por
JOÃO MOREIRA SALLES
02.05.2012
Por que uma menina de 12 anos acostumada
a não ver o seu time vencer desata a chorar quando o time perde mais uma vez?
Durante muito tempo não consegui entender. Em 1988, como todos sabem, Sonja
chorou, ali, à beira do campo, desconsolada não porque o Botafogo a
surpreendera, mas justamente por ter confirmado o que dele já se esperava: uma
nova derrota.
O Globo publicou as fotos no dia
seguinte. Ela, tão desamparada, a capa de chuva desabando pelos ombros, sendo
conduzida carinhosamente para dentro do túnel do Maracanã por um senhor, quem
sabe para protegê-la da garoa (imagino que garoava), que sabe para preservá-la
da cena pública, ou ainda simplesmente enternecido com o sofrimento daquela menina
que gostava de um time incapaz de lhe retribuir o amor.
Eu ficava pensando: “Se essa menina tem
doze anos, então nasceu por volta de 1976. Meu Deus. Até aqui, a vida de
torcedora dela foi um compêndio de horrores. Sem título, sede, craques, ídolos;
sem esperança de beleza ou promessa de redenção. A ladeira cada vez mais
íngreme, e os nossos adversários tinindo.”
Enquanto mergulhávamos na irrelevância,
o Fluminense inventava a Máquina, o Flamengo vivia os seus anos de ouro e o
Vasco seguia sendo o Vasco de sempre, um time que, diante de nós, nem precisava
ser bom porque perdíamos para a camisa deles. E então eu insistia: por que ela
chorou logo naquela partida, e não em todas as outras?
Mais tarde, descobri que, sim, ela vinha
se debulhando em lágrimas naquela e em todas as outras derrotas. O que
significava o seguinte: ela tinha passado a infância chorando e mesmo assim não
trocara de clube. Era espantoso. Imagine a tentação: todo fim de semana ela
tomava pancada, e toda segunda-feira o Flamengo aparecia na porta dela, o
sorriso aliciante de mercador, tentando-a com o tilintar dos dinheiros
estampados com a efígie de Zico e companhia. E ela, firme, “o meu negócio é o
Botafogo”. Incompreensível.
Supus, então, que era coisa de família.
O pai – um bom pai – é quem lhe ensinara que a gente não deve se bandear para o
lado dos fortes, movido pelo cálculo de que cerrar fileiras com os poderosos
traz benefícios palpáveis. Mas não. Anos mais tarde, em entrevista a uma
publicação da faculdade onde estudava, ela contou: “Sempre que o time perdia
uma simples partida, eu caía em lágrimas. Eu chorava que dava dó… E claro, lá,
não foi diferente. O Botafogo perdia a partida por 3 a 0 e eu comecei a chorar.
Filmada e fotografada por toda a imprensa que ali estava, o acontecido virou
manchete em todos os jornais e programas de TV no dia seguinte. Difícil
acreditar, né? Por que uma garotinha chorava tanto na beira do gramado do
estádio? Meus familiares (que não são botafoguenses) ouviam o jogo pelo rádio e
quando anunciaram o que estava acontecendo… Pronto! Todo mundo já sabia que era
eu.”
A única explicação, portanto, era a mais
simples, e também a mais piegas. Ela chorara em função de um amor gratuito. Não
existia razão para além do Botafogo. Ela gostava do time e isso bastava.
Tem algo misterioso nisso. Gostar à toa
e ser leal a esse sentimento, sem jamais cobrar nada, apesar de todos os
pesares. Nas décadas de 70 e 80, só um time pode submeter seus torcedores a
essa prova dos nove. Os que sobreviveram, como ela, passaram com louvor. Sempre
que penso naquele episódio, digo comigo mesmo que ninguém saberá se gosta mesmo
de seu clube enquanto não for impiedosamente maltratado por ele. Não é algo a
ser desejado, porém é o único metro verdadeiro. Na saúde e na doença, diz o padre.
Pois é, na saúde é tão mais fácil. Na riqueza também.
No dia 21 de junho de 1989, seis meses
depois de Sonja Martinelli chorar, o Botafogo, invicto desde aquela partida de
dezembro, pôs um fim aos longos 21 anos sem título e foi campeão em cima do Flamengo
de Zico, Zinho, Leonardo, Jorginho, Aldair, Bebeto e Telê Santana, para citar
só alguns. Sentada nas cadeiras especiais do Maracanã, Sonja recebeu o que
jamais tinha exigido, e por isso tanto merecia. Aposto que foi um dos dias mais
felizes da vida dela. Aposto que quando ela ficar velhinha, a memória estará
lá.
