segunda-feira, 4 de março de 2019

Iluminismo

por JOÃO MOREIRA SALLES
02.05.2012

Por que uma menina de 12 anos acostumada a não ver o seu time vencer desata a chorar quando o time perde mais uma vez? Durante muito tempo não consegui entender. Em 1988, como todos sabem, Sonja chorou, ali, à beira do campo, desconsolada não porque o Botafogo a surpreendera, mas justamente por ter confirmado o que dele já se esperava: uma nova derrota.

O Globo publicou as fotos no dia seguinte. Ela, tão desamparada, a capa de chuva desabando pelos ombros, sendo conduzida carinhosamente para dentro do túnel do Maracanã por um senhor, quem sabe para protegê-la da garoa (imagino que garoava), que sabe para preservá-la da cena pública, ou ainda simplesmente enternecido com o sofrimento daquela menina que gostava de um time incapaz de lhe retribuir o amor.

Eu ficava pensando: “Se essa menina tem doze anos, então nasceu por volta de 1976. Meu Deus. Até aqui, a vida de torcedora dela foi um compêndio de horrores. Sem título, sede, craques, ídolos; sem esperança de beleza ou promessa de redenção. A ladeira cada vez mais íngreme, e os nossos adversários tinindo.”

Enquanto mergulhávamos na irrelevância, o Fluminense inventava a Máquina, o Flamengo vivia os seus anos de ouro e o Vasco seguia sendo o Vasco de sempre, um time que, diante de nós, nem precisava ser bom porque perdíamos para a camisa deles. E então eu insistia: por que ela chorou logo naquela partida, e não em todas as outras?

Mais tarde, descobri que, sim, ela vinha se debulhando em lágrimas naquela e em todas as outras derrotas. O que significava o seguinte: ela tinha passado a infância chorando e mesmo assim não trocara de clube. Era espantoso. Imagine a tentação: todo fim de semana ela tomava pancada, e toda segunda-feira o Flamengo aparecia na porta dela, o sorriso aliciante de mercador, tentando-a com o tilintar dos dinheiros estampados com a efígie de Zico e companhia. E ela, firme, “o meu negócio é o Botafogo”. Incompreensível.

Supus, então, que era coisa de família. O pai – um bom pai – é quem lhe ensinara que a gente não deve se bandear para o lado dos fortes, movido pelo cálculo de que cerrar fileiras com os poderosos traz benefícios palpáveis. Mas não. Anos mais tarde, em entrevista a uma publicação da faculdade onde estudava, ela contou: “Sempre que o time perdia uma simples partida, eu caía em lágrimas. Eu chorava que dava dó… E claro, lá, não foi diferente. O Botafogo perdia a partida por 3 a 0 e eu comecei a chorar. Filmada e fotografada por toda a imprensa que ali estava, o acontecido virou manchete em todos os jornais e programas de TV no dia seguinte. Difícil acreditar, né? Por que uma garotinha chorava tanto na beira do gramado do estádio? Meus familiares (que não são botafoguenses) ouviam o jogo pelo rádio e quando anunciaram o que estava acontecendo… Pronto! Todo mundo já sabia que era eu.”

A única explicação, portanto, era a mais simples, e também a mais piegas. Ela chorara em função de um amor gratuito. Não existia razão para além do Botafogo. Ela gostava do time e isso bastava.

Tem algo misterioso nisso. Gostar à toa e ser leal a esse sentimento, sem jamais cobrar nada, apesar de todos os pesares. Nas décadas de 70 e 80, só um time pode submeter seus torcedores a essa prova dos nove. Os que sobreviveram, como ela, passaram com louvor. Sempre que penso naquele episódio, digo comigo mesmo que ninguém saberá se gosta mesmo de seu clube enquanto não for impiedosamente maltratado por ele. Não é algo a ser desejado, porém é o único metro verdadeiro. Na saúde e na doença, diz o padre. Pois é, na saúde é tão mais fácil. Na riqueza também.

No dia 21 de junho de 1989, seis meses depois de Sonja Martinelli chorar, o Botafogo, invicto desde aquela partida de dezembro, pôs um fim aos longos 21 anos sem título e foi campeão em cima do Flamengo de Zico, Zinho, Leonardo, Jorginho, Aldair, Bebeto e Telê Santana, para citar só alguns. Sentada nas cadeiras especiais do Maracanã, Sonja recebeu o que jamais tinha exigido, e por isso tanto merecia. Aposto que foi um dos dias mais felizes da vida dela. Aposto que quando ela ficar velhinha, a memória estará lá.

