quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Narrativas de emoção e glória (IV): Botafogo, uma saga — e uma equipe — insólita

Crédito: Alejandro Pagni | AFP.

Uma semana após título inédito do alvinegro, poeta conta como viveu a alegria em Buenos Aires

por LUIZA MUSSNICH | Poeta, Jornalista e Botafoguense | oglobo.globo.com

«Insólito.

Esse foi o nome do primeiro vinho que eu, meu pai e irmão tomamos em Buenos Aires: garrafa aberta tarde da noite, depois de um voo atrasado, princípio de terçol, ansiedade e expectativas lá no alto — natural para dias que antecedem grandes acontecimentos e reservam uma possível promessa de felicidade que se busca como uma orientação no meio da tormenta. Mas que vocação para a tormenta é essa que cismam em apontar no torcedor do Botafogo?

Nasci botafoguense. Como muitas famílias têm tradições e sensos de pertencimento por meio de rituais, religiões, hábitos ou seja lá o que for, o Botafogo é a única unanimidade entre meus pais, irmãos, tios, primos. Um consenso que nos une, emociona, fortalece. Uma invenção da minha sábia avó, que pôde viver essa conquista do alto de seus 94 anos e achava o Heleno de Freitas galã. Simpatizou com o escudo mais bonito do mundo, com o futebol irreverente de seus jogadores, e hoje somos todos botafoguenses.

Sobre a foto de nós três semiabraçados à mesa na noite da chegada em Buenos Aires — o vinho Insólito no centro, posicionado pelo fotógrafo-garçom, que ajeitou o rótulo cuidadosamente para a câmera, algo que jamais faríamos —, um amigo que torce para outro time escreveu: “Espero que o nome do belo vinho não baixe no Monumental de Núñez amanhã.” Ele talvez se referisse à conotação negativa, reflexo de anos de ostracismo do clube, da célebre e tão citada crônica do Paulo Mendes Campos.

As tais coisas que só acontecem ao Botafogo, cunhada originalmente diante de uma goleada sobre outro time, mas nos últimos tempos vinculada somente aos irônicos e catastróficos eventos que nos acometeram e assombraram.

Na hora pensei: tomara, sim, que baixe o insólito no Monumental no sábado. Porque o Botafogo é o insólito por natureza. É o time das fortes emoções, da tragicomicidade, do imponderável — a materialização em campo das forças inexplicáveis que pairam fora do nosso controle como a estrela que brilha no emblema do clube. O insólito e o Botafogo parecem se procurar, num magnetismo sem explicação neste ou noutros planos.

Dessas coisas maiores que regem os acasos, as coincidências e as ironias da vida — e da bola durante uma partida de futebol.

E uma vez em Buenos Aires, apesar de católicos pouco ou nada praticantes, entramos na Igreja del Pilar e ficamos alguns minutos ajoelhados diante do supostamente poderoso santíssimo que fica numa área reservada. Também visitamos o cemitério de La Recoleta, para encarar os fantasmas e homenagear os espíritos e as gerações passadas — as dos anfitriões da partida, mas sempre as nossas: foram décadas de títulos poucos expressivos e rebaixamentos para a série B, e o que manteve novos torcedores apaixonados pela estrela solitária foi, no mais das vezes, um pai, uma mãe, um tio, uma avó. E muitos deles já não estão mais aqui, mas seguem vivos por meio do Botafogo, num portal de afeto e lembrança. No aeroporto do Rio, inclusive, conheci uma avó botafoguense que iria vestir na final sua camisa assinada pelo Garrincha, e era levada pelo neto flamenguista para assistir à final longe de casa. Dessas coisas bonitas que tem o futebol, para além dos dribles e chutes geniais, e que transcendem rivalidades e rixas.

Crédito: Arquivo pessoal da Autora.

Dono do futebol mais bem jogado no Brasil da temporada, segundo os especialistas, o Botafogo chegava à final do torneio continental mais importante de sua história como favorito, o que sempre provoca uma sensação estranha ao torcedor do clube. Uma espécie de inadequação. Somos um pouco avessos a essa exposição, ligeiramente desajeitados para o elogio, o êxito, o sucesso, a unanimidade.

