que o mesmo princípio deve valer para as torcidas. Nunca confie naquelas que se levam muito a sério, pois, com o tempo, elas acabam se parecendo com a juventude nazista. A torcida do Botafogo tem o saudável hábito de desconfiar de tudo, inclusive de determinadas vitórias e de determinados gols. Certo dia, novamente em Caio Martins (o Caio Martins é o nosso Carnegie Hall), Bebeto driblou meia defesa adversária e chutou em direção ao gol, com o goleiro já batido. A bola saiu fraquinha, mas na direção certa. Quando estava prestes a entrar, Túlio apareceu não se sabe de onde, encostou o pé na bola, empurrou-a para o fundo da rede e, moto contínuo, ergueu os braços e veio comemorar a façanha perto do alambrado onde eu estava. A torcida estava histérica, num júbilo de dar gosto. Era demais para um dos amigos com quem vou aos estádios (o grande Alexandre Gontijo). Ele não se conteve. Atirou-se na cerca, possesso, aos berros, a um palmo do nariz de Túlio: “Farsante! Você comemorar esse gol é como o filho do Rockefeller sair por aí gritando ‘Eu fiz a América! Eu fiz a América!’”. Houve um silêncio. A imagem era um pouco complexa e precisava de um tempo para ser assimilada. Túlio olhava para os lados, meio confuso. Queria saber se estava direito continuar comemorando. Ainda tinha o dedinho espetado no ar quando, aos poucos, um burburinho foi brotando da arquibancada, inchando cada vez mais, até explodir numa das vaias mais bombásticas da história de Niterói. Túlio aprendeu a nunca mais reivindicar gols alheios. A torcida do Botafogo acabava de dar mais um exemplo de saudável realismo crítico.

Mas a torcida não é a única razão para os botafoguenses voltarem a apoiar o time. Acabamos de eleger o melhor presidente de clube do Brasil. Bebeto de Freitas tem capacidade e experiência de sobra para nos tirar dessa. O seu currículo de esportista é tão impecável quanto sua linhagem dinástica: sobrinho de João Saldanha e parente de Heleno de Freitas. Bebeto é uma espécie de Orleans e Bragança do Botafogo. Mas o melhor do nosso aristocrata alvinegro é que ele parece ser o contrário da maioria dos dirigentes que andam por aí. Bebeto tem a oportunidade de ser o anti-Eurico do futebol brasileiro. Virtudes para isso ele tem. Bebeto é uma pessoa sensata, com a cabeça no lugar, dono de uma visão moderna e arejada do esporte, sem arroubos incontroláveis de vulgaridade e sem o vício da picaretice e das picaretagens. Por isso, é fundamental que não aceite as pressões do alto e do baixo clero botafoguenses para que o time volte à primeira divisão graças à jinga, ao talento e à picardia de uma liminar. Não é por excesso de puritanismo que digo isso (se bem que um pouco de pureza não faria mal ao futebol brasileiro), mas porque ganhar com advogados é o que os outros sempre fizeram. Se Bebeto cair na tentação, muito pouco o separará de Eurico. Mais uma vez, seremos como os outros – infelizmente, não mais vencedores como os outros, mas atrasados feito os outros, salafrários feito os outros. Se for pra usar malandragem, que seja a nossa malandragem, folclórica e original, de longa tradição no Botafogo. Que busquemos inspiração em Carlito Rocha, que soltava o Biriba em campo com instruções precípuas de atacar a canela adversária toda vez que nossa vantagem no marcador era ameaçada nos minutos finais de jogo. Caso não seja possível concorrer em originalidade com Carlito Rocha, sou a favor de derreter Valium no bebedouro do adversário, ou até mesmo de apagar as luzes do estádio toda vez que o resultado estiver a nosso favor. Mas liminar, não. Pra conseguir liminar, eu voto no Edmundo Santos Silva.

Somos os piores

Por último, o time de 2002 do Botafogo merece respeito porque foi melhor do que os de 2000 e de 2001. Isso mesmo. Em 2000, terminamos em 16o lugar. Em 2001, em 23o. Agora, fomos os últimos. É bom repetir: 26o lugar entre vinte e seis concorrentes. Nossa colocação nos últimos anos não passa de um constrangimento. Essa de agora é uma tragédia. No mínimo, é mais interessante. Pessoalmente, acredito que seja uma evolução. Pelo menos fomos péssimos. É bem melhor do que ser medíocre. A mediocridade é essencialmente conservadora, não leva a nada. A tragédia não. Trata-se de outra criatura.

