Tem sido
comum ouvir-se anunciar o ‘fim das ideologias’. Geralmente não é conversa de
quem se pode designar como pertencendo à ‘esquerda política’, mas sim de economistas
e sociólogos que se situam partidariamente na ‘direita política’. Anunciam
falsamente que já não existe diferença entre direita e esquerda.
Efetivamente,
três momentos permitem que a ‘direita’ sustente a sua tese de quase
‘indiferença política’ entre direita e esquerda no que respeita à economia: (a)
descalabro econômico e social dos regimes ditos ‘comunistas’, que ao se
assumirem como regimes tão ditatoriais quanto as ditaduras de direita perderam
o sentido da sua origem marxista; (b) emergência do neoliberalismo brutal que
Milton Friedman conseguiu instaurar no mundo a partir da presidência americana do
ignorante ator secundário Ronald Reagan; (c) globalização econômica e cultural
de raiz americanizada que deixa pouca margem de manobra à gestão da esquerda
democrática.
Para
simplificar o problema, cuja equação é bastante complexa de debater e resolver,
eu diria que, omitindo as expressões ‘direita’ e ‘esquerda’, podemos fazer uma
distinção bem menos polêmica: os ‘conservadores’ e os ‘progressistas’.
Creio que
ninguém conseguirá contestar com sucesso essa claríssima diferença.
Se nenhuma
diferença houvesse no modo como a humanidade perspectiva o seu futuro econômico
e social, a esperança morreria e o futuro quedar-se-ia num eterno presente de
não-alternativa.
Há quem se
agrade dessa ideia. Diria que são os conservadores, não os progressistas.
Possuo
formação acadêmica tanto em sociologia como em economia. Infelizmente, a
ciência econômica tem cada vez mais papagaios repetitivos vergados ao
‘financismo’ mundial que domina as nossas vidas e à ‘inevitabilidade’ do que
dizem ser a necessidade de políticas econômicas austeras.
Passemos,
então, à ciência sociológica.
Passemos
mais propriamente dito à vida em sociedade, independentemente da/s economia/s.
Passemos às diferenças não de sistema econômico, mas de sistema social.
É certo que
o pendor social é maior nos progressistas do que nos conservadores, cujo nome
já diz quase tudo. Todavia, ainda mais evidente se tornam as diferenças quando
se trata de avaliar determinadas opções sociopolíticas.
O Mundo
Botafogo manifestou-se, em algumas ocasiões, contra a xenofobia, o racismo, a
misoginia e a homofobia, posicionando-se como progressista contra o
conservadorismo dos que milenariamente defendem essas ideias contra os direitos
humanos e contra a cidadania.
De um lado,
os que defendem penalizar os ‘estrangeiros’ ou deles se aproveitam
politicamente; os que defendem condenar as pessoas com base exclusivamente na
cor da pele (já que todo o organismo humano é absolutamente semelhante em todas
as raças, assim como os sentimentos e as emoções); os que defendem a inferioridade
das mulheres em relação aos homens; e os que defendem que homens e mulheres
homossexuais devem ser extraditados da vida social.
De outro
lado, os que defendem a igualdade dos homens e dos povos, independentemente da
nacionalidade, da raça, do gênero, da opção sexual, do credo; do outro lado os
que defendem a manutenção das desigualdades e dos estigmas. De um lado, os
progressistas; de outro lado, os conservadores.
Dado o mote
do que pode ser a perspectiva progressista e a perspectiva conservadora,
pode-se acrescentar a diferença claríssima que existe entre aqueles que
defendem socialmente o direito à interrupção voluntária da gravidez e defendem politicamente
a liberalização de determinadas drogas; num caso, em defesa da saúde e da vida
social das mulheres mais pobres – já que as mais ricas vão fazer o seu ‘aborto’
a clínicas privadas, não raras vezes estrangeiras, e clamam publicamente ser
contra o dito ‘aborto’; noutro caso, em defesa da saúde dos consumidores de
drogas, legalizando-as no mercado e monitorizando a qualidade das mesmas,
minimizando o impacto na saúde dos mais desprotegidos que caíram nesse vício e limitando
o tráfico mundial de droga falsificada e muitíssimo perniciosa à saúde.
De um lado,
os que defendem a lei ‘naturalizada’ do mais forte; de outro lado, os que
defendem a perspectiva de uma humanidade culturalmente construída, emancipada e
cidadã.
