por GUSTAVO POLI | oglobo.globo.com
O que cada torcedor sentiu em Buenos Aires foi a
materialização do milagre, a realização do sonho impossível, a terra prometida.
«Na madrugada de 18 para 19 de
dezembro de 1995, este repórter correu ao lado de uma massa de torcedores que
invadiu a pista do Aeroporto Santos Dumont. Viu dezenas deles subirem na asa do
avião que trazia o Botafogo, campeão brasileiro, de São Paulo. No dia seguinte,
a reportagem da festa nas páginas deste mesmo periódico começava assim: Foi uma
noite superlativa. Ou aumentativa. Foi uma noite preta. Foi uma noite branca.
A seguir o texto arriscava uma
adivinhação: dizia que o Botafogo fazia as pazes com o presente. Vã ilusão.
Depois daquele espasmo, o clube desceria ao inferno tantas outras vezes. Essa
parece ser sua vocação — ir do porão ao cume como nenhum outro, fazer do
inesperado seu destino, do mico siderúrgico sua plataforma de salto.
Foram rebaixamentos e
renascimentos em série, como se o clube vivesse num eterno eletrocardiograma.
Como se subscrevesse a epígrafe do “Encontro Marcado (do botafoguense Fernando
Sabino): fazer da queda um passo de dança, da interrupção um caminho novo, do
medo uma escada, do sono uma ponte, da procura... um encontro.
A semana dos botafoguenses foi
isso: um encontro marcado há séculos com a estrela da manhã, com o objetivo
inalcançável, com Papai Noel em Canaã no final feliz da fábula. O que cada
torcedor sentiu em Buenos Aires foi a materialização do milagre, a realização
do sonho impossível, a terra prometida citada por Freitas, Marlon, ao sobrevoar
o Rio da Prata.
Foi um cruzamento de redenção com
catarse na enésima potência. Gente chorando absolutamente incrédula. Gente
beijando a foto do pai. Gente coçando os olhos para tentar entender o que
vivia. Gente querendo paralisar o tempo e consumir cada instante como se fosse
uma iguaria, um alfajor. Era o instante eterno de cada um — o ponto com todos
os pontos, o agora sem antes nem depois, o Aleph de Borges — logo ali em Buenos
Aires.
Esse fio começou a ser tecido no
dia 21 de junho de 1989 e passou por dezembro de 1995 antes de chegar a 2024.
Luiz Henrique marcou o primeiro gol aos 34 minutos e 52 segundos. O torcedor
que chegou vivo ali entendeu — e vibrou quieto ao ver 7 minutos de acréscimos
no telão (às 18h53). E pensou em Maurício. E pensou em Túlio. E pensou em Jair.
E pensou no Mané. E chorou de certeza num estrondo quando o jogo terminou às
sete em ponto com o 13 (de Zagallo, Loco e agora Alex Telles) no placar.
E chorou porque lembrou de tudo,
sentiu sua vida alvinegra passando como um filme. Reviveu cada cicatriz
sorrindo, porque o fundo do poço traz perspectiva. A dor cultivada como um
gerânio, observada como um peixe no aquário, sublinha a alegria imensa. Valida
cada segundo de espera. A primeira derrota estava ali na maior vitória. Cada
segundo de 2023 esteve ali recebendo seu adeus.
O Botafogo de Futebol se fundiu
com o de Regatas em 8 de dezembro de 1942 a partir de uma tragédia — a morte de
Albano (do clube de regatas) durante um jogo de basquete contra os moços do
futebol. Ali o clube ganhou sua padroeira: Nossa Senhora da Imaculada
Conceição.
Que dia é amanhã? Nesse país
sincrético e antropofágico, futebol e religião se misturam — e “Nossa Senhora”
virou expressão de espanto. Que dia é amanhã? É dia de Nossa Senhora da
Conceição. E dia de adular a pulga de orelha, dirá o torcedor convicto. Defesa
reserva, precisando só do empate, contra um mistão do SPFC? Hmmmm. Toda hora é
hora de acreditar desconfiando. O que vem depois do milagre? Nossa senhora de
Botafogo, nossa mãe, nossa senhora desta semana sem fim.»
Fonte:
https://oglobo.globo.com/esportes/gustavo-poli/coluna/2024/12/encontro-marcado.ghtml
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