Em primeiro lugar, ao contrário da mediocridade, a tragédia é memorável. Será duro esquecer que times com ataques formados por Jajá e Vandick (Payssandu), Igor e Selmir (Figueirense), que times que escalaram no meio-campo Ageu e Arilson (Portuguesa), Milton do Ó, Josué e Marabá (Goiás) chegaram na nossa frente. Nisso, os jogadores do Botafogo estão de parabéns. Quando entraram em campo no dia 17 de novembro, nossas chances de escapar do rebaixamento eram mais ou menos as mesmas de ganhar na loto. O verdadeiro risco era não terminarmos em último, e mais uma vez chafurdar na melancólica trivialidade. Do goleiro ao ponta esquerda, todos se esforçaram e conseguimos perder para os reservas do São Paulo. Conquistamos o último lugar. Incontestavelmente, somos os piores. É bem mais do que podem dizer o Gama, o Palmeiras e a Portuguesa, nossos companheiros de segunda divisão.

Mas a maior virtude da tragédia é outra. Caso tenhamos de fato a ambição de não desaparecer do mapa (o que ainda resta provar), a tragédia pode ser o início de uma virada. Acredito piamente nas virtudes civilizatórias do trauma. É bom lembrar que, antes de se tornarem países sérios, a Inglaterra precisou enforcar um rei, a França teve de fazer uma revolução e os EUA foi obrigado a entrar em guerra consigo mesmo. A dor faz bem. Ou o Botafogo aprende agora, ou deixará de existir.

Como eu não consigo conceber o Rio (e de certa forma, a vida) sem o Botafogo, no ano que vem, quando aquele lateral insinuante do Caldense se aproximar da defesa do Fogão, estarei com minha camisa do time no ombro (vestir não dá sorte), roendo as unhas e procurando aquele pai e aquele filho pra checar se estão rezando direito. Daquela vez deu certo.

Esse ano eu não fui ao estádio. No ano que vem, mal sairei de Niterói.

4 comentários:

Émerson disse...

Rui,
O João Moreira Sales é realmente muito espirituoso...
Mas sempre diz verdades.
Se não fosse Bebeto de Freitas, certamente o nosso Glorioso teria sido extinto.
O caráter de um homem, alguém já disse (e vou repetir com minhas palavras), é inversamente proporcional ao dos seus inimigos.
Não conheço Bebeto pessoalmente, mas sei que ele é um homem íntegro, pelo simples fato de essa corja que hoje desadministra o Botafogo querê-lo bem longe de General Severiano.
Saudações Gloriosas!

Ruy Moura disse...

Mil vezes de acordo, Émerson. Por isso é que costumo dizer que quando determinado tipo de pessoas concordam comigo, eu devo ter dito algo inapropriado...

O Bebeto teve os seus erros, alguns por amadorismo e inexperiência 'política', mas foi ele basicamente que nos tirou do fundo do poço em 2002, foi com ele que retomamos os títulos em 2006, foi com ele que lideramos o Brasileirão por 15 rodadas consecutivas, foi com ele que obtivemos o Engenhão. Errou feio no caso Dodoping(foi aí que se iniciou a decadência da sua gestão) e no caso do chororô, mas a sua postura e a sua assertividade são bens diferentes dos joguinhos cínicos e hipócritas de muitas administrações que já tivemos.

Abraços Gloriosos!

Gil disse...

Rui, Émerson,

Acrescento que essa mesma corja que desadministra o nosso Botafogo retornou com aqueles que quase destruíram o clube. O ex-presidente que arrasou administrativamente, financeiramente e futebolisticamente (nos levou para a segundona), voltou ao clube pelas mãos do atual presidente.

Aprendi mais uma: "quando determinado tipo de pessoas concordam comigo, eu devo ter dito algo inapropriado.."

Abs e Sds, Botafoguenses!!!

Ruy Moura disse...

Gil, eu ainda não percebi esse retorno. Porquê?! Porquê?!?! Porquê?!?!?! O que estaria em jogo? Quem fez esse regresso? Para quê? Porque foi aceite? - Porque se regressou ao passado em vez de se arriscar o futuro?

Abraços Gloriosos!

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