Tudo isto vem
a propósito dos dilemas com os quais muitos e muitos atletas se defrontam no
mundo do desporto por via de serem homens em corpos de mulher e mulheres em
corpos de homem.
Marta
Ramos, coordenadora de uma associação portuguesa defensora dos direitos de
homossexuais, bissexuais e transexuais, manifesta que as pessoas transexuais
são das mais discriminadas, e que ao submeterem-se a intervenções cirúrgicas
para mudança de sexo não o fazem por lhes apetecer, mas porque não suportam
mais ser homens em corpo de mulher e mulheres em corpo de homem.
Trata-se,
efetivamente, de um dilema profundo com grande impacto na vida social e
psicológica dessas pessoas. A discriminação sente-se em todo o lado por onde
essas pessoas circulam.
A questão da
identidade é um problema fundamental que se revela ainda mais pertinente no
domínio do desporto – sempre dividido entre ‘homens’ e ‘mulheres’ – obrigando
homens em corpo de mulher a competir no feminino e mulheres em corpo de homem a
competir no masculino.
Uma
violência.
Felizmente
os progressistas têm conseguido colocar na pauta dos problemas mundiais as suas
perspectivas evolucionistas de mudança, obrigando a que os discursos oficiais
defendam as ideias progressistas, apesar do fundo conservador de muitos dos autores
dos ditos discursos. E se os discursos ‘deles’ são hipócritas, mostram que,
afinal, somos ‘nós’ que os obrigamos a avançar com as nossas ideias mesmo
contra a vontade ‘deles’ - a pressão cultural dos progressistas contra a força
amoral dos conservadores.
A enorme
classe média que atualmente o neoliberalismo quer destruir no mundo ocidental é
a prova da ‘nossa’ vitória sobre os regimes monárquicos e déspotas, sobre os
ditadores da ‘direita’ e da ‘esquerda’, que sempre defenderam os fossos sociais
entre os mais pobres e os mais ricos; a nobreza contra o povo; as oligarquias e
os monopólios contra as escolhas livres dos cidadãos.
Em muitos
locais do mundo o cidadão tem que processar o Estado para ver reconhecida a sua
identidade ‘sentida’. Por exemplo, em Portugal, como em muitos outros países, a
lei que defende a transexualidade vigora desde 2011, permitindo a mudança de
nome e de sexo no registro civil sem necessidade de intervenções cirúrgicas.
Internacionalmente,
desde 2003 que o Comitê Olímpico Internacional aprovou o regulamento que
permite a transexuais a participação em competições olímpicas. A lei protege a
ocorrência de qualquer ‘vantagem competitiva’ na medida em que exige que a
elegibilidades não tenha início antes de decorridos dois anos sobre a
gonadectomia (cirurgia de retirada dos ovários ou dos testículos). É exigida a
prova de que a terapêutica hormonal está a ser administrada de maneira
controlável e por um período de tempo suficiente para que se evite a ‘vantagem
competitiva’.
Nota final: Sobre
o assunto informo os leitores que, sendo irredutivelmente heterossexual, sou
insuspeito sobre as matérias que aqui trouxe hoje.
Fonte dos
textos digitalizados: Record, jornal diário desportivo editado em Lisboa.
4 comentários:
Rui,
Pouco antes de morrer, o grande Ariano Suassuna escreveu o seguinte artigo, sobre esquerda e direita: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-esquerda-e-a-direita-segundo-Ariano-Suassuna/4/31455
Saudações Gloriosas!
Muito interessante, Émerson.
Eu também "não concordo com a afirmação, hoje muito comum, de que não mais existem esquerda e direita. Acho até que quem diz isso normalmente é de direita. [...] Olhando para o futuro, acredito que enquanto houver um desvalido, enquanto perdurar a injustiça com os infortunados de qualquer natureza, teremos que pensar e repensar a história em termos de esquerda e direita."
No mais, não concordo. As ideias sobre religião seguem o conservadorismo religioso e, em minha opinião, não estão de acordo com o que se passou, segundo as últimas pesquisas dos historiadores e as quais me parecem bem mais credíveis. [Porque razão o Vaticano não abre a sua Biblioteca aos pesquisadores?...]