Existe uma humildade espontânea no ethos do botafoguismo que talvez seja das coisas mais peculiares do clube. Lembro da declaração, ainda fresca na memória, do meio-campo Gregore, autor do primeiro gol no primeiro jogo decisivo da semana, contra o Palmeiras, pelo Brasileirão. Ele disse que o gol saiu de uma jogada que parecia ensaiada, algo assim: na verdade não era pra eu estar ali, eu pensava que era outra jogada, eu estava no lugar errado. Essa humildade, esse pouco talento à prepotência e à soberba são características que admiro nas pessoas. Tanto mais no clube que me representa, que escolhi, ou me escolheu — nós tendemos a acreditar nessas forças poderosas que incidem como feixes de luz no meio da noite escura.

Minutos antes do apito inicial, uma mariposa, dourada como a taça e a estrela que nos rege, havia pousado na mão do meu irmão. Ela tardou a retomar seu voo, se demorou um pouco em nossa companhia e, claro, nós exclamamos que devia ser alguma espécie de sinal. Botafoguense tem (ou tinha? O que acontece agora com todas as superstições?) essas coisas, enxerga esses sinais, tenta ler no tempo e no espaço mensagens codificadas, faz somas, numerologias, elenca coincidências. Uma fé de que há algo que supera nosso entendimento. Uma postura de humildade diante do destino que não se conhece, apesar de todo desejo. Ah, e como desejamos.

Herói improvável do início daquela semana, Gregore entrou em campo no dia 30 de novembro, às 17h, junto com os demais jogadores titulares. Mas não chegou a jogar sequer um minuto: aos 29 segundos de jogo, num lance infeliz, acertou com o pé a cabeça de um jogador adversário e foi corretamente expulso. A torcida — que havia invadido as ruas e estabelecimentos de Buenos Aires, lotado seus setores no estádio, cantava lindamente e havia desenhado um belo mosaico em formato de bandeira nas arquibancadas — de repente calou-se. As gerações de torcedores presentes no Monumental não pareciam acreditar no que se desenrolava diante de seus olhos. Pensei imediatamente na mensagem do meu amigo: insólito. Era o insólito que baixava ali, como os tantos insólitos que ajudam construir as mitologias em torno do Botafogo e seus devotos. Um misto de medo, incredulidade, descrença, martírio e uma constante sensação de injustiça pairavam na cabeça do torcedor, uma nuvem negra passageira em meio à tarde de céu azul portenha.

Crédito: Vitor Silva | Botafogo.

Como aqueles dez homens jogariam dois tempos de 45 minutos mais acréscimos com um vazio? O que se poderia esperar de um jogo em que teríamos a desvantagem de um homem a menos por todo o tempo? Eram muitas as perguntas que permaneceriam e ainda hoje permanecem sem resposta, como as questões da fé.

Insólito corresponde àquilo que é fora do comum, estranho, surpreendente ou inesperado. Pode ser algo que desafia as expectativas, que não se encaixa no padrão ou que causa espanto por sua raridade ou singularidade. Dentre os exemplos práticos, diz-se que insólito pode ser uma tempestade de neve em uma região tropical.

Na literatura e na arte, o insólito muitas vezes é explorado como uma forma de provocar reflexão, surpresa ou encantamento, criando situações ou cenários que rompem com a normalidade. Mas o que significa o insólito para o futebol? O Botafogo, me parece, é o próprio insólito, o time do inacreditável, do fora do comum. Mas, depois do ano passado, com o pior dos insólitos que já nos acometeu, o campeonato brasileiro sendo lentamente perdido apesar da vertiginosa vantagem, quando é que as tais coisas que só acontecem com o Botafogo de que nos fala o cronista voltariam a se referir a insólitos positivos? Foram muitos filmes que passaram rápido pela cabeça, mas a concentração voltou-se novamente para o jogo.