Escrevo isso por causa da gandula de domingo passado, Fernanda Maia. Ou muito me engano, ou desde ontem Fernanda entrou para a história afetiva do torcedor botafoguense. Daqui a dez anos, a gente se lembrará do dia em que uma moça bonita devolveu a bola com a destreza e velocidade de um Michael Jordan.

Fernanda tem 23 anos. Se as contas estão certas, ela nasceu no mesmo ano em que pusemos fim àquela tormenta. Quando ela tinha seis anos, o Botafogo foi campeão brasileiro. Depois disso, ganhamos alguns estaduais, o que, convenhamos, não é muito. Foi bom vê-la pulando no fim da partida, tão alegre quanto nós lá na torcida. Era o presente que, de tão raro, é tão mais precioso.

Existe, porém, uma diferença crucial entre os dois episódios. Naquele dezembro distante, o que nos marcou foi o choro milagreiro; ontem, foi o gesto eficiente. Em 1988, celebramos as lágrimas quase místicas de uma criança, como se, àquela altura da nossa desdita, só a metafísica fosse capaz de nos salvar; ontem, aplaudimos a rapidez e a técnica, que dispensa milagres.

A superstição faz parte de quem somos. Não seria bom que desaparecesse. O diabo é que nas últimas décadas só pudemos nos fiar nela. Perguntem a um torcedor do Barcelona se ele prefere atribuir o sucesso dos últimos anos a uma mandinga que regula ou à implementação de formas de trabalho que privilegiam o método e o planejamento. Há um limite para o arcaico. Geralmente, ele acaba onde começa a razão. Não tem mistério, literalmente, aliás. Nosso milenarismo deu o que tinha de dar. Está na hora do Botafogo ser apresentado ao Iluminismo. O futebol brasileiro também, mas francamente, pelo menos hoje, isso me interessa pouco.

Em 1989, o time era valoroso mas o clube era uma tragédia, sem rumo e dependendo da contravenção. Mudou muita coisa, mas ainda estamos longe de podermos nos dizer modernos, o que, aliás, não depende apenas de quem toca o Botafogo. Que ao menos, então, se acelere o passo do que é de nossa competência: administrar bem, olhar para as contas, planejar os próximos dez anos (e não os próximos dois jogos), estabelecer relações de trabalho maduras. Eu, por exemplo, só me convencerei de que as coisas indo na direção certa no dia em que for baixada uma instrução proibindo que jogador do Botafogo se refira a técnico como professor, não em demérito ao profissional que organiza o time (embora exigir o tratamento seja sintoma de incapacidade para exercer a função), mas em respeito aos onze homens que entram em campo e lá precisam tomar decisões com a própria cabeça. Como adultos que são, devem se responsabilizar pelo que fazem. Condescendência e infantilização não podem levar a outra coisa senão à perda de autonomia, o que é ruim dentro de campo e uma tragédia fora dele. Pior do que imaturidade só imaturidade com rios de dinheiro. É assim que profissionais adultos se transformam em meninos mimados.

Se tudo correr bem, seguiremos indo ao estádio com a mesma camisa, e nos sentaremos no mesmo lugar, ao lado das mesmas pessoas, torcendo, porém, para que lá em baixo Fernanda esteja atenta ao jogo, olhos de lince, sem uma lágrima a turvar a visão.

Fonte: https://johnbfr.wordpress.com/2011/12/21/cronicas-botafoguenses-a-arte-de-ser-botafogo/

2 comentários:

Lorismario disse...

Caro Rui. Apesar de desaparecido do seu blog, o que não há justificativa, de volta estou, com todo o choro botafoguense e esperando que um dia eu volte a ser criança como fui, ao torcer para Garrincha, Didi, Amarildo e Zagallo ou Rogério (Zequinha) Jairzinho,Roberto e Paulo Cesar. Não gostaria de morrer sem antes ter este choro de alegria. L. E. Simonassi PS. Vou fazer 71 anos mes vindouro.

Ruy Moura disse...

Que saudades suas, meu querido amigo! Tenho falado de si com o Cesar e o Mauro e... ei-lo de volta!!!

Pode ser que nós ainda tornemos a ser torcedores-crianças, mas não com tantos craques. Hoje ninguém no Brasil tem craques daqueles. Nem no mundo! Os de hoje estão espalhados por vários clubes enquanto naquele tempo, fora o Pelé, os grandes craques estavam todos no Botafogo!

Abraços Gloriosos.

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