Admitindo-se a existência de Cristo homem, coisa que nunca se comprovou e nenhum Manual de História confirma, é mais crível o seguinte:
A ideóloga do Cristianismo foi Maria Madalena, que era a mulher de Cristo. Por de trás de qualquer grande movimento existe uma ideologia cultivada, e a história 'esmerada' da vida de Cristo evidencia ideologia bastante inteligente para suprir politicamente às necessidades da época em que os romanos exterminavam povos.
Em segundo lugar, Judas não foi traidor. Para que Cristo ou qualquer outra ideologia perdure é necessário que haja um momento de clímax, um momento crucial, um momento de tragédia. Que tragédia melhor do que um dos discípulos de Cristo o trair e levá-lo a ser "crucificado, morto e sepultado"? [e note que muito antes de Cristo, outros homens e outros 'deuses' - que a história narra - foram "crucificados, mortos e sepultados", o que evidencia o plágio óbvio.]
Jesus e Judas eram almas gêmeas. Para que a ideia de Cristianismo permanecesse mesmo após a morte de Cristo, era necessário criar uma história trágica de 'traição'. Judas sacrificou-se para que a sua alma gêmea sobrevivesse à história. Judas não traiu Jesus, Judas imortalizou-o. E logo após ter traído [supostamente, porque nada consta na historiografia], ele devolveu o suposto dinheiro que havia ganho. Arrependimento?... Não... Devoção! A devoção ao mestre, para que todos saibam da grandeza do mestre.
Mais tarde, esta história foi adulterada. A partir do Reinado de Constantino, que ligou a Igreja ao Estado, o Catolicismo, isto é, os ministros / padres / bispos, adulteraram completamente a ideia mais progressista do Cristianismo e substituíram-na pela ideia dos preconceitos, inventando que Maria Madalena era prostituta, que somos todos somos pecadores do menor ao maior dos nossos atos, que o sexo é impuro, que temos que ser 'servos' (servos? e então isso é de esquerda?!?!?!], em vez de cidadãos que contribuem para o progresso da humanidade.
E fico-me por aqui, se não estaria escrevendo até ao próximo fim-de-semana. Mas não sem deixar de vincar que o primeiro de todos os movimentos do mundo que defendeu a ideia de igualdade, de cidadania, de liberdade, de progresso, de ESQUERDA, foi a Revolução Francesa, foi o grande e extraordinário lema que ainda hoje a esquerda propala: LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE. Ao contrário, quem propala, na generalidade, a ideia da religião [conservadora e tornando os homens 'servos'], é a DIREITA. Por isso, concordando com a parte que citei do autor, discordo completamente da inversão de valores do restante artigo.
Abraços Gloriosos.
Rui,
Concordo quando diz que a partir de Constantino, com a ligação entre Igreja e Estado, houve uma adulteração que nos legou muito pouco da essência do ensinamento do Mestre.
Que, a partir daí, o Catolicismo passou a servir aos poderosos (às direitas), e que foi fundamental para vivermos as trevas da Idade Média.
Mas, como Espírita, tenho convicção e certeza da Obra do Mestre, e da Sua estadia entre nós.
Jesus, em meu entender, fez política, porque política há em tudo, mas acho que a política dele é o que de mais sublime houve na Terra, o que deve servir como guia para a política nossa, à qual todos os partidos (e principalmente os de esquerda) deveriam seguir como molde. E essa é apolítica do bem comum, da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. Acho que o Mestre foi o precursor do que viria a ser a Revolução Francesa.
Afinal, Ele, como Co-Criador e Governador do nosso orbe, "antes de tudo ser, ele já era".
Tão fico por aqui, porque esse assunto dá muito pano p'ras mangas (rs)...
Saudações Gloriosas de um campeão da Guanabara!
Meu querido Émerson, respeito completamente e em absoluto as suas convicções, mas não acredito em nenhuma religião após estudo, análise e avaliação profunda ao longo de anos. Ensinado no catolicismo e no espiritismo [o que é em si mesmo teoricamente contraditório], conclui que todas as religiões, ideologizadas e escritas por humanos, diminuem a pujança de um Universo composto por milhões de galáxias (e nós vivemos apenas em uma), em movimento, em mudança constante, em fascinante diversidade. Ou como descobriu Lavoisier: "nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma".
Abraços Gloriosos.
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