Também voltou a mariposa dourada. Pousou no boné da moça sentada na cadeira em frente à do meu irmão, o escolhido para receber o sinal. O nosso sinal. Porque tenho certeza que pelo menos algumas centenas dos milhares de botafoguenses que lotaram as arquibancadas do Monumental também enxergaram seus sinais, depois de todas as suas preces, promessas e presságios para e por todos os tipos de deuses e deusas e entidades. O místico que rege essa torcida tão apaixonada e apaixonante.

O que aconteceu naquela tarde já está imortalizado na história, nos jornais, nos livros, nos posts e na memória e coração de uma legião de gerações de torcedores e não torcedores.

Botafogo, com um jogador a menos, abriu dois gols de vantagem no primeiro tempo com protagonismo e inteligência do nosso camisa 7, Luiz Henrique, sustentou a vantagem apesar do gol atleticano no início do segundo tempo e fechou o caixão do rival nos últimos vinte segundos dos 7 minutos de acréscimo com um gol de Júnior Santos, ex-pedreiro e artilheiro da competição.

Parecia que ia dar certo. Botafoguense não comemora até o apito final, mas quando saiu o terceiro gol, desentalou-se o grito. É campeão! Não saiu tímido, mas grave, rouco, desesperado, emocionado. O estádio em uníssono, delirante, o desejo saciado. E agora? O que acontece depois de realizar aquilo que o coração tanto deseja? Um silêncio, uma paz, um vazio. Podem ser bons, sim, os vazios.

Me apresentem outro time com a coragem, a força, a graça e um mental desses. Um time insólito.

O insólito: aquilo que se anunciou timidamente para meu pequeno núcleo familiar na primeira noite da cidade que deu a “glória eterna” ao Glorioso. A estrela brilha forte e aquela tarde — resplandece para sempre.»

Fonte: https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/botafogo/noticia/2024/12/07/artigo-uma-saga-e-uma-equipe-insolita.ghtml

6 comentários:

Sempre Botafogo disse...

Texto maravilhoso, Ruy! Insólito e mágico que arrancou dentro de mim um grito semelhante ao que bradei quando o Júnior Santos marcou o terceiro gol na final da Libertadores! Esse autor, um verdadeiro (a) botafoguense, sabe muito bem o que é ser torcedor do Botafogo! Desta vez, quando parecia que todos os insólitos do Universo iriam nos esmagar eis que, pouco a pouco, aconteceu um "realinhamento" para acabar de vez com todo o sofrimento, toda espera angustiante, minha, nossas, e finalmente o Botafogo é campeão da Copa Libertadores! Sem palavras...

Sergio disse...

Essas narrativas de torcedores sobre a final são realmente o testemunho de uma jornada sensacional. O termo insólito é de fato um retrato fiel do que acontece com o Botafogo, em especial nessa épica final da Libertadores, uma vitória inesquecível. Só mesmo o nosso Botafogo é capaz de atos tão " insólitos". Abs e SB!

Ruy Moura disse...

Meu estimado amigo, foi um caso absolutamente inédito em que todos os astros se alinharam à ESTRELA SOLITÁRIA!!!

A minha cereja em cima do bolo foi o gol de Júnior Santos que eu pedira antes do jogo. Estava convencido que ele entrava na 2ª parte e marcava o gol do título ou um dos do título para fazer os dois dígitos de 10 gols e o coroar como indiscutível artilheiro da Libertadores. Os astros estavam alinhados e concretizaram-me o desejo.

Abraços Gloriosos.

Ruy Moura disse...

Sergio, eu creio que jamais teremos outra final tão épica, tão significativa de alinhamentos insólitos. Essa final encheu-me as medidas!

E logo em seguida praticamente a confirmação do Brasileirão com a vitória sobre a difícil equipe do Internacional.

Abraços Gloriosos.

jornal da grande natal disse...

Importante a coletânea dos artigos espalhados em um só lugar. Nem todo mundo tem a perspicácia de encontrar, como o faz o editor. É um oportuno serviço para o torcedor botafoguense.

Ruy Moura disse...

Faz parte da linha editorial, Vanilson. A ideia de concentrar num único espaço tudo que se refere ao Botafogo. Na linha destas narrativas encontrará, na Etiqueta 'Apologias', uma boa coletânea de artigos apologéticos sobre o Botafogo.

Abraços Gloriosos.

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