Escrevo isso por causa da gandula de
domingo passado, Fernanda Maia. Ou muito me engano, ou desde ontem Fernanda
entrou para a história afetiva do torcedor botafoguense. Daqui a dez anos, a
gente se lembrará do dia em que uma moça bonita devolveu a bola com a destreza
e velocidade de um Michael Jordan.
Fernanda tem 23 anos. Se as contas estão
certas, ela nasceu no mesmo ano em que pusemos fim àquela tormenta. Quando ela
tinha seis anos, o Botafogo foi campeão brasileiro. Depois disso, ganhamos
alguns estaduais, o que, convenhamos, não é muito. Foi bom vê-la pulando no fim
da partida, tão alegre quanto nós lá na torcida. Era o presente que, de tão
raro, é tão mais precioso.
Existe, porém, uma diferença crucial
entre os dois episódios. Naquele dezembro distante, o que nos marcou foi o
choro milagreiro; ontem, foi o gesto eficiente. Em 1988, celebramos as lágrimas
quase místicas de uma criança, como se, àquela altura da nossa desdita, só a metafísica
fosse capaz de nos salvar; ontem, aplaudimos a rapidez e a técnica, que
dispensa milagres.
A superstição faz parte de quem somos.
Não seria bom que desaparecesse. O diabo é que nas últimas décadas só pudemos
nos fiar nela. Perguntem a um torcedor do Barcelona se ele prefere atribuir o
sucesso dos últimos anos a uma mandinga que regula ou à implementação de formas
de trabalho que privilegiam o método e o planejamento. Há um limite para o
arcaico. Geralmente, ele acaba onde começa a razão. Não tem mistério,
literalmente, aliás. Nosso milenarismo deu o que tinha de dar. Está na hora do
Botafogo ser apresentado ao Iluminismo. O futebol brasileiro também, mas
francamente, pelo menos hoje, isso me interessa pouco.
Em 1989, o time era valoroso mas o clube
era uma tragédia, sem rumo e dependendo da contravenção. Mudou muita coisa, mas
ainda estamos longe de podermos nos dizer modernos, o que, aliás, não depende
apenas de quem toca o Botafogo. Que ao menos, então, se acelere o passo do que
é de nossa competência: administrar bem, olhar para as contas, planejar os
próximos dez anos (e não os próximos dois jogos), estabelecer relações de
trabalho maduras. Eu, por exemplo, só me convencerei de que as coisas indo na
direção certa no dia em que for baixada uma instrução proibindo que jogador do
Botafogo se refira a técnico como professor, não em demérito ao profissional
que organiza o time (embora exigir o tratamento seja sintoma de incapacidade
para exercer a função), mas em respeito aos onze homens que entram em campo e
lá precisam tomar decisões com a própria cabeça. Como adultos que são, devem se
responsabilizar pelo que fazem. Condescendência e infantilização não podem
levar a outra coisa senão à perda de autonomia, o que é ruim dentro de campo e
uma tragédia fora dele. Pior do que imaturidade só imaturidade com rios de
dinheiro. É assim que profissionais adultos se transformam em meninos mimados.
Se tudo correr bem, seguiremos indo ao
estádio com a mesma camisa, e nos sentaremos no mesmo lugar, ao lado das mesmas
pessoas, torcendo, porém, para que lá em baixo Fernanda esteja atenta ao jogo,
olhos de lince, sem uma lágrima a turvar a visão.
2 comentários:
Caro Rui. Apesar de desaparecido do seu blog, o que não há justificativa, de volta estou, com todo o choro botafoguense e esperando que um dia eu volte a ser criança como fui, ao torcer para Garrincha, Didi, Amarildo e Zagallo ou Rogério (Zequinha) Jairzinho,Roberto e Paulo Cesar. Não gostaria de morrer sem antes ter este choro de alegria. L. E. Simonassi PS. Vou fazer 71 anos mes vindouro.
Que saudades suas, meu querido amigo! Tenho falado de si com o Cesar e o Mauro e... ei-lo de volta!!!
Pode ser que nós ainda tornemos a ser torcedores-crianças, mas não com tantos craques. Hoje ninguém no Brasil tem craques daqueles. Nem no mundo! Os de hoje estão espalhados por vários clubes enquanto naquele tempo, fora o Pelé, os grandes craques estavam todos no Botafogo!
Abraços Gloriosos.
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